Que andava a fazer em 1985?
Andava no liceu, no Pedro Nunes, era da Juventude Comunista Portuguesa, namorava [risos], e vivia com a família. Nãos sei se nesse ano era da Associação de Estudantes, mas se não era, estava envolvido em qualquer coisa. Tinha uma vida normal de adolescente, e já tinha actividade política. Na altura, aliás, já era um bocadinho crítico dentro da Juventude Comunista.
Em que discordava?
Uma das razões era a posição do PCP na altura sobre a CEE. Eu era mais europeísta que o PCP. Não era mais europeísta porque a questão não se punha assim na altura, mas achava que a adesão à CEE tinha vantagens, que se vieram a comprovar na altura, apesar de o PCP também ter tido razão em alguns dos receios. Acho que os receios se tornaram reais quando aderimos ao euro. E a questão principal de ser contra a adesão nada tinha a ver com razões económicas. Tinha a ver com o ambiente de guerra fria que ainda se vivia na altura. Revia-me mais no pensamento do PC italiano e menos com o PCP.
Já lhes dava trabalho.
Já, já, entrei aos 12 anos para a Juventude Comunista. Foi mais ou menos aos 14 que fiz a escola de quadros do PCP, pornograficamente jovem. Nessa altura comecei a fazer bastantes críticas. Os primeiros sinais para mim foram da Polónia. Na minha ingenuidade de 14 anos era incompreensível a classe operária estar contra nós.
Era visto como um miúdo ou como um jovem adulto?
Era visto como um miúdo; era de facto um miúdo, não havia discussão. Aliás, percebia-se bem olhando para mim. Era um miúdo politicamente muito precoce. Lia jornais, e já o fazia antes, via o telejornal, era de uma família muito politizada.
Tratavam-no como?
Havia um misto de admiração e gozo. Por um lado era o 'já a formiga tem catarro', porque já fazia discursos e opinava em todo o lado. Aliás, com sete já o fazia. Fazia comícios no autocarro, discutia com os senhores dos restaurantes. Também estamos a falar de outro tempo. Para os mais novos não é fácil perceber que estamos a falar de 76, 77, 78, quando a política era muito mais presente nas discussões. Hoje voltou a ser um pouco, mas na altura era visto como um macaquinho que sabia fazer umas habilidades.
E como se sentia?
Era razoavelmente convencido nessa matéria, o que se perdoava, e que a partir de certa altura se deixa de perdoar.
Ainda o acham convencido?
Sim, sim, [risos]. Para dizer a verdade, acho que também não faço o esforço suficiente para contrariar essa ideia, que é sempre simplista. Tem uma parte de verdade e outra que não o é. Também era um miúdo bem disposto, tinha amigos, não vivia para a política. Tal como hoje, a maior parte dos meus amigos não tem nada a ver com a política.
Como era visto no Pedro Nunes?
Era um bocado ave rara, apesar de haver associações ligadas a partidos políticos; havia sempre alguma militância. Quase todos da JSD e da JCP, que tinham mais implantação em Lisboa. Era o liceu mais beto e mais à direita de Lisboa. Acho que só era ultrapassado pelo Filipa de Lencastre. Ganhava o PSD por maioria absolutíssima, depois ficava o CDS, e a esquerda toda junta tinha 10 ou 15%. Muita gente conhecia-me só por comuna. Nem sabia o meu nome.
Como é que o 'comuna' foi parar ali?
Vivia ali ao lado, a escola era óptima, não me arrependo nada. Depois no 10.º e 11.º a minha turma era toda ela um pouco ave rara. Não era de betos. Ainda hoje tenho dois grupos de amigos desse tempo, com quem costumo estar como frequência. Têm um interesse distante pela política. Depois tenho alguns com quem fiz o blogue, o Barnabé, o André Belo, através de quem conheci o Rui Tavares. Também andei com o Pedro Aires Oliveira, o Miguel Fontes, que veio a ser secretário de Estado da Juventude.
Era bom aluno?
