O chão que Bethânia pisa

Maria Bethânia celebra 50 anos de entrega à música e à literatura (odeio a palavra carreira, cheira a autocarro e está infestada de carreiristas) com um espectáculo deslumbrante como a vida – que, apesar de todas as mágoas, como lembra a canção, “é bonita, é bonita e é bonita”. 

O primeiro bis do espectáculo do passado dia 27 no Coliseu de Lisboa foi exactamente essa canção de Gonzaguinha (O que é, o que é) que, na sua simplicidade, resume o passado e empurra o futuro. 

O segundo, que Bethânia cantou a solo, sem orquestra, a voz poderosa voando sobre a noite do mundo, foi Explode Coração. Escolhendo o chão como cenário – noites estreladas, mares, sol, pinturas, rosas, a estrada negra de Edith Piaf -, homenageou, ao longo de duas horas, sem uma fífia nem a sombra de uma falha, muitos dos poetas, compositores e cantores da sua vida – incluindo Amália, o eterno Pessoa e, evidentemente, o mano Caetano.

Foi Caetano quem baptizou Bethânia: tinha 4 anos de idade quando essa irmã nasceu, e o menino declarou que ela tinha de se chamar Maria Bethânia, como a heroína da canção de Capiba imortalizada por Nelson Gonçalves: “Maria Bethânia tu és para mim/a Senhora de Engenho”. 

Digam lá que os poetas não são, desde a mais tenra infância, profetas, ou que destino não é mais do que uma contracção de desatino. 

Descobri recentemente que eu própria tinha ido buscar o título de um conto e de um livro a uma canção que acompanhou a minha infância no vozeirão de Tony de Matos (Fica Comigo Esta Noite), mas que afinal fora escrita pelo mesmo Nelson Gonçalves. 

Estas coincidências subterrâneas tornam-me feliz. Sou milionária delas, o que me tem poupado ao cansaço contabilístico da inveja. 

Escutando a música e as palavras de Bethânia (ninguém como ela confere a cada palavra toda a sua potência de luz e limpidez), em 2015, encontrei-me, menina e moça, no início dos anos 80, à porta do Coliseu desde as nove da madrugada, com o bilhete baratinho na mão, para ter a certeza de ficar perto daqueles irmãos que me tornavam as lágrimas saborosas e me ampliavam a sabedoria de amar (a única verdadeira), no vinil escuro dos discos riscados pela alegria da repetição. Ainda não vivíamos de novidade em novidade, gostávamos de escavar até ao osso do conhecimento, mesmo ou sobretudo se implicasse dor. 
    
Bethânia e Caetano são muito diferentes – e, no entanto, quando ela pula no palco, o pulo dele surge à transparência. Une-os, mais do que o mesmo chão – o chão da pequena cidade de Santo Amaro da Purificação, na Bahia (com h) – o facto de terem chão, isto é, de nunca terem esquecido de onde vieram e quem são. Essa coisa sempre rara a que se chama integridade. 

Caetano estará com Gilberto Gil no Parque dos Poetas, em Oeiras, a 31 de Julho, com o espectáculo Dois Amigos – Um Século de Música. (Ouço daqui Dona Canô, a páginas tantas da Verdade Tropical do seu filho Caetano, vendo Gil na televisão e chamando: “Caetano, venha ver o preto que você gosta”). 

Também eles comemoram 50 anos de criatividade cúmplice, também eles provam que talento, voz e energia crescem com o tempo nos artistas que existem em função da arte e da descoberta e não em função da fama. Pouquíssimos o conseguem. 

O mais recente cd de Caetano intitula-se Abraçaço. Este espectáculo de Bethânia constrói-se sobre dois verbos abertos, inesgotáveis: Abraçar e Agradecer. Os dois verbos centrais da felicidade humana, caso não tenham reparado. Todos os outros estão dentro destes, ou são para deitar fora.