‘Espiões’ ganham poderes

Os agentes dos serviços de informações estão em vias de serem autorizados a  fazer acções de acompanhamento e vigilância “em espaço público ou privado de acesso público” e a dispor de identidades falsas, com direito à emissão de “documentos legais de identidade alternativa”. Poderão ainda aceder a informação bancária, dados fiscais e ficheiros da Administração…

Mas estas não são as únicas novidades da proposta de lei, que terá de ser aprovada na Assembleia da República e a que o SOL teve acesso. Os agentes poderão ainda pedir o acesso à localização de um telemóvel ou à lista de telefonemas que determinada pessoa fez e recebeu. Ao contrário do que avançou Marques Guedes, ministro da Presidência e dos Assuntos Parlamentares, no  final do Conselho de Ministros em que a proposta foi aprovada, na semana passada, esse acesso será possível não apenas em casos de terrorismo, mas em praticamente todas as áreas em que os serviços de informações actuam. O preâmbulo do diploma refere terrorismo, sabotagem, criminalidade altamente organizada e espionagem clássica e económica. O artigo que clarifica o acesso aos dados é ainda mais aberto: “Sempre que sejam necessários, adequados e proporcionais (…) para o cumprimento das atribuições legais dos serviços de informações”. 

PS disponível para aprovar

Muitas destas práticas não estavam previstas no regime legal em vigor mas integravam o manual de procedimentos que definia as regras dos agentes das 'secretas'. Agora, os partidos da maioria e o PS estão disponíveis para chegarem a um consenso e mudarem as regras dos serviços de informações, impedindo que os 'espiões' continuem  a trabalhar fora da lei.

O deputado socialista Jorge Lacão confirmou ao SOL terem existido contactos prévios do Governo com o principal partido da oposição para reforçar a capacidade operacional dos serviços de informações. Lacão e Vitalino Canas foram os interlocutores do lado socialista. “Houve da parte do Governo disponibilidade para aceitar as nossas observações. Reservámos sempre uma apreciação de especialidade para os trabalhos parlamentares, mas sem embargo de que haverá da nossa parte uma atitude muito disponível para chegarmos a um consenso” – explica Lacão, adiantando que a discussão do diploma deverá ser agendada para o início de Julho. Não ser aprovado até ao fim da legislatura nem  é visto como possibilidade: “Obviamente, esta iniciativa faz-se num quadro de disponibilidade de a concretizarmos até ao fim da legislatura. Nem faria sentido de outra maneira “.

 As mudanças implicam o acesso aos chamados metadados, conservados pelas operadoras de telecomunicações. Os oficiais de informações do Serviço de Informações de Segurança (SIS) e do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) poderão saber a fonte e o destino das comunicações telefónicas, a data e a hora a que foram  feitas, quanto tempo duraram, pedir a identificação do equipamento e a sua localização.

Sempre que o acesso seja susceptível de colidir com a reserva da intimidade da vida privada, este só será permitido depois da concordância da Comissão de Controlo Prévio, composta por três juízes-conselheiros em funções no Supremo Tribunal de Justiça há pelo menos três anos e que serão designados pelo Conselho Superior da Magistratura. O pedido deve ser feito pelo director do SIS ou do SIED, identificar os visados e ter a “indicação concreta da acção operacional” em causa e dos objectivos.

A decisão caberá ao juiz a quem tenha sido distribuído o pedido. Só em matérias de particular complexidade a decisão passará a ser não de um juiz, mas do colectivo. A partir do momento em que recebe o pedido, o magistrado terá 72 horas para deliberar; em situações de urgência, o prazo será reduzido a 24 horas.

Escutas continuam vedadas

Esta Comissão de Controlo Prévio será também a responsável por decidir se os oficiais de informações do SIS e do SIED devem ou não ser autorizados a aceder a informação bancária e fiscal. Já a decisão sobre se devem ter acesso a ficheiros de entidades públicas e “relevantes para a prossecução das suas competências” passa para a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD). Neste caso, estas informações só poderão ser solicitadas pelos dirigentes superiores.

Apesar de o manual de procedimentos do SIS prever escutas ambientais (feitas por intermédio de microfones ou de dispositivos instalados nos telemóveis) e a intercepção de dados através de meios electrónicos, as escutas telefónicas manter-se-ão barradas aos serviços de informações.

As mudanças prevêem o acesso ao rasto das telecomunicações, mas não ao seu conteúdo. Segundo a proposta, pretende-se “não um acesso a conteúdos de comunicações (escritas ou de voz), por intrusão ou ingerência nas comunicações, mas o acesso autorizado a dados (de base, de localização e de tráfego) que serão solicitados às entidades legitimamente responsáveis pelo seu tratamento” e fornecidos após consentimento dos juízes.

O acesso dos agentes das 'secretas' a dados que até agora lhes eram vedados pela lei motivou de imediato críticas da Associação Sindical dos Juízes Portugueses   (ASJP) e da CNPD. Ambos entendem que a matéria deve ser alvo de amplo debate público, pois estão em causa dados sensíveis e o acesso aos mesmos pode pôr em causa o princípio constitucional da reserva da vida privada.

Mas nem todos são contra a proposta de lei que quer reforçar os poderes legais do Serviço de Informações da República Portuguesa (SIRP). António Martins, ex-presidente da ASJP, há anos que defende não fazer sentido que as 'secretas' portuguesas sejam as únicos na Europa sem acesso legal a determinadas informações.  “Sabemos que existe uma realidade que vai para além daquela que são as circunstâncias legais deste serviço. É preferível que as coisas sejam claras, que haja responsabilização do cumprimento de regras claras e que estas permitam que o sistema funcione com controlo judicial, e não  em roda livre”, explica ao SOL António Martins. O magistrado nem sequer é contra a possibilidade de se fazerem escutas, desde que com controlo judicial. “Enquanto cidadão, prefiro estar num país em que o funcionamento destes serviços tem regras”.

O diploma do Governo revê também o enquadramento legal do estatuto de pessoal e remuneratório. O objectivo é derrubar um estatuto em vigor desde 1991 e aprovar um novo em que os salários e a progressão na carreira se aproximarão mais dos que já vigoram na Polícia Judiciária e no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Além do salário, os 'espiões' terão direito a um suplemento que integrará a remuneração de base e será pago 14 vezes por ano.

Perda de direitos em caso de acusação criminal

Para evitar situações como a de Silva Carvalho – o ex-director do SIED acusado de passar informações secretas a uma empresa privada e que paralelamente reivindica nos tribunais o direito a ser reintegrado na Presidência de Conselho de Ministros -, o diploma prevê que, quando for movida uma acusação contra um agente por crime sujeito a pena superior a três anos, esse direito à integração perde-se automaticamente.  

silvia.caneco@sol.pt