Até ao nono era um aluno mau. Quando entrei no liceu chumbei uma brutalidade, por faltas, negativas.
Muita indisciplina?
Sim, ia para a rua permanentemente. Era muito indisciplinado. Quando chumbei, e ainda bem que chumbei, passei a ser um aluno médio. Sempre tive dificuldades a francês mas tinha notas normais. Era muito bom a história. A partir do 10.º tornei-me bom aluno, quando fui para letras. Era bom ou mau se uma disciplina me interessava, mas nunca estudava, estava a fazer outras coisas.
Política?
Sim, muita política. E saía, ia ao cinema. Não fui um estroina completo mas saíamos à noite. Não era um descontrolado nem um nerd careta. Tinha muita liberdade e geria-a bem. Não fui um filho problemático.
E em casa, quando chumbou?
A minha mãe chateou-se muito, claro. Foi complicado. Mas a partir daí normalizei. Tive um percurso académico estranho. Só fui para a faculdade anos depois. Resolvi que ia trabalhar primeiro. Fiz jornalismo. A atribulação foi escolha minha. Sempre fui um aluno rebelde, que desafiava muito os professores.
Por querer sempre dar uma opinião?
Muitas, sim. Sempre pronto para as transmitir de uma forma bastante clara [risos]. Quando tinha professores seguros tínhamos uma boa relação. Quando não eram, o resultado era mau.
Que anteviam para o seu futuro?
Toda a gente achava que eu ia ser político. Mas desde a quarta classe que dizia que ia ser jornalista. Foram mais ou menos as duas coisas, sem grandes surpresas.
Os motivos de fascínio eram semelhantes?
Não, eram fascínios diferentes. O jornalismo tinha a ver com o consumo de jornais. Tinha uma visão romântica, imaginava que ia fazer coisas extraordinárias. Nunca me entusiasmou o jornalismo político e só o exerci poucos meses. Queria fazer internacional, que não fiz, e felizmente comecei a fazer reportagem de sociedade. Detestei os poucos meses que fiz jornalismo de política. O que me entusiasma é a possibilidade de conhecer coisas que não conheço. O jornalismo político é em circuito fechado.
Fazemos o balanço dos últimos 30 anos nesta edição. É mais o que mudou ou o que ficou na mesma?
Muito se mantém, e no entanto o país mudou imenso. É irreconhecível. Há coisas em que mudou para muito melhor. Se olharmos para os últimos 30 anos, digo tudo ao contrário do que a maioria das pessoas acha: a escola é melhor, as pessoas são mais cultas, menos provincianas, estamos mais abertos ao exterior, esta geração perto dos 30 é solta de atavismos, é uma sociedade mais democrática. Dizemos que há mais corrupção mas porque deixámos de a achar normal – há 30 anos estávamos nas tintas para isso. A parte má, que se agravou com a entrada no euro, que foi um grande erro histórico, é a destruição de um tecido económico. Os dez anos trágicos do cavaquismo fizeram-nos perder uma oportunidade histórica. Acho incrível quando dá ar de poupado. Se houve estroina neste país foi Cavaco Silva. É a personagem política que mais me interessa. Não há outra em Portugal onde a imagem que projecta de si seja o oposto daquilo que é realmente. Para ser mais sério que ele é preciso nascer duas vezes.
Reconhece mérito a quem governou nas últimas décadas?
Sim. Tudo o que disse sobre os últimos anos, de bom e de mau, deve-se tudo aos portugueses e aos políticos. A escola pública e o SNS foram decisões de políticos. Irrita-me a imagem de que há um país bom governado por maus políticos. Nem o país é assim tão bom, nem os políticos são assim tão maus. Temos um problema histórico. A nossa elite é muito pior que a de outros países. Está habituada a viver na mama do Estado, desculpem a expressão. É sobretudo uma elite económica que produziu uma elite política. É pouco patriótica, é sempre a primeira a fugir. A ideia de nação sobrevive a uma elite. Patriota é o povo.
A ideia de pátria não costuma ser mais reclamada pela direita?
