Raquel Varela: ‘Temos de fazer um reset ao país, começar de novo’

Que futuro podemos esperar depois dos anos de crise? As respostas, complexas, davam um livro. E deram-no: a historiadora Raquel Varela dedicou-se ao tema em Para Onde Vai Portugal?, analisou o problema do desemprego, da emigração recente e aponta soluções, nas quais se inclui, até, o amor.

A certa altura do livro escreve que «precisamos de partidos que falem de salários mas também de amor – mudar o mundo não é só lutar pelo aumento do salário mínimo». Não teme ser acusada de lírica ou utópica com esta observação?
Não temo nunca ser acusada de utópica e romântica, sou-o e serei sempre, na vida pessoal, política e também profissional. Vivo de futuro. Quando vejo um adulto desmoralizado, desleixado com o corpo e o intelecto, que perdeu carinho pelo trabalho, doçura pela família, não consegue evitar palavras amargas, nunca penso no que é mas no que poderia ter sido: um cientista imprescindível, o músico que nos encanta, um amante e poeta irresistível. 

O que pode ser feito para podermos ser assim?
Precisamos de tempo livre para ser bons amantes. Este livro fala do que penso que vai ser o futuro do país – mas fala tanto do previsível colapso das exportações e do turismo (quero ver o que vão fazer a tantos hostels e hotéis na próxima crise cíclica que cortar os salários ao norte da Europa, aos turistas, como nos cortaram a nós), por exemplo, mas também das lutas sociais que nos esperam. E fala dos projectos que ainda não fizemos – como viveremos o amor, os afectos, o sexo, a arte, a alimentação, as relações com as crianças, a família, numa sociedade onde a cooperação seja o estímulo? 

Mas vivemos em tempos de concorrência.
Não falo de cooperação no sentido apenas moral, o capitalismo actual quase não tem concorrência – vivemos esmagados em monopólios que fixam tudo, preços, quotas de produção, etc., e isso é regressivo como modo de produção histórico – andamos para trás, em suma. Uma coisa é ser sério e ponderado – sou contra a ideia de que há soluções fáceis. Não há. Outra é este pessimismo crente que atingiu todos – são piegas, é uma sociedade cheia de pena de si própria – vejo nos cartazes de esquerda às vezes estes escritos: «Eles querem cortar-nos salários. Eles querem destruir o país!» Pagaram para colocar aquele cartaz? Para que serve um partido assim? Mas é óbvio que é isso que eles querem, a pergunta é: o que nós fazemos contra? Justificam a inércia com o pessimismo militante: não fazem nada porque não vale a pena fazer nada. Não acreditam na população. 

E a Raquel, acredita?
Eu acredito, muito, é muito mais escolarizada, urbanizada, culta e uma parte dela passou pela experiência do 25 de Abril. O país inteiro, tirando algumas centenas de governantes e presidentes de conselhos de administração, defende o estado social, a nossa bandeira, defende que um rico ou pobre deve ir à escola e ter acesso ao saber e à saúde. Tinha duas avós que não eram de origens pobres e cresci junto delas – aguentaram tudo o que aguentavam mulheres nascidas em Portugal no salazarismo, incluindo o machismo num dos casos, a outra era viúva – mas só as vi chorar por uma razão nesta vida: quando contavam, e nunca o fizeram juntas (estavam em aldeias a 400 km uma da outra), que não tinham podido continuar a estudar depois da 4.ª classe.  

Como podem, no fundo, os partidos ou as organizações privadas transmitir esse amor de que fala?
No programa e na sua vida interna, que é irrespirável. São como uma empresa – hierarquizados. Democracia não é só poder falar, é saber falar, é ser ouvido e é votar e decidir. Mesmo à esquerda, esta coisa da direcção que não ouve e não se submete à base porque – não o dizem mas pensam – acham que são burros, é impossível de continuar a gerir. Agora direitos são deveres, os militantes dos partidos têm o direito de ir a um plenário e votar, mas têm o dever de estudar os dossiers, informar-se, aprender, em vez de ir só mandar bitaites. 

Mas, em concreto, o que devem fazer?
Os programas têm de falar das relações sociais na sua totalidade, senão só mobilizam uma franja minoritária. Nós não somos gorilas – os magros salários são intoleráveis, mas ser controlado a toda a hora no trabalho é insuportável. Para o controlador e para o controlado. Sabe onde há mais esgotamentos numa fábrica? No controlo de qualidade. Ser servil é uma tristeza, mas ser o controleiro é uma desgraça. 

O trabalho ocupa-nos demais?
Vivemos de produção, temos de produzir, e bem, para manter-nos vivos, mas manter-nos vivos não é comer e dormir, nós somos as nossas relações. É impossível uma relação de amor feliz entre desiguais – e não falo só de economia. E é impossível amor sem paixão – as pessoas vivem na sua maioria a gerir as relações no presente, sem brilho nos olhos – eis a metáfora, esta sociedade de mandantes e mandados perdeu o brilho nos olhos. Mas pode recuperá-lo, creio mesmo nisso e tento debater algumas hipóteses de 'o que fazer?' neste livro. 

É optimista, mas dá exemplos de contestação que não tiveram eco nas decisões políticas, como a manifestação global contra a guerra no Iraque. 
Claro. Sou optimista, como digo: realista e esperançosa. Quando vejo uma escola com professores precários, 30 alunos numa sala de aula, 1/3 têm um dos pais desempregados, penso: se eles ainda não se mataram todos uns aos outros é a prova de que o engenho humano é tudo e podemos construir outra sociedade (risos). Nós estamos numa fase de transição – o desemprego e a pauperização são o modelo de acumulação capitalista, mas depois da guerra – em 1945 com os trabalhadores armados na Europa e depois da revolução de 1974 e 1975 aqui, o outro lado cedeu: vivemos explorados, mas com Estado social e direito ao trabalho. Este pacto social ruiu. 

