Se Lisboa se andava a render aos peixes frescos e crus japoneses (nos sushis e sashimis) era de esperar que a aposta num bom ceviche (prato peruano, feito com peixe marinado) se revelasse um 'ovo de Colombo'. E assim foi agora, com este novo restaurante, A Cevicheria.
Esta Cevicheria está muito bem situada, numa zona bem calcorreada por turistas, e cheia de jovens urbanos. O serviço é inexcedível em simpatia. Na decoração apertada, sobressai um enorme polvo de esponja no tecto, as ferragens que semitapam a parede envidraçada da rua (que parecem aves, mas podem ser peixes), uma colecção de vidros por trás do balcão e um enorme espelho sobre a fila de oito mesas. Um sítio muito pequeno, pelo que não custa nada tê-lo à cunha. E o facto de se misturarem ali turistas e portugueses faz com que as horas das refeições se possam estender desde os temporões costumes europeus, até aos mais tardios.
A casa apostou em ter fila de espera satisfeita, quer pelo bom serviço do pessoal, quer por um cocktail especial peruano que se aconselha à clientela em espera: o pisco sour (uma bebida à base de aguardente peruana, lima, xarope de açúcar, clara de ovo e um pingo de Amargo). Não aceitam marcações. Mas os mais clássicos como eu, talvez mal, em vez do pisco sour, optam por um copo de espumante ou vinho branco. E fica já aqui dito que a lista de vinhos a copo ou em garrafa é muito curta, mas capaz de satisfazer os incondicionais desta bebida.
No couvert, calhou-me uma deliciosa manteiga preta, escurecida com tinta de chocos, e uma bela pasta de tomate, para devorar os bocadinhos de três espécies de pão ali postos. A sopa dizem ser apenas outra forma mais líquida do ceviche: tem tapioca, gambas do Algarve e gaspacho de tomate. Claro que também se pode optar por uma menos imaginativa empanada, apimentada com gengibre.
A lista fica-se em três pratos peruanos (o ceviche, as saladas chamadas causas – com purés de batatas doces, devem ficar feitas de véspera – e os quinotos – espécie de risottos feitos com quinoa, um cereal parecido com o grão). Nisto, Kiko Martins solta a sua volta ao mundo, misturando sabores portugueses, asiáticos ou tropicais – como o bacalhau, o atum ou o salmão, por exemplo.
Lembro-me do molho de ceviche, em Espanha, com um azeite aguado pela lima-limão. Aqui ele é branco, e chamam-lhe até leite de tigre: o peixe bem fresco é marinado em caldo de peixe, lima, aipo e gengibre, como manda a tradição peruana.
O que aqui se aconselha é a partilha de sabores, com três pratos a dividir por duas pessoas. E, em caso de subsistir alguma fome, a casa prepara uma sanduíche de barriga de porco confitada. Nas sobremesas, eu, que não aprecio o leite condensado (os doces da América Latina são quase sempre disso, e aqui também os há, talvez até mais sofisticados, com coco, abacaxi e rum), recomendo um chocolate das Américas em várias texturas. Sente-se aqui uma vontade forte e conseguida de agradar, transmitir uma paixão.
panunciacao@sapo.pt
Cevicheria
R.Dom Pedro V, 129
lisboa
tel: 21 803 88 15
Fecha ao domingo
não fumadores
Depois da carne o peixe marinado
Kiko Martins, que abriu O Talho aos 33 anos (há dois), mais ou menos frente ao Corte Inglês – numa de cozinha tradicional com razoável êxito -, acaba agora de se meter nesta aventura peruana do Ceviche. Acompanham-no os mesmos dois sócios do projecto anterior (Miguel Barros, um gestor com curso de cozinha, e João Louro) e parece conseguir aqui uma autoria de cozinha que não se via no outro, e que ele tinha vontade de experimentar. Contudo, a tradição, embora a peruana (de que estamos muito desligados, mas a que os restaurantes da vizinha Espanha dão mais atenção) é inteiramente respeitada.
Kiko, depois de se fascinar com a comida de rua do Brasil quando por lá viveu com os pais aos quatro anos (churrascos de carne) e de, já em Lisboa, nos anos 80, andar a distribuir comida pelos sem-abrigo, estudou cozinha, e chegou a abrir um restaurante nas Avenidas Novas de Lisboa, o Masstige. Mas o sucesso surgiu depois de casar e fazer uma viagem por 26 países, a esquadrinhar hábitos culinários e alimentares, que lhe deram crónicas de jornais e um livro (Comer o Mundo).
Se o grande sucesso começou no Talho, na Cevicheria vem uma confortável confirmação desse êxito. E prevê-se a seguir nova iniciativa, mais autoral e experimental.