Maria Barroso. As primeiras memórias

Maria de Jesus Simões Barroso nasceu a 2 de Maio de 1925 na Fuzeta (Olhão), numa fase de reacendimento da tensão política no país. 

Pouco mais de um ano depois, chegavam à Fuzeta, como a todo o país, notícias do sucesso de outro golpe militar, desencadeado a 28 de Maio de 1926 pelo marechal Gomes da Costa, a partir de Braga. Era o princípio de outra ditadura. O governo de António Maria da Silva, em funções há cinco meses, ainda tentou resistir, mas desta vez não haveria retorno.

 Numa exposição ao ministro da Guerra, em 1935, o pai de Maria Barroso deixaria o seu testemunho sobre esses acontecimentos: «Com a autoridade que suponha dar-me a isenção e saníssima fé republicanas, combati rudemente, pela palavra, os desmandos políticos dos partidos, nos seus últimos dois anos, até que surge o movimento de 28 de Maio, no qual, fiel aos meus propósitos e princípios, não entrei – cooperando ou combatendo-o. Encarei-o, admiti-o, e justifiquei-o mesmo, como consequência lógica dos desbragamentos políticos daquele tempo».

Mas se a princípio muita gente quis acreditar nos bons intentos dos militares, cedo se tornou claro que as movimentações não ficariam por ali. O facto de o parlamentarismo e a Constituição de 1911 terem sido suspensos – e com eles as liberdades e garantias – não resolvia, por si só, o problema da instabilidade política. A 17 de Junho, novo golpe de Estado: Gomes da Costa posicionou-se em várias frentes à volta de Lisboa, intimando o chefe de Governo a demitir-se. Perante «a impossibilidade de resistir à imposição» e convencido de que as instituições republicanas não estariam em perigo, Mendes Cabeçadas retirou-se. A 7 de Julho, duas semanas depois de estabelecer a censura à imprensa, Gomes da Costa recebeu um ultimato semelhante. Incapaz de recolher apoios para travar a facção direitista, acabou por também sair de cena. Óscar Carmona assumiu a chefia do Executivo e, meses mais tarde, a Presidência da República.

Dois dias antes do golpe de 28 de Maio de 1926 fora publicada em Diário do Governo a nomeação da mãe de Maria Barroso como professora oficial da escola primária feminina de Palmela. No entanto, pouco antes da tomada de posse, aconteceu um revés. A 31 de Agosto, o marido foi «colocado no quadro da sua arma», ao abrigo de uma norma legal aplicável a todos os oficiais «que se encontravam nos respectivos estados-maiores sem comissão de serviço».

Na tentativa de ficar perto da mulher e dos filhos, Alfredo fez um requerimento a pedir que os soldos lhe fossem pagos pelo Regimento de Infantaria 11, em Setúbal, enquanto aguardava guia de marcha para qualquer unidade. Nessas circunstâncias, a mudança para Palmela teria sido a escolha óbvia, mas, embora a tenham ponderado, os Barroso quiseram ficar mais perto do quartel do que da escola e fixaram-se na cidade sadina, primeiro na Travessa do Carmo, a seguir na Avenida Luísa Todi. Apesar de ter tomado posse do seu lugar de professora a 13 de Setembro, Maria da Encarnação esteve quase dois anos afastada do ensino. Esse interregno na carreira coincidiu com um novo período problemático na vida familiar. u

A pequena Maria de Jesus tinha 16 meses quando chegou a Setúbal com os pais, a avó e os quatro irmãos mais velhos: Alfredo, de dez anos; Vergílio, de sete; Fernanda, de cinco; e Alberto, de três. A Fuzeta ficava para trás, mas permaneceria grata ao pai de Maria Barroso pela actividade cívica que ele ali desenvolveu. A população lembrá-lo-ia especialmente em 1970, o ano em que morreu – já em plena primavera marcelista –, ao mobilizar-se para dar o nome do «intransigente democrata» a uma rua da freguesia, o que só conseguiu após o derrube da ditadura pela revolução de 25 de Abril de 1974.

 Em Setúbal, Alfredo Barroso, reviralhista desde a primeira hora, ainda mal se tinha instalado e já se empenhava no combate ao regime.

Enquanto reinava a indefinição e Alfredo, de cama, «bastante adoentado», irrompia no Porto, sob a liderança do general Sousa Dias, o golpe revolucionário de 3 de Fevereiro de 1927, a primeira tentativa organizada de derrube do regime. «Por volta das 11 horas, li no jornal O Século que no Porto tinha eclodido um movimento revolucionário republicano, que se apossara da cidade e dominava o Norte do país. Fazendo das fraquezas forças, ergui-me do leito e saí, entrando no quartel do R.I. 11, onde tudo decorria normalmente».

