A histórica transferência passou imediatamente a perna à coligação, impondo-se como o assunto do dia. Perante a excitação e comoções gerais, logo os politólogos cederam o lugar nas tribunas hertzianas aos comentadores de bancada, alguns, como se sabe, em regime de acumulação com a actividade de políticos.
Temas tão enfadonhos como a sustentabilidade da Segurança Social, a TSU, o limite à dívida pública, o crescimento económico, o desemprego, a fiscalidade, o Serviço Nacional de Saúde ou a demografia foram literalmente varridos, arrumados à pressa como faits divers sem a menor importância para o futuro do país.
A Convenção do PS, no dia seguinte, não teria melhor sorte. António Costa teve de ceder a primazia, nos principais blocos noticiosos, ao fogoso presidente do clube leonino, que se lembrou de convocar os media para a hora dos telejornais da noite.
Ciente da superior relevância que o futebol ocupa na sociedade portuguesa, o líder sportinguista anunciou “um novo ciclo”, “com recursos financeiros próprios”, para que não subsistam dúvidas sobre a eventual opacidade dos cofres do clube de Alvalade. E mais não explicou.
As coisas são como são e o discurso futebolístico assemelha-se cada vez mais ao político e vice-versa. Talvez, por isso, António Costa precisou de renovar as promessas, com o emprego à cabeça – como se este se conseguisse mobilizar por decreto -, e de simular recuos, onde percebeu que pisou terrenos movediços.
Depois, seguindo a lógica do futebol, tirou da cartola o factor surpresa. O veterano António Capucho explicou as suas dores de alma. Sabe-se como os ressentimentos não iluminam o carreiro do pastor. Mas não está sozinho. Manuela Ferreira Leite e José Pacheco Pereira ajudam-no na cruzada contra o partido onde, por acaso, ainda militam.
Mas que foi Capucho dizer à Convenção? Sem corar, assumiu “as propostas do PS como globalmente positivas e credíveis”, o suficiente para exprimir o seu “apoio público ao PS nas próximas eleições”. Vale o que vale – e hoje vale pouco -, mas permitiu-lhe voltar a Cascais decerto feliz com os aplausos que ouviu no Coliseu.
A época das transferências tem outros antecedentes notórios e não menos picantes. Desde Freitas do Amaral, ministro de Sócrates, a Helena Roseta, que transitou do PSD para o PS, ambos sem um pingo de arrependimento.
Não ficaram isolados. Enumerem-se, por exemplo, as rupturas de Zita Seabra e de Vital Moreira, que trocaram anos de devoção no PCP, respectivamente, pelo PSD e PS; a de Basílio Horta, que se afastou do CDS, seduzido pelo PS. Mais longinquamente, Jorge Coelho, saído da UDP – génese do Bloco – também em direcção ao PS. Todos mudaram de camisola, após um maior ou menor período de nojo.
Nesse aspecto, Capucho não foi, portanto, original. E António Costa, não se fez rogado. Na política como no futebol, são os resultados no imediato que contam.
Jorge Jesus fez o mesmo, embora – convenhamos – com muito mais proveito mediático e da sua conta bancária.
Na Convenção, Costa entreteve-se, ainda, a desmentir a memória, ao falar num governo “que possa gerir com rigor”, naturalmente protagonizado por si próprio.
É caso para perguntar em que galáxia flutuaria António Costa enquanto foi visto como número dois de Sócrates, quando este deixou a Fazenda à beira do colapso.
Ao proclamar agora que “é altura de dizer basta” à “instabilidade das famílias”, por causa de quatro anos de emagrecimento ditado pela troika, com base no memorando assinado por um Governo PS, não é política nem intelectualmente honesto.
Compreende-se que Costa queira distanciar-se das medidas de ajustamento adoptadas pela coligação, herdeira da insensata gestão de Sócrates, mas deveria começar por reconhecer os erros cometidos.
Não o fez. Pelo contrário, rodeou-se paulatinamente de gente oriunda do círculo mais próximo do 'socratismo', como se estivessem imaculados, apagando António José Seguro da história e da foto de família socialista, com o mesmo fervor com que Luís Filipe Vieira eliminou Jorge Jesus da imagem dos bicampeões da Luz e do museu das glórias encarnadas.
Os métodos não variam, apesar das diferenças entre os 'clubes'. Os exorcismos são parte da liturgia, para expulsar o maligno, com alívio de alma e de consciência. Seja no Coliseu ou nos relvados da 'catedral'.
São as fotos truncadas a que temos direito…