Sim, mas para o que interessa. Uma excelente imagem são aqueles banqueiros que andaram a berrar que os centros de decisão ficassem em Portugal quando foram as privatizações e depois venderam tudo o que tinham. A ideia de pátria, sobretudo associada à democracia, não é de direita. Tem a ver com soberania do povo. A ideia de pátria ligada a uma ditadura não tem qualquer sentido. Neste momento na Europa temos um poder não eleito a impor aos povos a sua vontade. Chamamos-lhe até democracia europeia.
Costuma rever muito a sua opinião?
Sim, já revi várias vezes. Não tenho opiniões de repentes. Há comentadores que têm opiniões, eu tenho um pensamento político, que depois se desdobra em várias opiniões, com a coerência possível. Desse ponto de vista, as minhas opiniões correspondem a mudanças lentas, porque as mudanças no pensamento político são lentas, a não ser que aconteça um cataclismo. As condições mudam e eu vou analisando essas condições. Já fui comunista e hoje não sou.
Era impensável ser de direita?
Nada é impensável. Não ponho essa hipótese, mas talvez tivesse que acontecer o mesmo que acontece no filme do Woody Allen. Descobrem que o miúdo que é de direita tem um aneurisma no cérebro, curam-no, e fica de esquerda [risos] Tenho respeito por pessoas de direita. Não tenho uma relação de supermercado com o meu voto. As pessoas contam, mas não voto por simpatia pessoal ou respeito moral. Se discordo politicamente, discordo. Seria capaz de votar numa pessoa de direita numa situação limite, para impedir que um fascista chegasse ao poder. Mas, em princípio, voto em posições aproximadas das minhas. Não faço sequer voto útil. Já aconteceu votar naquele que me chocava menos.
Já se absteve?
Só uma vez, porque estava fora. Mudaram as datas de umas autárquicas em Lisboa e não consegui votar. Considero a abstenção um insulto por quem lutou pela democracia. Não sou nada complacente com abstencionistas, como está na moda.
Votava em Daniel Oliveira?
Se quisesse votar, candidatava-me. Se não me candidato quer dizer que pelo menos agora não votava. Considero-me uma pessoa séria, honesta, bastante confiável. Sou uma pessoa confiável mesmo para quem não concorda comigo. Não teria dificuldade em votar em mim [risos]. Agora, vale o que vale, sobretudo quando tenho fama de convencido. Mas se me perguntasse se seria um político extraordinário, não seria.
É mais eficaz escrevendo?
Acho que tenho algum talento para pensar, para provocar debate, para não dizer sempre o óbvio. Mas tenho características que não são boas para a liderança política.
Quais são?
A actividade política exige, e exige bem, que as pessoas tenham a generosidade de não dizerem o que pensam. Sei que parece esquisito. Se dissermos sempre o que pensamos pode ser um acto de egoísmo. Querer ter razão pode impedir que a nossa razão chegue a bom porto. Falta-me essa generosidade. Também me faltam alguns defeitos para ser político. Nunca me vi como líder político. Não é por acaso que não concorro. Sempre me vi envolvido politicamente com pessoas a quem empresto capacidades para as ajudar a chegar onde quero que cheguem. Não gosto de liderar.
Ser opinion maker não é uma forma de liderança?
É diferente, e não acho que seja. Um líder não faz opinião, constrói movimento, poder, pensa e rodeia-se de quem pensa, mas constrói sobretudo capacidade de mudança. Opinião é fundamental, mas é outra coisa. Tento construir hegemonia, usando linguagem marxista. É essa a parte em que estou. Implica não ceder em coisas que quem tem que construir movimento político tem que ceder, e deve ceder. Na vida política ter razão antes de tempo é não ter razão. Um opinon maker pode ter razão antes do tempo e estar desfasado do seu tempo. Há muitos que dizem o que está na moda dizer. Não quero picar o dia a dia. Não gosto muito que digam que sou comentador.
Porquê?
