2. Na Europa, cuja elite, mesmo a mais especializada, não consegue perceber a singularidade política e social dos Estados Unidos da América, aproveitou-se o ensejo para voltar a salientar a hipocrisia desta extraordinária Nação: por um lado, os EUA apregoam a liberdade e a tolerância noutras latitudes, ajudando vários povos a conquistarem a democracia, após o derrube de regimes ditatoriais e sanguinários; por outro lado, os EUA – a quem estas cabecinhas bem pensantes chamam depreciativamente ‘senhores do mundo’ – nem sequer conseguem resolver os problemas da sua própria ‘casa’, sendo um país perigoso, onde a banalidade do mal é uma constante.
3. Escusado será dizer que tal análise, para além de pueril e superficial, é manifestamente errada. Os dois planos não se confundem: uma realidade é o papel dos Estados Unidos na manutenção e promoção da segurança internacional e do equilíbrio geoestratégico – os EUA não são os ‘senhores do mundo’, não são os ‘senhores da democracia’, mas serão certamente os ‘senhores’ que mantêm viva a nossa esperança de vitória definitiva da democracia liberal sobre todas as formas de totalitarismos e barbáries legitimadas pela estrutura institucional do Estado. Hoje o mundo é bem melhor do que aquele em que os nossos antepassados viveram: e isso devemos, em grande parte, aos Estados Unidos da América.
4. Contudo, como todas as Nações, os Estados Unidos da América têm as suas dificuldades internas, as quais se explicam, em larga medida, por factores históricos. Ao contrário da Europa aristocrática, os Estados Unidos nasceram sob o signo da liberdade – liberdade individual que se decompõem em várias liberdades do indivíduo face ao Estado. A crença de que todos o homens são criados iguais, sem distinções de ‘sangue’, sendo o seu êxito o resultado do seu mérito, animaram os ‘pais fundadores’ da Nação que se converteu num ideal político. Ideal político que paulatinamente determinou a evolução política, económica e social do Mundo. À luz das representações políticas e sociais do século XVIII, a igualdade entre os homens era compatível com a persistência de diferenciações baseadas no sexo e na raça: a escravatura era então considerada vital para o dinamismo da actividade económica. A escravatura assumia particular importância nos Estados sulistas, que integraram a constituição do novo Estado (as treze ex-colónias britânicas) ou que se vierem a ser posteriormente integradas na União (como o Louisiana que viria a ser adquirido à França, em 1803, pelo Presidente Thomas Jefferson).
5. Depois deste primeiro momento constituinte, um outro momento que ditou a emergência dos Estados Unidos da América foi a Guerra da Secessão que opôs os estados do norte (mais industrializados) e os estados do sul (essencialmente agrícolas e, logo, mais dependentes do trabalho escravo), na sequência da iniciativa legislativa do Presidente Abraham Lincoln e abolir a escravatura. Os estados do norte venceram a guerra e Abraham Lincoln afirmou-se como o arquitecto mais ilustre da União: neste momento histórico, o poder federal reforçou-se, erigindo mecanismos institucionais, jurídicos e políticos susceptíveis de garantir que aquilo que unia os estados seria muito mais forte do que aquilo que os dividia. Pois bem, a Guerra da Secessão e as suas repercussões foram mais importantes do que a própria aprovação da Constituição de 1787: podemos, destarte, falar de um segundo momento constituinte que iria determinar a evolução político-constitucional dos EUA. Até hoje.
6. Pois bem, todas as construções jurídicas e a discussão sobre o papel do Supremo Tribunal dos Estados Unidos são ainda tributárias do legado da Guerra da Secessão. Na História, dois séculos é muito pouco tempo: o racismo, mais do que um problema político, é um problema social. De valorações sociais e éticas, com uma forte componente cultural: as famílias prejudicadas com o fim da escravatura foram passando esse testemunho, esse “desejo de vingança”, de “acerto de contas com a história, para as gerações subsequentes. E contra esta passagem de testemunho familiar é muito difícil actuar: ainda para mais considerando que os líderes políticos estaduais absorveram estes valores familiares ou tiveram de adoptar um discurso muito ortodoxo quanto à segregação racial para conquistar votos.
7. Neste contexto – para perceber as dinâmicas sociais nos Estados Unidos não podemos ignorar a História -, a Governadora da Carolina do Norte propôs a proibição de utilização da bandeira da Confederação (bandeira que representa os 13 Estados fundadores dos EUA, portanto, evocando o período anterior à Guerra Civil), que ainda é hasteada em muitos lares de famílias americanas do sul do país e constitui inspiração das bandeiras estaduais de Estados como o Mississípi, Tennessee ou do Arkansas. Será uma medida adequada?
8. Bom, em primeiro lugar, a interdição do uso da bandeira da Confederação suscita problemas de admissibilidade constitucional. Mesmo partindo da iniciativa do poder político estadual, trata-se de uma restrição da liberdade dos cidadãos em utilizar os símbolos políticos e históricos, o que se poderá considerar protegido pelo direito de livre pensamento político e expressão. Mais complicado ainda se poderá revelar a intervenção do poder político federal (Congresso e Presidente dos Estados Unidos) na promoção da interdição da bandeira da Confederação: o federalismo dos Estados Unidos assenta no respeito pela autonomia e pelos direitos retidos pelos estados (“rights retained by the states”). Daí a inteligência de Barack Obama que se distanciou subtilmente de tal iniciativa política, lembrando que é preciso pedagogia e bom senso para vencer a luta contra o racismo e todas as formas de discriminação. A chave para a resolução deste problema está na educação para a cidadania constitucional, como qualifica a Professora da Universidade de Vanderbilt, Suzanna Cherry: a escola deve ser um agente activo na promoção dos valores da Nação – sobretudo da liberdade e da tolerância – assumindo o poder federal maiores poderes de orientação programática e de planeamento.
9. Não nos parece, pois, que a bandeira da Confederação seja o ‘diabo’ político e constitucional, como Mark Graber adjectiva o período da Guerra da Secessão – é o racismo e a manutenção de uma realidade histórica nunca ultrapassada que ainda é um obstáculo ao robustecimento social da livre e extraordinária Nação Americana.
10. E politicamente, a polémica em torno da bandeira poderá gerar consequências? Poderão influenciar o debate das primárias para a escolha do candidato presidencial no lado democrata e no lado republicano? Julgamos que não será uma questão fundamental, decisiva ou sequer muito pertinente. O debate das primárias será dominado por questões conjunturais, de curto prazo – e não por questões estruturais, de reflexão profunda sobre o devir dos Estados Unidos. Até porque o tema da proibição da bandeira da Confederação é incómodo para os dois lados político-partidários: do lado republicano, o tema é incómodo porque se revela contrário a uma das bandeiras do partido – o respeito pela autonomia dos estados – e a ala conservadora republicana tem sido acusada de ser conivente com actos bárbaros como foi o tiroteio em Charleston; do lado democrata, a candidata democrata Hillary Clinton poderá não estar muito confortável em abordar esta temática. Porquê? Porque foi o seu marido, antigo Presidente Bill Clinton, que enquanto Governador do Arkansas, reabilitou a bandeira da Confederação.