Diz que isso será causa de mais conflitos sociais.
É natural que as pessoas ainda estejam à procura de como vão reaprender a organizar-se contra este Estado total, que se limita a arrecadar impostos para remunerar juros de capitalistas parasitários falidos em 2008 e depois se criam taxas para pagar todos os serviços públicos e colectivos que os impostos não pagam. Mas não vai continuar assim, e no livro sustento-o, creio, vamos assistir a uma nova onda de grandes conflitos sociais. Por isso acho o debate actual pobre. O capitalismo ruiu, está em coma ligado a uma máquina de dinheiros públicos, a questão que devíamos estar todos a discutir – e sobre isso tenho muito mais dúvidas que certezas – é como vamos evitar erros do passado, partidos burocráticos, castas a viver do Estado, restrições à liberdade, etc. A URSS foi uma experiência horrorosa, ou se rompe com isso ou ficamos entre o péssimo e o péssimo.  

A crise portuguesa poderá ser ultrapassada nos tempos mais próximos com as soluções que apresenta?
Pode. Não vai ser fácil, mas ficar como estamos é o achinesamento de Portugal. Vai ser preciso menos Facebook e mais organização, menos figuras públicas e mais pessoas a organizar, menos politiquice e mais política. 90% das start ups colapsam entre dois e três anos depois – alguém acha que se vai resolver o desemprego criando a própria empresa? Os nossos filhos são adultos infantilizados que vivem na casa dos pais até aos 40 anos, inseguros, os pais estão em colapso porque sustentam tudo, isto resolve-se com mais cortes nas pensões? Mandamos emigrar médicos que custaram 14 anos a formar? Como podemos resolver seja o que for assim? Acha que eu ou alguém individualmente, mesmo um ministro sério e a sua equipa, temos um programa para resolver a crise do SNS depois do que lhe fizeram? Não, temos de ouvir durante meses médicos, enfermeiros, em plenários gerais, uma espécie de reset do país, começar de novo.

Não crê que as soluções, se adoptadas individualmente por um país, sejam irrealizáveis?
Sim. O isolamento dos países é uma tragédia. Mas a questão é: alguém tem de dar o pontapé de saída. Demo-lo em 1974 pondo fim às ditaduras do Sul da Europa. Por que não vamos agora dizer: Acabou! Queremos os recursos colectivos. Não é o restaurante, a tasca, a casa individual… É o investimento, a banca, as empresas estratégicas – como é que a electricidade de que depende um país inteiro pode ser privada? Queremos isto em mãos públicas, controladas pelo público. Não chega ser estatal. 

Não são sinónimos?
Nem tudo o que é do Estado é público, precisamos de aprofundar o poder, o poder tem de ser exercido por todos, de forma responsável, temos o direito de ter serviços públicos e temos o dever de zelar para que sejam bem geridos. A esquerda europeia (e norte-americana) não conseguiu capitalizar apoio com a crise e, pelo contrário, até o tem perdido cada vez mais (veja-se as eleições britânicas e as sondagens um pouco por toda a Europa).

Porquê?
A esquerda tradicional não conseguiu capitalizar apoio com a crise. Nem fez nada para merecê-lo. Mas há excepções – as mudanças eleitorais na Grécia e em Espanha mas sobretudo o exemplo extraordinário da Islândia. Foi um processo revolucionário democrático, a população literalmente invadiu as ruas, cercou o parlamento, que caiu, houve nova Constituição e a dívida à banca holandesa e britânica foi suspensa. 

Mas pouco se fala desse caso.
O exemplo da Islândia é inexplicavelmente esquecido. Tem 300 mil habitantes e por isso não conta? Claro que conta, e se tivesse 10 milhões contaria mais. O pensamento único actual do «inevitável» convenceu as pessoas de que não há futuro, ou o futuro é de retrocesso e sacrifício. No meio disto a social-democracia ruiu porque vivia da ideia de que o capitalismo podia ser regulado e o Estado não seria uma arma dos fortes contra os fracos mas um árbitro. A esquerda pró-soviética ainda lambe as feridas e recusa-se a fazer um balanço daqueles regimes intoleráveis. E a esquerda revolucionária é marginal na representação eleitoral. 

Mario Draghi afirmou, numa conferência do BCE em Sintra, que algumas perdas anteriores à crise podem não ser recuperadas. Acredita que vamos poder prosperar sem os tais 'sacrifícios'?
Acredito que estamos em decrescimento, a cortar produção, imobilizar recursos (desemprego é isso, imobilização de recursos de que precisamos) para dar lucro aos bancos. Não há qualquer forma de prosperidade para nós, para Portugal, para a Europa e para o mundo com estas políticas de destruição da capacidade produtiva de um país. Mas refazer os que estes governantes fizeram não vai ser fácil – porque muita gente emigrou, perdeu-se capacidade produtiva, know-how. Não se recupera a destruição que deixaram de um dia para o outro. Mas Draghi tem um problema pior que o nosso – tem esqueletos nos armários, milhões de milhões de papel que para ser valorizado terá de arrasar com o modelo social europeu. Não acredito que o consiga fazer. 

ricardo.nabais@sol.pt