Não sei o que é isso. Há a ideia de publicista mas ninguém sabe bem o que é isso. De origem sou jornalista, é disso que gosto. Depois, o que estou a fazer agora; sou colunista, para simplificar. O que faz um bom colunista é contribuir para o debate público através de uma opinião informada, coisa que não se exige muitas vezes a um comentador. Não percebo colunistas que não têm opinião política. Ou não se comprometem ou tentam fingir que não se comprometem, que ainda é pior. Há colunistas que só escrevem frases feitas.
Quem gosta de ler?
Diferentes pessoas, e não é obrigatoriamente porque concordo com elas. Leio por razões de forma, caso do Ferreira Fernandes, por exemplo. Faz um exercício extraordinário e até já tivemos vários desentendimentos por escrito. Gosto de ler pessoas dispersas. Olhe, gosto de ler o Bernardo Pires de Lima, que é de direita, como gosto muito do Pedro Mexia. Gosto de ler pessoas intelectualmente estimulantes. Irrita-me a banalidade e a banalidade do poder. Não sou um leitor compulsivo de opinião, mas vou lendo.
Lembra-se da primeira crónica?
A primeira de todas não me lembro. Cheguei a escrever quando era jornalista de redacção, fui colunista n'A Capital, e no Expresso foi uma que se chamava A Coisa, sobre o Sócrates. Isto há dez anos. Era sobre um homem apagado, sem opiniões firmes, sobre quem não se percebia o que queria. É impressionante como nos enganamos em relação às pessoas, ou como o poder muda as pessoas, ou se calhar as duas coisas. A política ou a vida não se faz sem horizonte, isso permite-nos andar, e gosto de perceber qual é o horizonte de um político.
É uma figura que vai continuar muito presente?
Não sei. Acho que na política não. Não será nada presente. Será presente no caso em que está envolvido, e sobretudo porque deste caso não sairá nada bom, a não ser fazer-se justiça, seja para um lado ou outro. A nossa discussão é outra: 'Como é que saímos desta alhada'. Como é normal, 90% do tempo vamos discutir coisas que não são fundamentais.
Consegue manter uma conversa de café sobre banalidades ou os grandes temas intrometem-se sempre?
Consigo. Devo dizer que desde que tenho programas de televisão tornou-se mais difícil. É verdade que falo de política com facilidade, não vou fingir que não. Hoje tendem é a falar mais comigo sobre política porque partem do princípio que estou informado, às vezes mal. Gosto imenso de falar de outras coisas.
Por exemplo?
Parvoíces. Em princípio, uma conversa em que realmente tenho prazer é muitíssimo disparatada. Tenho a mania que tenho sentido de humor, não é certo que o tenha, mas rodeio-mo de pessoas com sentido de humor. Tenho dificuldade em lidar com pessoas sem sentido de humor. Uma boa conversa entre amigos nunca poderia ser repetida numa entrevista. São bastante politicamente incorrectas. Há um lado de mim que não é só informação. Às vezes deixo transparecer que sou disparatado, mas tenho a dificuldade em dizer sempre a coisa certa. Não conseguiria. Um político tem que sacrificar o sentido de humor, e isso não conseguia fazer. Não pode ser irónico. Ainda hoje toda a gente acha que a Manuela Ferreira Leite defendia que o país se devia ter transformado numa ditadura durante seis meses. Não ando à caça de votos. Falo independentemente da opinião que têm de mim.
É difícil ofendê-lo?
É, muito.
O que o magoa?
Qualquer acusação que ponha em causa a minha integridade ética, qualquer insinuação de que as minhas escolhas na política tinham como objectivo um ganho pessoal. Isso ofende-me seriamente e magoa. Pode levar-me a reacções irracionais. O meu envolvimento na política é 100% generoso.
Cem por cento? Acredita que acreditam em si?
