Amar demasiado

O amor é inesgotável como o mar. Dizem-nos isto desde a mais remota infância; metade da população mundial, independentemente de credos ou estatutos, é educada nesta ideologia do amor total, da entrega à felicidade alheia, da dedicação a fundo perdido.   

A literatura contrária a esta ideologia, liderada pela Sereiazinha de Hans Christian Andersen, que se transforma em mulher através da dor física (as pernas que lhe permitem andar doem-lhe a cada passo como punhais) e do sacrifício do seu melhor dom – a voz – apenas tem servido para reforçar esta mensagem: antes acabar desfeita em espuma na areia do que desistir da glória do amor. 

A outra metade da população é educada para a vitória concreta do eu e dos seus impulsos acima de todas as coisas e de todos os seres:  «O homem fez-se para lutar, para guerrear!», como exclama o Soldado Salvador em Non, ou a Vã Glória de Mandar de Manoel de Oliveira. As guerras perdidas – e todas o são, com o seu cortejo de mortos e torturados – não conseguiram anular esta ideologia, em vigor desde a madrugada da espécie humana. 

O embate entre estas ideologias extremas criou o universo em que vivemos, apesar da racionalidade moderadora das leis que, nos últimos séculos e numa parte do mundo, têm tentado torná-lo menos sangrento. 

Não há lei que nos salve do que nos foi ensinado na infância, e as infâncias repetem-se, entre fadas ciumentas, sereias abnegadas, soldadinhos de chumbo e super-heróis destinados a trocar o amor em Ítaca pela aventura da conquista.  

André Téchiné fez um filme, que acaba de estrear em Portugal, sobre esta questão central e eterna: O Homem Demasiado Amado.

O ponto de partida é a história real de uma herdeira francesa desaparecida em 1977 depois de trair a mãe, desapossando-a do Casino que possuía, por influência do ex-advogado dela, pelo qual se apaixona perdidamente. 

O mistério sobre o destino da jovem mantém-se até hoje, tendo o advogado sido condenado a 20 anos de prisão em 2014, no último de vários julgamentos sobre o processo.

Mas o enredo é apenas um pretexto para reflectir sobre o tema do amor excessivo, tão excessivo e arrogante que se alimenta do próprio desamor. 

Este homem faz-se amar através de uma disponibilidade de provedor – ele está ali, atencioso, para orientar os negócios da mãe e da filha, para servir de motorista e companheiro – e de uma negação firme da palavra amor. 

Tem uma família que é o seu escudo e várias amantes às quais não mente; essa verdade fria é o seu alibi ético e o seu isco: todas se sentem desafiadas pela couraça sentimental daquele homem, e ele gere esse desafio com mestria. 

É o contemporâneo homem sem qualidades em todo o seu esplendor de mediocridade tácita. Há uma cena em que o sedutor conta à jovem herdeira apaixonada que teve de enterrar o irmão sozinho, porque os pais, ausentes, limitaram-se a enviar-lhe dinheiro. Ela abraça-o e reforça a sua necessidade de o 'salvar'. Os homens são educados para guerrear e as mulheres para os salvar. 

Há muito tempo que não via um filme tão completo: a reflexão sobre o amor equívoco e os curto-circuitos da ambição estende-se à perturbante e perturbada relação entre a mãe e a filha (Catherine Deneuve e Adèle Haenel, ambas prodigiosas). 

Vale a pena ir ao cinema para ver, em absoluta concentração e ecrã gigante, os filmes de Techiné ou de Lars Von Trier – o autor do brilhante  Ninfomaníaca que a nossa imprensa pornográfica classificou esta semana como pornografia. 

A arte é um relâmpago iluminando o escuro, ou não é nada. 

inespedrosa.sol@gmail.com