Em 1985 a história de Portugal ficou marcada pela adesão à Comunidade Económica Europeia – agora União Europeia. Recorde aqui o que, há 30 anos, marcava o panorama cultural.
O polvo italiano que entrou em nossa casa
Os portugueses viam dois canais. Não estavam eufóricos com isso, mas ainda parecia fresco o nascimento da RTP 2 e a passagem da televisão a preto e branco para a cor. Podemos colocar as coisas de uma outra maneira: não imaginávamos como seria viver com vários canais, luxo asiático que as gerações seguintes acabariam por banalizar.
Em 1985, víamos novelas. A saga começara com Gabriela, não mais parou. Uma prova de estabilidade; juntamente com o futebol não se conhecem amores tão duradouros no nosso país. Ficámos vidrados com as aventuras de JR em Dallas e com o comissário Corrado Cattani, em O Polvo. A série da RAI foi mesmo a mais popular do ano, foram poucos os que não seguiram as aventuras de um homem destemido e incorruptível. Bons tempos.
Ainda há quem se lembre. Do Polvo e de Columbo, detective protagonizado por Peter Falk. Verdadeiros pioneiros que abriram o caminho para que hoje, trinta anos depois, possamos dizer que o cinema deixou de ser um exclusivo das salas de cinema. Talvez Os Homens do Presidente, Os Sopranos, Segurança Nacional, House of Cards ou Downton Abbey, não tivessem nascido se Cattani não se tivesse sacrificado em nome de uma moral que o mundo um dia aplaudiu.
L.O.
A tentativa de censura ao Je Vous Salue, Marie
O ambiente estava criado com as manifestações ocorridas em França pelo sector ultra liderado pelo monsenhor Lefebvre (mais tarde excomungado por João Paulo II) e pela ameaça do presidente da Câmara de Lisboa, Krus Abecasis, de que iria «escaqueirar tudo» caso Eu Vos Saúdo Maria – Je Vous Salue, Marie fosse exibido em Portugal.
O clima intimidatório levou a que nenhum distribuidor pegasse no filme de Jean-Luc Godard. Foi num ciclo da Cinemateca dedicado ao cineasta da nouvelle vague que a obra foi projectada pela primeira vez em Portugal. A noite de 29 de Junho foi quente: os manifestantes, que se opunham a a esta versão sobre a história da Virgem nos tempos modernos, tentaram boicotar a projecção dentro da sala. Mas Bénard da Costa previra o charivari e a PSP, já presente no local, interveio. Ainda assim, só uma hora depois o filme acabou por ser exibido.
C.A.
Música contra a fome
O primeiro grande evento de pop-rock por uma causa humanitária internacional aconteceu em 1971: o Concerto pelo Bangladesh, organizado por George Harrison. Catorze anos depois, em plena época do teledisco, Bob Geldof tornou os concertos de Londres e Filadélfia num acontecimento à escala global com o objectivo de recolher fundos para salvar milhões de etíopes em risco de vida.
No dia 13 de Julho, o Live Aid encheu os estádios de Wembley e J.F.K. e teve mais de mil milhões de telespectadores (há quem aponte para quase o dobro). Os proprietários de gravadores de vídeo – o sistema VHS impunha-se aoBeta – não tiveram mãos a medir, tantos foram os momentos memoráveis, dos Queen aos U2, dos Led Zeppelin (com Phil Collins e Tony Thompson em duas baterias) ao dueto de Mick Jagger e Tina Turner.
Em Portugal, quem ficou a assistir ao último tema, ‘We Are the World’, lutou contra o sono – deitou-se depois das 3h. Essa canção, escrita por Michael Jackson e Lionel Richie, fora gravada em Janeiro e dois meses depois estava à venda como single. Foi um fenómeno: cerca de 10 milhões de cópias dos USA for Africa, o supergrupo que juntou 44 artistas a cantarolar "We are the world, we are the children/We are the ones who make a brighter day/So let’s start giving".
C.A.
O início de uma rivalidade
É neste ano que se inicia simbolicamente uma competição entre António Lobo Antunes e José Saramago. O Auto dos Danados, sexto romance de Lobo Antunes, é o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. De José Saramago estamos entre O Ano da Morte de Ricardo Reis e A Jangada de Pedra, mas o primeiro é distinguido neste ano com o Prémio Novelística do P.E.N. Clube Português (dois anos antes, Memorial doConvento trouxera-lhe igual galardão).
