Três jovens bailarinas abanam-se ao som de uma batida electrónica forte, com o refrão repetitivo a impor o ritmo acelerado da coreografia que apresentam. Ouve-se ‘dança do gueto, dança do gueto, dança do gueto’ em loop e Teresa Nazaré, Daniela Silva e Vanessa Neto, as Black Queen como se auto-intitulam, respondem à ordem contínua com passos de hip hop conjugados com outros de kuduro. Enquanto dançam, um amigo grava a actuação com o telemóvel e, mal terminam o último ensaio antes de subirem ao palco do Lisboa Mistura, no Largo do Intendente, visionam a filmagem para corrigir as partes em que ainda não estão totalmente coordenadas.
Foi com Francisco Rebelo, membro de projectos como os Orelha Negra e Cool Hipnoise, que aprenderam o truque. O músico e produtor é o director artístico da Oficina Portátil de Artes (OPA) – ateliê pedagógico inserido no festival lisboeta e que pretende dar visibilidade e condições de trabalho a jovens artistas de bairros periféricos da capital –, e uma das primeiras coisas de que se apercebeu quando começou a trabalhar com estes jovens foi a evidente falta de consciência deles sobre o que é estar em palco. Ao filmarem-se, diz à revista da edição impressa do SOL, a Tabu, no derradeiro ensaio antes do Lisboa Mistura (decorre até domingo), «é mais fácil perceberem o que ainda tem de ser disciplinado», seja corrigir a postura em palco, a respiração ou, simplesmente, a forma como se pega no microfone para que o som não «saia comido».
Criada há dez anos, a OPA começou por ser apenas uma masterclass, mas evoluiu para o formato que tem hoje por vontade de Carlos Martins, director do evento que aposta na singular pluralidade cultural que se vive na capital como mote para grande parte da sua programação, e do próprio Francisco Rebelo, que vê nestes miúdos «enormes potencialidades». «Não sei se se vão todos tornar artistas, mas a OPA também serve para eles perceberem que esta vida pode ser uma opção profissional quando se trabalha muito e se tem um nível de exigência elevado», comenta, explicando que para as 13 actuações deste ano (quatro aconteceram ontem) foram precisos seis fins-de-semana intensos de trabalho. «Demora-se algum tempo a gerarem-se empatias. É preciso ter alguns dotes de psicologia porque eles chegam muito fechados, com muitas dúvidas e receios», revela. E o maior deles talvez seja o medo de serem alvo do estigma que, por norma, oprime na metrópole quem vem de um bairro social.
Valter Ls, nome artístico de Valter Lopes, 22 anos, descobriu há já uns anos que nem todos os lisboetas têm esse preconceito e hoje incentiva outros jovens do seu bairro, o 6 de Maio, na Amadora, a não se limitarem só por terem crescido em zonas de maior precariedade social. Este amadurecimento, ou superação do medo, foi influenciada em muito pela participação na OPA há seis anos, onde chegou através do Projecto Escolhas.
O jovem, filho de pais cabo-verdianos, interessou-se por música por volta dos 12 anos, quando um amigo lhe mostrou o programa de produção caseira Fruityloops. Foi assim que começou a fazer experiências no computador de casa ou no estúdio da Cova da Moura e a gravar os seus próprios temas, na altura de hip hop. Quando a oportunidade para participar na OPA surgiu, ainda estava neste processo de descoberta, mas «actuar no centro de Lisboa, para pessoas de fora do seu bairro, foi inspirador». «A partir daquele dia percebi o que queria fazer e para onde tinha de remar», conta, com uma timidez transparente, que Francisco Rebelo recorda ser bastante maior quando o conheceu: «Era muito, muito tímido, mas igualmente interessado».
Hoje, o director artístico não quer ter a «leviandade» de concluir que foi a OPA que impulsionou o percurso de Valter, mas a verdade é que depois dessa primeira experiência o jovem percebeu que, para evoluir, tinha de apostar na sua formação. «Fazia tudo de ouvido, mas não conseguia produzir instrumentais e tinha vergonha de perguntar. Ficava no meu canto, observava os outros e depois ia para casa tentar reproduzir. Não saía nada de jeito. Por isso decidi ir estudar e inscrevi-me na Restart».
Foi na escola profissional (que este ano é parceira da OPA) que reencontrou Francisco Rebelo, professor do curso de Som e Produção, e aprendeu a produzir sozinho os seus próprios beats, que hoje aplica na kizomba e não no rap. A par disso, criou com um amigo a sua produtora, a MKS MuziK (que promove através de um canal próprio no YouTube e já agencia outras promessas, como Guida, de 16 anos, que também actuará no Lisboa Mistura), e conseguiu angariar apoios para construir, em 2012, um mini-estúdio no Centro Social 6 de Maio, de modo «a proporcionar um espaço, de valor simbólico, para quem quer gravar e aperfeiçoar a sua música».
A personalidade reservada de Valter contrasta com a irreverência de JDN, diminutivo de Judece Dias Neto, um performer nato, nascido em Luanda há 25 anos e que veio viver para Portugal com sete. Ao contrário dos restantes participantes, Judece não cresceu na ‘grande alface’, mas o seu trajecto em Albufeira não difere muito das carências que todos ali enfrentam. Actualmente está desempregado, mas no seu currículo já conta com dezenas de trabalhos precários, que o ajudam a pagar a renda de um quarto e permitem-lhe, mesmo que com grandes dificulades, perseguir o sonho de «fazer da arte» a sua vida. Talento não lhe parece faltar.
Aos incríveis dotes para a dança, aperfeiçoados numa academia que frequentou com uma bolsa de estudos, juntou a escrita de letras ásperas em canções que misturam electrónica, rap e spoken word. A música, conta, é uma descoberta relativamente recente, mas que quer desenvolver com o lançamento na internet de um EP em breve. Tal como Valter Ls, Guida ou a jovem bailarina Teresa Nazaré, JDN acredita que a participação na OPA deste ano pode funcionar como rampa de lançamento para algo maior. Quem sabe, até, ajudar a concretização o sonho absoluto, transversal a quase todos estes jovens: tornarem-se artistas de sucesso num universo muito mais global do que as fronteiras dos seus bairros.