Maria Barroso. A angústia do cativeiro

Se 1960 fora um ano desafiante, 1961 veio mesmo a ficar na história como um annus horribilis para o regime. Na madrugada de 22 de Janeiro, tinha início o célebre assalto, concebido por Henrique Galvão, ao paquete Santa Maria. A 28 desse mês, era entregue ao Chefe do Estado, Américo Thomaz, o Programa para a…

Entretanto, o Programa para a Democratização da República continuava a mexer. Em Março, um grupo de dezenas de cidadãos de vários quadrantes – incluindo uma série de nomes sonantes da literatura, do jornalismo e da advocacia – remeteu a Américo Thomaz um abaixo-assinado. Entre os subscritores desta petição esteve o já septuagenário capitão Alfredo Barroso, que, a 14 de Abril, seria detido pela PIDE, por «actividades contra a segurança do Estado». Maria Barroso recorda: «O meu pai foi preso pela última vez na véspera de fazer 74 anos – ‘festejou-os’ na Polícia Política, na Rua António Maria Cardoso, a fazer a tortura do sono. Teve uma síncope ao fim de dois dias e duas noites sem dormir e ia morrendo… Eu e as minhas irmãs Fernanda e Judite demos por isso, porque fomos visitá-lo – aquelas visitas que se faziam na própria PIDE, com a assistência de dois agentes – e ele cambaleou ao levantar-se da cadeira. Nós perguntámos-lhe: ‘O que é que o paizinho tem?’. E ele respondeu: ‘Ah, não é nada…’. Mas eu fui ter com um amigo nosso – o Mário Monteiro, que era médico de um inspector da PIDE – e disse-lhe: ‘Senhor Doutor, passou-se qualquer coisa com o meu pai, porque ele cambaleou ao levantar-se e não está bem’. O Mário Monteiro pediu então na PIDE para ver o meu pai – o que eles levaram uma semana a autorizar. Entretanto, encheram o meu pai de medicamentos, porque não queriam que o médico se apercebesse de que ele tinha estado bastante mal».

Ao cabo de quase um mês de cativeiro, Alfredo Barroso foi devolvido à liberdade a 12 de Maio. Maria u Barroso,  no entanto, não teve tempo para se sentir aliviada com a libertação do pai, visto que, na manhã desse mesmo dia, teve a PIDE à porta para lhe levar o marido. Alguns anos mais tarde, Mário Soares narraria esse episódio no seu Portugal Amordaçado.

Passaram dias, semanas, meses, sem qualquer perspectiva de uma libertação iminente de Mário Soares. Demasiado tempo para ficar à espera, sem fazer nada. A 8 de Agosto de 1961, Maria Barroso, contando com o apoio de advogados amigos do marido, dava entrada com uma «petição de Habeas Corpus», dirigida ao «Exmo. Senhor Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça». Ao longo de 17 pontos, desenvolvidos em 11 páginas, esgrimia argumentos contra a actuação da polícia política e os processos anti-democráticos do próprio regime.

A ordem de libertação chegou por fim na noite de 4 de Novembro, data em que terminava a campanha para as eleições legislativas, agendadas para 12 desse mês. Mário Soares não pôde, portanto, candidatar-se a deputado, como fora sua intenção. De qualquer modo, teria sido inútil: uma vez mais, os candidatos oposicionistas desistiram à boca das urnas, por falta de garantias quanto à idoneidade do acto eleitoral. Numa altura crítica da sua existência, o regime voltava assim a assegurar o pleno dos 120 lugares no Parlamento.

Nada disso, foi, no entanto, suficiente para que 1961 terminasse sem mais alguns momentos de forte turbulência. De resto, o mês de Dezembro revelou-se pródigo a esse respeito. No dia 4, o Governo, que tinha ainda bem presente a evasão de Álvaro Cunhal do Forte de Peniche, quase dois anos antes, confrontava-se com um embaraço semelhante, quando outro grupo de dirigentes comunistas conseguiu evadir-se de Caxias, socorrendo-se, ironicamente, de um carro blindado que Hitler oferecera a Salazar. No dia 18, o diferendo que opunha Portugal à Índia desde que esta se tornara independente da Grã-Bretanha, em 1947, culminava na invasão de Goa, Damão e Diu por tropas da União Indiana, que, em apenas 36 horas e quase sem resistência, puseram um ponto final a quatro séculos e meio de domínio português naqueles territórios.

Por último, a poucas horas da chegada de 1962, era posta em marcha mais uma tentativa para depor o regime por via militar. Maria Barroso recorda: «Lembro-me de estarmos nas Cortes a passar as festas, em 1961, quando, na passagem de ano, se deu o Golpe de Beja». Mas o assalto ao Regimento de Infantaria 3, naquela cidade alentejana, saldou-se num novo fracasso. Humberto Delgado, que viera de Marrocos para assumir o comando da revolta, conseguiu regressar em segurança ao exílio – rumo a que alguns dos conspiradores, como Fernando Piteira Santos ou Francisco Ramos da Costa, também se viram obrigados, para não serem presos. Em contrapartida, muitos outros acabaram detidos ou expulsos das Forças Armadas. Mário Soares, que acompanhara de perto os preparativos do golpe, não escapou ao acerto de contas: encarcerado no Aljube a 15 de Fevereiro de 1962, aí esteve três semanas, sendo solto a 8 de Março.

Entretanto, e apesar do dispêndio de tempo a que a gestão da vida familiar e do colégio a obrigavam, Maria Barroso, sentindo os filhos mais crescidos e menos dependentes, dispôs-se a empreender o sempre adiado regresso aos palcos. O mote foi dado por um convite de Jacinto Ramos. Até à estreia, a 26 de Janeiro de 1965, a expectativa em torno de O Segredo continuou a encontrar eco nos jornais e revistas, com a abertura dos ensaios (no Tivoli) à comunicação social a contribuir para esse efeito.

A 23 de Janeiro, o assunto merecia honras de capa na Rádio & Televisão, com direito a duas páginas inteiras de texto e fotografias no interior da revista, grande parte das quais preenchidas com uma entrevista a Maria Barroso.

Enquanto Soares se dedicava ao dossiê Delgado, Maria Barroso abraçou um novo desafio. No início de Setembro, a actriz rumava a norte, para integrar o elenco do segundo filme de um jovem cineasta cuja primeira obra – Verdes Anos, estreada em 1963 – fora uma das películas inaugurais da vanguarda do Novo Cinema Português: «O Paulo Rocha foi ver uma das peças que fiz no Villaret e convidou-me entrar no Mudar de Vida, um filme que ele realizou na praia do Furadouro, ao pé de Ovar. O Paulo Rocha é um grande realizador, um homem culto, sereno, equilibrado. E dirigia muito bem os actores. Não os influenciava nesta ou naquela inflexão quando falavam. Se tinha alguma crítica a fazer, fazia-a, mas sempre de uma maneira muito inteligente. Fiquei com muita consideração por ele. O filme era bastante interessante e quem fez o papel principal foi um grande actor brasileiro, o Geraldo d’el Rey [1930-1993]».

Mudar de Vida só estrearia nos cinemas em Abril de 1967, mas começou muito antes a atrair as atenções da imprensa.

ESPECIAL MARIA BARROSO

Introdução: Uma mulher de garra

1. As primeiras memórias

2. Filha de pai rebelde

3. Um poema em cena

4. Entre a faculdade e o Nacional

5. No palco do combate

6. Uma carreira interrompida

7. A angústia do cativeiro

8. Primavera adiada

9. De Aveiro à Alemanha

10. No Palácio de Belém