E António Costa deu, nesse mesmo dia, uma entrevista ao Público em que revelou, mais uma vez, a sua concepção muito particular de Estado de Direito: em especial, António Costa revelou subtilmente o que pretende fazer com o Ministério Público caso seja eleito Primeiro-Ministro. Não é uma novidade – é apenas uma confirmação. Fundamentaremos esta nossa conclusão nas linhas subsequentes.
Antes, porém, duas brevíssimas notas sobre as diligências aos ex-responsáveis do grupo Espírito Santo: o arresto preventivo serve apenas uma função patrimonial – tem como objectivo evitar a dissipação do património dos suspeitos para salvaguardar os direitos de crédito dos potenciais lesados. Se X sofreu danos pelo crime praticado por B; o património de B deve ressarcir os danos causados a X.
Há, pois, que conservar o património de B. Mesmo em processo penal, aplicam-se ao arresto preventivo as regras constantes do Código de Processo Civil: tem-se, pois, entendido que, do ponto de vista formal, não é necessária a prévia constituição como arguido para assegurar a validade do arresto preventivo. Contudo, se se parte para o arresto, é porque há sérias e fundadas suspeitas da prática do crime pelo suspeito: impõe-se, pois, para salvaguarda dos seus direitos e para que os suspeitos possam tornar-se partes do processo em curso, a sua constituição como arguidos.
Se Ricardo Salgado, Amílcar Morais Pires e outros suspeitos não foram ainda constituídos como arguidos, estranhamos muito a estratégia do Ministério Público. Será que ainda não constituíram os suspeitos como arguidos para gerir com mais flexibilidade os prazos de dedução da acusação? Bom, compreendemos as preocupações do Ministério Público: este processo é de enorme complexidade e a lei não facilita as investigações. Mas a lei é para cumprir: se há fundadas suspeitas, os cidadãos em causa têm de ser constituídos como arguidos, sob pena de fraude à lei. Por outro lado, é-nos difícil compreender o lapso temporal (quase um ano!) entre o colapso do BES e o momento escolhido para a realização destas diligências pela investigação. Como não conhecemos o processo, há que dar o benefício de dúvida ao Ministério Público.
Verdadeiramente preocupante e alarmante foi a entrevista de António Costa ao Público publicada ontem – e que estranhamente não teve o acolhimento que merecia. António Costa – para além de banalidades, como a criação de um ministro transversal do Mar – veio afirmar que se um ministro do seu Governo fosse investigado por corrupção, então seria logo demitido. Até aqui tudo bem – António Costa até agora não se demarcou de José Sócrates, pelo que é difícil acreditar nas suas palavras, mas, enfim, acreditemos que Costa é sincero nesta sua resolução.
O problema vem a seguir: o veneno vem sempre na cauda da serpente. E que cauda venenosa tem António Costa! Se não acredita, ora repare: Costa acrescenta que “só se existirem fundadas dúvidas. Sublinho, (Costa dixit) fundadas dúvidas”. E detalha: o Ministério Público terá de informar o Governo sobre os fundamentos da investigação, as causas que originaram e as diligências a realizar – ou seja, para António Costa, a investigação a um membro do Governo por suspeitas de corrupção terá de ser feita conjuntamente entre o Ministério Público e o…próprio Governo!
O descaramento de António Costa vai ainda mais longe – o líder do PS afirma que este é o único entendimento compatível com a…separação de poderes e a lealdade institucional! Separação de poderes? Costa recupera o “pecado original” do liberalismo francês: o entendimento do princípio da legalidade e da separação de poderes como privilégios do poder executivo!
Já sabíamos que António Costa parou no tempo – agora, sabemos que Costa quer fazer recuar Portugal no tempo, regredindo dois séculos na evolução política da civilização ocidental! Ridículo!
Não tenhamos dúvidas: António Costa quer mexer no estatuto e na autonomia do Ministério Público. Quer instrumentalizar as investigações judiciais contra políticos, concretizando aquilo que já defendera no processo Casa Pia e defendeu recentemente no Programa do PS para as próximas legislativas (que, entretanto, para evitar polémicas, escondeu sorrateiramente): a protecção dos titulares de cargos políticos contra investigações judiciais.
Resta uma pergunta que tem de ser feita a António Costa: se António Costa fosse primeiro-ministro hoje, a investigação a José Sócrates teria de ser autorizada previamente por si? O Ministério Público teria de entregar toda a investigação e dialogar abertamente sobre a mesma a António Costa? Se António Costa achasse que não haveria fundamento – a investigação seria de imediato arquivada? E se o Ministério Público prosseguisse a investigação após “parecer” desfavorável de Costa, quais seriam as consequências? Os senhores procuradores seriam objecto de sanções por terem a ousadia de investigar camaradas queridos de António Costa?
Pois bem: António Costa quer limitar o Estado de Direito e o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.Em qualquer democracia saudável e com enraizado sentimento de liberdade, por muito menos, António Costa ter-se-ia demitido ou forçado a se demitir. Em Portugal, infelizmente, tudo é normal…