Se não fosse tão crente na forma inesperada e natural com que as letras aparecem na sua cabeça (durante anos foi comum surgirem inteiras, nos lugares mais inusitados, como quando viajava de transportes públicos), Márcia até podia polir os temas à posteriori. Mas é o facto de não forçar absolutamente nada, nem uma palavra, que lhe assegura que o que está a cantar é inadiável. Desta vez, foi o passado que se impôs como mote de grande parte das letras e isso pode explicar, considera, a frontalidade que agora existe nas canções. “Não estou a sentir aquilo que escrevo, mas conheço aqueles sentimentos. Estão cá guardados e cuspi-os daquela maneira”, comenta sobre as muitas referências a emoções antigas que povoam o registo.
Não se pense, porém, que este é um disco nostálgico. O passado só é revisitado porque o presente tem abençoado Márcia. Finalmente, a cantora e compositora sente-se “em crescente”, preparada para abandonar fantasmas antigos, como se o período de metamorfose já tivesse terminado e fosse agora 'gente grande'. “A minha vida estabilizou, sinto uma certa paz. Agora estou a salvo e a distância permite mergulhar em certos assuntos”.
A salvo de quê? Não se espere que, de uma assentada, Márcia desencripte tudo. Ainda assim dá algumas pistas. Durante a adolescência, os recursos financeiros tornaram-se um bem escasso em sua casa. 'Não há dinheiro' tornou-se uma frase recorrente, que servia tanto para lhe negar um Erasmus quando cursava Belas Artes, ir estudar canto para o Hot Club depois de ser claro, aos 18 anos, que já tinha canções, ou tratar de um nódulo que, entretanto, lhe prejudicou as cordas vocais. “Ouvi muitas vezes 'não é possível', como se não tivesse sequer o direito de conceber outra realidade”, comenta, referindo que nunca se resignou com o não. “Fui por caminhos alternativos e fiz tudo o que quis”.
O Erasmus foi financiado com a verba que acumulou durante oito meses a servir bebidas num bar; a inscrição e mensalidade do Hot paga com trabalhos em part time; e o nódulo curado com consultas de terapia da fala de 1 euro que descobriu a que tinha direito. “Procurei soluções. Aprendi a superar os meus limites e, sobretudo, a não admitir que me limitem. Viciei-me muito nisto”. Esse espírito está impresso em 'Ledo Sorriso' (título baptizado pelo amigo Samuel Úria), canção que escreveu para a filha e que é uma “espécie de conselho para a vida” sobre estas coisas de não ter medo de ousar sonhar só porque as circunstâncias não são favoráveis.
Foi graças a este novo estado de maturação que Márcia se atreveu a algumas experimentações sonoras em Quarto Crescente, como o nome indica o quatro álbum depois do EP homónimo de 2009, Dá (2011) e Casulo (2013). Celebrada pelo tom introspectivo dos álbuns anteriores – não há barómetro melhor do que a aceitação de 'A Pele que Há em Mim', que contabiliza mais de dois milhões de visualizações no YouTube e tem dezenas de covers no canal -, em Quarto Crescente é visível a procura de novos ambientes, com a introdução de teclados e ritmos electrónicos a serem a principal mudança.
Em vez da voz, 'instrumento' central na hora de compor, desta vez Márcia serviu-se das batidas maquinais do programa GarageBand para criar as canções, dotando-as de uma crueza invulgar na sua obra. A isso deve-se uma vida inteira em Lisboa, onde nasceu e cresceu, e a vontade de assumir em disco a “grande opressão da cidade”. “Sempre que me pedem para fazer fotografias, tento fugir para o campo, porque na verdade queria fazer isso na minha vida”. Mas sendo uma mulher do seu tempo, hoje é fácil concluir que o campo não passa de uma idealização, mesmo que lute diariamente para não ficar “enclausurada entre o betão e os prédios”. Apesar do esforço e da energia que reserva para este 'combate' constante, para Márcia é muito mais fácil nunca se conformar a viver alheia ao que se passa à sua volta. “Quero ter sempre consciência da minha realidade”, diz, salientando que só assim será capaz de provocar mudanças no seu mundo. Pessoal e artístico.
Convocar o produtor brasileiro Dadi Carvalho – que chegou até si por sugestão de Carminho e que Márcia conheceu pelo trabalho com Caetano Veloso, Marisa Monte e Tribalistas – teve a ver com a percepção de que o seu som estava a mudar. A par da introdução de teclados e beats, a cantora sentiu que as melodias que criava se estavam a afastar das sonoridades folk e acústica. Em vez disso, sobressaia uma aproximação ao pop e, em alguns casos até, mesmo que de forma subtil, ao hip hop (a participação do rapper brasileiro Criolo em 'Linha de Ferro' não é gratuita). “Tinha uma série de opções e achei que o Dadi fazia sentido porque tem uma relação com a pop e eu sinto-me próxima do Brasil. Mais uma vez, escolhi intuitivamente e não falhei”.
O disco acabou por ser produzido entre Portugal e o Brasil, com a 'proximidade' de que Márcia fala ao país a, finalmente, se materializar com a viagem ao Rio de Janeiro para terminar o registo. Uma decisão estratégica para exportar a sua música para o Brasil? “Não programo muita coisa, a não ser as refeições da minha filha [risos]. Como já disse, tento sempre ter consciência da realidade e o Brasil está lá distante…”.