A rivalidade (com o seu quê de infantil) vai acentuar-se, em distinções, em homenagens, em vendas e, ocasionalmente, num ácido pingue-pongue entre os dois escritores.
Já antes do Prémio Nobel da Literatura (o el Gordo que Lobo Antunes terá dito que lhe falta) de 1998, Saramago tinha atingido mais notoriedade internacional. E o autor de Os Cus de Judas nunca lidou bem com isso, como se vê, por exemplo, na resposta a Carlos Vaz Marques, no livro Os Escritores (Também) Têm Coisas a Dizer: "Se me quiser arranjar competições arranje-me pessoas do meu tamanho". Saramago também não morria de amores por "esse sujeito": expressou-o ao devolver ao repórter do Tal&Qual a oferta do Livro de Crónicas de Lobo Antunes, qualificando-a de "provocação",
C.A.
Frágil, o salão de festas cosmopolita da capital
Não abriu em 1985, mas jornalistas e diplomatas que participaram na cerimónia dos Jerónimos devem ter comemorado o acontecimento histórico com uma noite no Frágil. Mais do que um lugar e muito mais do que uma discoteca, o Frágil era a prova de que Lisboa podia ser tão cosmopolita como Paris, Berlim ou Nova Iorque.
Não é coisa pouca. O 25 de Abril fora apenas há uma década, os filhos da revolução já não se contentavam em gritar palavras de liberdade, queriam transgredir, ser diferentes, pisar a linha e inventar um mundo novo. Fizeram-no. E Manuel Reis tornou-se um ícone de um Portugal cosmopolita, com uma comunidade artística e jornalística que desafiou o que antes parecia impossível.
Hoje não existe correspondência com o que foi o Frágil. Ele continua a existir, no mesmo Bairro Alto. Mas o cosmopolitismo banalizou-se. E o que é banal não pode ser revolucionário.
L.O.
Herman José, a fazer humor há 30 anos
Quem anda agora na casa dos 40/50 deve lembrar-se de um célebre sketch televisivo, o do vendedor de caixões. "Temos os caixões Patixo, que não metem bicho" ou os "Vilaças, que são caros como o caraças". O comerciante era Herman José e a compradora Margarida Carpinteiro. Acabam o número televisivo numa gargalhada incontida, surpreendidos pelo próprio efeito que queriam causar. O programa em questão, Hermanias, tinha ido para o ar no ano anterior (1984) e Herman já tinha entrado no imaginário popular com o anterior O Tal Canal, também na televisão pública. O humor de carácter irreverente, com algumas tiradas que não agradavam a administrações ou a espectadores mais conservadores, chegaria ao cúmulo de, poucos anos mais tarde, em Humor de Perdição, a rubrica ‘Entrevista Histórica’ ter sido suspensa depois de Herman ter interpretado uma polémica Rainha D. Isabel.
R.N.
Carlos Cruz, a ascenção e queda do ‘Sr. Televisão’
Uma carreira meteórica com um fim abrupto. Apresentador de TV de grande carisma, empresário do audiovisual, actor em várias ocasiões, figura de popularidade ímpar. Assim poderia resumir-se a carreira de Carlos Cruz. Era o ‘sr. Televisão’, a cara de programas marcantes da era da TV pública solitária e, depois, também da era da TV privada, a partir dos anos 90. Na memória ficou, sem dúvida, o Zip-Zip, em 1969, que apresentava com Raúl Solnado e José Fialho Gouveia, um marco na história da televisão portuguesa. Na década seguinte, foi o anfitrião do concurso 1,2,3 – que teve o seu auge em 1985 – e, ainda no mesmo formato, em finais do século, apresentaria a primeira versão portuguesa de Quem Quer Ser Milionário?. Fora do pequeno ecrã Cruz foi, por exemplo, o rosto da campanha pela realização do Europeu de Futebol de 2004 em Portugal.
Até que, em 2003, as fundações de todo este castelo cederam: o seu nome era um dos que constava de um processo de uma rede de pedofilia que envolvia jovens menores do Colégio Casa Pia, em Lisboa. Carlos Cruz seria condenado a sete anos de prisão, depois de já ter passado um ano em prisão preventiva. Entretanto, publicou um livro sobre este trajecto com a justiça e desapareceu da cena pública.
R.N.
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1985 na política. Na economia. Na sociedade. Na cultura. No desporto. No mundo.