Olhar o real e ver ficção

Antes de ver, Cláudia Varejão já sabia que os seus olhos iam gostar. As imagens que guardava da infância, alojadas na memória depois de muitas horas em frente à televisão a assistir desenhos de animação japonesa, os relatos de amigos nipónicos e a informação acumulada através de livros, reportagens, fotografias ou filmes alimentavam, durante anos,…

Apesar da atracção generalizada, a realizadora concentrou-se no particular nas duas viagens que realizou ao país para, assim, concretizar um novo projecto: Ama-San, sobre as mulheres que ao longo de vários séculos asseguram a captura de algas, ouriços, abalones, ostras e as suas pérolas, sem o auxílio de botija de ar ou qualquer outra ferramenta que as ajude a permanecer debaixo de água. 

O impulso para as filmar chegou através de um livro de poesia, volume que hoje já nem se recorda do título. Só lhe ficou a referência às Ama (que em japonês significa 'pessoa do mar') e a vontade de descobrir mais coisas sobre estas mulheres. Servindo-se da pesquisa mais democrática de todas, começou a vasculhar  na internet e a construir todo um imaginário em torno das muitas imagens das décadas de 1950 e 60, na sua maioria a preto e branco, que abundam nos motores de busca. Com uma avidez imparável, recolheu dezenas de informações que, na sua mente, afunilavam todas para um fim: ir ao Japão, conhecer estas mulheres e filma-las. Até porque, refere, contar as histórias de pessoas concretas tornou-se uma paixão desde que começou a fazer filmes, em 2004, quando ainda cursava cinema no Programa de Criatividade e Criação Artística da Fundação Calouste Gulbenkian. 

Essa atracção pelo lado humano influenciou a aproximação às Ama-San. “Parti com um olhar muito cinematográfico. Na verdade, o lado etnográfico não me interessou tanto. O que me motivou foi o conjunto de características deste ofício: serem mulheres, trabalharem em grupo, a partir do mar, e serem emancipadas dentro de uma sociedade matriarcal. Tudo isto reunido parecia cinema. 'Uau, isto existe mesmo? Se existe é ficção!'“. 

A expectativa não a traiu, mesmo tendo encontrado uma realidade distante da que pressagiou durante a pesquisa.

Hoje, por exemplo, as Ama-San já não mergulham quase despidas, mas sim com fatos de borracha, afastando-se do imaginário de ninfas do mar que as imagens que circulam na net sugerem. Foi, aliás, uma certa “banalidade” que marcou os contactos de Cláudia com estas mulheres. “São histórias como as nossas, de casa, família, refeições, trabalho… Não vivi experiências épicas, mas para mim a beleza está no quotidiano e foi isso que procurei. Agora, o trabalho delas é impressionante, a bravura que revelam quando chegam ao mar. São muito destemidas e isso também se reflecte no dia-a-dia em casa. São o oposto à figura feminina da gueixa”, comenta. 

Constatar a média de idades destas mulheres, que se situa entre os 50 e 85 anos, foi outra surpresa. Devido à dureza da actividade – que além da ausência de botija de ar, obriga muitas vezes a mergulhos de 20 metros de profundidade, na sua maioria com imersões de dois minutos cada -, Cláudia Varejão esperava encontrar mulheres mais jovens. Só conheceu uma, de 37 anos (dois anos mais nova do que a própria realizadora). “As raparigas novas preferem ir servir à mesa em Tóquio ou Osaka”, conta, salientando a preocupação que o país sente em relação à falta de renovação da profissão. 

Em tempos longínquos, contextualiza, a venda de abalone e respectiva exportação para a China transformou-as num forte potencial de enriquecimento económico, ao ponto de serem protegidas pelas forças imperiais japonesas a fim de se assegurarem as entregas regulares dos tão cobiçados tesouros do mar. A actividade era de tal maneira recompensadora que o sustento da família dependia delas, com muitos dos maridos a nunca terem de trabalhar na vida. Hoje, porém, já não é assim. O valor das remunerações desceu bastante e as vilas onde elas vivem estão agora muito envelhecidas. 

Este ambiente vai estar exposto no filme que Cláudia Varejão está a finalizar – possível graças a uma bolsa da Fundação Oriente e ao apoio de 60 mil euros atribuído, em 2013, pelo Instituto de Cinema e Audiovisual -, mas antes da longa-metragem estrear, pode-se ver parte do trabalho a partir de hoje, no Museu do Oriente, em Lisboa, na exposição simplesmente intitulada Ama-San e que ficará patente até 30 de Agosto. 

Por não se considerar fotógrafa, Cláudia Varejão adverte que as imagens justificam-se, sobretudo, pelo seu “valor narrativo”. Aliás, esta é a primeira vez que a realizadora expõe uma parte essencial do seu trabalho, mas que fica sempre escondida. Iniciar os projectos pela fotografia tornou-se um hábito, uma espécie de 'aquecimento' antes de ligar a câmara de filmar. “É mais fácil definir que cenários, personagens, ambientes filmar partindo da fotografia”, explica a autora, revelando que o método não belisca em nada o lado “muito intuitivo” do processo de filmagem. “Filmar não deixa muito espaço para a razão. Está a acontecer no momento e é preciso reagir. Por isso, o meu olhar é sempre muito instintivo, nunca enceno nada. Só na montagem”. 

Quando estrear, Ama-San será o sexto filme de Cláudia Varejão, depois de uma curta documental e quatro de ficção. Atribuir um género obriga-a a catalogar o novo filme de documentário, mas a realizadora gosta de trabalhar o limbo entre realidades, ou não fosse o “cinema, por si só, uma mentira que cria verdade no olhar dos outros”. 

alexandra.ho@sol.pt