Não, é 90% generoso e 10% lúdico. Não é fácil acreditarem, mas tenho uma vantagem em relação a muita gente. Não me interessa muito a opinião que têm sobre mim. Preocupa-me mais a opinião que têm das minhas opiniões. Não me importo que fiquem com má impressão de mim para as convencer da bondade de uma ideia. Como pessoa, só me interessa a opinião dos que me são próximos. Não tenho nenhum talento para fazer de bonzinho, aquele que trata bem as crianças e os animais, que aparece em todas as boas campanhas. Não faço esses números. Se as pessoas tivessem ideia de como se enganam ao avaliar os bonzinhos, ou de como acham os antipáticos horríveis. Não sou simpático.
Mas acham-no horrível?
Não, por acaso não. No trato na rua, pelo contrário. São muito simpáticas. Acham que sou mal encarado; não faço nenhum esforço para ser bem encarado. Só o faço quando me abordam na rua. As pessoas dizem coisas boas, como é normal. Ataques só por escrito. Há um tema que me torna impopular, não escrevo sobre os animais.
Continua a gostar de touradas?
Sim, continuo. Não vou deixar de gostar de uma coisa porque isso me faz impopular. Sou incapaz de não ir à tourada sabendo que isso faz pessimamente à minha imagem. E sei que faz. 99% das pessoas a quem me dirijo acha inacreditável. Lá está, acho que um político não deveria ir.
Não gostaríamos que fosse, por uma questão de coerência?
Se se aposta a vencer este bloqueio em que vivemos, se gosta de tourada e se sabe que isso o impede do fundamental, deve ter a generosidade de amputar essa parte de si. Eu teria que amputar esta e muitas. Ao contrário do que possam pensar, passo a vida na sombra. É aí que sou mais útil, num plano mais recuado. Se calhar sou demasiado intenso e apaixonado, e não sou suficientemente ambicioso. Não quero ter qualquer papel na história. Quero só fazer a coisa que está certa. Tenho outras ambições, pessoais.
Por exemplo?
Viver e morrer rodeado de pessoas que me amam e que são boas. Tenho 45 anos, não sou velho, mas também já não sou jovem. Cada vez mais dou importância à bondade. Isto é quase pindérico de se dizer. Sempre sobrevalorizei a coragem e a inteligência, e eu próprio sempre subavaliei a bondade.
Mais um pouco e podia estar numa entrevista com o Daniel Oliveira apresentador?
Não, não. A mim não me põem a chorar [risos]. Era impossível. Já nos ligaram várias vezes por engano. Temos histórias intermináveis. Não iria a uma entrevista do Daniel Oliveira.
Já foi desafiado?
Não, e não é nada contra ele. Não é o meu género de entrevistas. Não quero ser uma personagem. Tenho uma vida fora disto. Ninguém sabe com quem vivo, nada. Se já me custa ser bonzinho na parte pública, imagine ter que o ser na vida privada. Não quero ter que ser coerente. Não quero convencer ninguém que sou bom pai e bom marido.
Não conseguindo escapar ao feitio intenso, à opinião permanente, era impossível seguir uma vida de oclusão como a do seu pai?
Não tenho o talento suficiente para fazer isso. Deixamos de precisar mesmo de reconhecimento dos outros quando atingimos um determinado estatuto sobre o que somos e o que valemos; e não falo de estatuto social. Sou só uma pessoa que escreve em jornais e que fala na televisão e de quem ninguém se lembrará dois anos depois de deixar de escrever em jornais. E farão muitíssimo bem em não se lembrarem. Não terei direito a um rodapé na história. Nem quero ter. Respeito muito quem quer ter, mas eu não. Talvez se fosse um grande escritor ou grande cineasta, aparecesse menos.
Nunca se sentiu tentado a arriscar outras escritas, por influência de Herberto, e do seu padrasto, Manuel Gusmão?
Não, nunca. Escrevia coisas mas sempre tive o bom senso de as deitar fora. Agora como não as vejo posso acreditar que era bom. Gosto muito de escrever, mas a minha escrita é de artesão, não é uma escrita de artista. Não sou um escritor frustrado. Normalmente dão maus colunistas e maus jornalistas. Já quis fazer muitas coisas que queria fazer.
Foi publicitário.