À medida que iam chegando do Porto notícias cada vez mais contraditórias, em Setúbal o clima de optimismo das primeiras horas foi dando lugar ao desânimo e ao medo. «Convenci-me que o movimento revolucionário estava vitorioso e que não carecia mais da minha acção e serviços. Fui para minha casa jantar e, já noite, saí para dar uma volta pela cidade. […] Horas depois foram acordar-me e dizer-me para voltar a ocultar-me, pois […] as autoridades ditatoriais estavam senhoras da situação, […] tinham invadido a administração do Concelho e prendido todas as pessoas que lá se encontravam […] e me iriam também prender. Que a revolução continuava em Lisboa, embora carente de apoio pela cessação e derrota do movimento do Porto. Fui ocultar-me numa barraca do Bairro da Lata e ali fui recebendo, durante os dias 8 e 9, as notícias que meus vários agentes de ligação ali me iam levar. Na madrugada do dia 10, confirmada a cessação da luta e derrota da revolução em Lisboa, regressei a minha casa, onde, na manhã do dia 11, fui preso e transportado para o quartel do R.I.11 e logo interrogado». Depois do interrogatório, Alfredo Barroso ficou retido no quartel enquanto as investigações prosseguiam. Face aos indícios existentes contra ele, na manhã de 17 de Março foi levado de Setúbal, em primeira classe, no comboio das 6h47, rumo à Cadeia Nacional, em Lisboa – onde foi captada a primeira imagem existente de Maria Barroso. Com apenas dois anos, aparece ao lado do pai, vestido de branco como ela, e da irmã mais velha, Fernanda.

A 23 de Setembro de 1927, o pai de Maria Barroso compareceu perante um colectivo de juízes. Ia acusado do crime de «rebelião». De acordo com os termos da sentença, «o Tribunal, em conferência e por unanimidade julgou improcedente e não provada a acusação». Novamente um homem livre, foi nessa qualidade que no dia seguinte, 24 de Setembro, Alfredo se apresentou no Comando Militar de Setúbal, para regressar ao serviço.

Entretanto, houve desenvolvimentos na situação profissional da mãe de Maria Barroso: tecnicamente colocada em Palmela mas sem ensinar desde 1926, Maria da Encarnação Simões iniciou, a 7 de Maio de 1928, uma comissão de serviço na escola masculina de Santa da Maria da Graça, em Setúbal. No fim desse mês, o subdirector da 1.ª repartição da Arma de Infantaria escreveu ao chefe do Estado Maior do Governo Militar de Lisboa, a pedir que o informasse se havia «inconveniente» em que Alfredo Barroso fosse colocado no Batalhão de Caçadores n.º7, em Lisboa, para substituir outro oficial que se encontrava ao serviço da 3.ª Companhia de Saúde. Na volta do correio, recebeu um contundente «não convém». De facto, comprovou-se que não convinha, quando, a 20 de Julho, eclodiu na capital um novo golpe contra a ditadura e foi o Batalhão de Caçadores n.º 7 a dar início à revolta.

Apesar de ter ficado em Setúbal, o pai de Maria Barroso não deixou de tomar parte nos esforços revolucionários, que se propagaram a vários pontos do país, incluindo a cidade sadina. Mas, em menos de 24 horas, a revolta acabou estrangulada pelo regime. A 22 de Julho, e à semelhança de muitos outros oposicionistas, Alfredo foi preso no rescaldo dos incidentes.

A sua libertação em 1928 ficou Alfredo a devê-la, como ele próprio escreveu, a um «oficial honesto e rectíssimo» – o major José de Mendonça de Salazar Moscoso. Os problemas de Alfredo não acabaram quando saiu em liberdade. De acordo com o seu relato, foi mandado residir para Almeida, no distrito da Guarda. Recém–instalado, a 29 de Setembro de 1928 redigiu um requerimento ao ministro da Guerra, a pedir para se fixar em Portimão.

O despacho favorável do ministro permitiu aliviar o magro orçamento familiar. No entanto, a 1 de Dezembro, o pai de Maria Barroso fez um novo requerimento. Com a mulher a sofrer de uma «profunda anemia e outras afecções» que requeriam tratamento e o primogénito – Alfredo, de 13 anos – afectado por «várias lesões internas e externas (bem patentes aos olhos do observador pouco atento)», o tenente pedia «25 a 30 dias de licença para poder ir a Setúbal e a Lisboa tratar de sua esposa e filho, antes que o estado de ambos se agrave e se transforme em doença irremediável».

Generoso, o ministro não se limitou a deferir o requerimento. A 26 de Dezembro de 1928, decidiu: «Caso o interessado assim o deseje, pode ficar com residência fixada em Setúbal». Alfredo não desejava outra coisa. Junto da família, celebrou o fim de mais um ano difícil e a esperança de melhores dias em 1929. Remontam a esses dias as primeiras memórias de Maria Barroso.

 

ESPECIAL MARIA BARROSO

Introdução: Uma mulher de garra

1. As primeiras memórias

2. Filha de pai rebelde

3. Um poema em cena

4. Entre a faculdade e o Nacional

5. No palco do combate

6. Uma carreira interrompida

7. A angústia do cativeiro

8. Primavera adiada

9. De Aveiro à Alemanha

10. No Palácio de Belém