Sim, só não fui uma coisa, para a qual não teria talento. Gostava de ter sido arquitecto. Seria péssimo, não sei desenhar uma linha. Mas tenho um fascínio infantil. Tenho inveja dos arquitectos. De resto, fiz tudo o que fui querendo fazer. Não vivi atormentado com a ideia de querer ser alguém na vida. O sucesso e a fama são efémeros e absurdos, não valem nada.
O que começou a ler em miúdo?
Comecei cedo, não era um leitor compulsivo, ao contrário do meu irmão mais velho. Tínhamos muitos livros em casa. Lia Os Cinco, o Júlio Verne, Os Capitães na Areia.
E a primeira vez que leu Herberto?
Foi cedo, como era normal. Era esquisito se não o tivesse lido. Não percebi um caracol quando o li pela primeira vez. Mal tive oportunidade de ler, li, mas nem sei bem a idade que teria.
O miúdo tinha noção do que o pai fazia?
Nunca li o meu pai nem o meu padrasto com o distanciamento que as pessoas lêem. Li como é normal lerem as pessoas próximas, tentando encontrar o meu pai e o meu padrasto naquelas coisas que ali estavam, que é como não se deve ler. Por isso é que os filhos, maridos, pais, são maus leitores. Não lemos o nosso pai para procurar o autor mas para nos procurarmos a nós.
Aos 45 anos repete-se esse exercício?
Sim, é sempre igual. São sempre as mesmas pessoas. Acho fascinante quem se torna estudioso do próprio pai. Não sou nada disso. Sou herdeiro no que é meu, e que não se divide. No resto, nunca quis esse papel. É uma escolha. Desde muito cedo, desde o primeiro sítio onde fui trabalhar.
Não sabiam de quem era filho.
Não sabiam mesmo.
Aquele detalhe básico de andar na escola e nos perguntarem o que fazem os nossos pais. Como resolvia?
Na escola não tinha outro remédio e tinha que pôr o nome dele.
E a profissão?
Deixava em branco. Mas depois os professores de português denunciavam-me ou perguntavam-me. E não mentia, claro. Os meus colegas queriam lá saber, eu não era filho de um futebolista [risos]. Quando fui para o jornalismo, aí sim, tinha que me afirmar profissionalmente. Não me ofende, porque é ridículo, mas há quem diga que só escrevo nos jornais por ser filho de quem sou.
Ainda dizem isso?
Ah, dizem. As pessoas dizem tudo. É um disparate. Impus estas regras para mim próprio, por isso é fácil de lidar. Não é aquela coisa 'ah, não falo do meu pai'. Também falo.
Qual vai ser o destino do espólio de Herberto?
Não vou falar sobre isso. O meu pai tem a viúva dele, com quem viveu 40 anos, e se houver alguma coisa a dizer será por ela. Gosto muito dela e viveu até ao último minuto com ele. Nunca serei porta-voz de coisas dessas. Somos três herdeiros, faremos o que tivermos que fazer no maior dos recatos. Depois, quero que o máximo de pessoas leia o meu pai, porque é bom. Devem ler.
E hoje, ainda há quem não saiba que é filho de Herberto Helder?
Houve imensa gente que ficou a saber quando o meu pai morreu. A esmagadora maioria das pessoas que hoje sabe, aliás. Se tivéssemos feito esta entrevista com o meu pai vivo, pediria para não fazer perguntas. Já não faz sentido impor essa regra, mas é a mesma coisa. Tenho imenso orgulho de ser filho de quem sou. Nunca quererei ser o filho de. Nunca fui, não fiz disso a minha vida. Há coisas que não quero dar, porque o meu pai não quis, e ainda bem para mim que não quis. Não vou ter a importância que o meu pai tem, mas não quero que a minha filha seja alguma vez a filha de Daniel Oliveira. É uma conquista fundamental ao longo da adolescência que todos fazemos: maldizer os nossos pais, destrui-los, para ganhar autonomia. É isso que nos permite amá-los o resto da vida.