Maria Barroso. Entre a faculdade e o Nacional

Na Faculdade  de Letras de Lisboa, apesar do pouco tempo que as suas obrigações com o teatro e o estudo lhe permitiam despender, Maria Barroso viveu intensamente o ano lectivo de 1945/46 junto da pequena minoria de colegas politicamente comprometidos: «Alguns que depois até se meteram na política, e cujos nomes não digo, não se…

Compensando a ausência de alguns veteranos, a fornada de caloiros que chegou à Faculdade de Letras em 1945/46 trouxe caras novas ao núcleo politicamente activo – entre elas, Luísa Irene Dias Amado, que já antes se havia cruzado com Maria Barroso: «Tínhamos andado ambas no Liceu Pedro Nunes, frequentando anos diferentes. Os nossos pais eram amigos e eu sabia quem ela era – inclusive que já tinha acabado o curso do Conservatório –, mas não convivíamos nessa altura. O nosso convívio começou na Faculdade, embora não fosse muito, porque eu era de Germânicas, ela de Histórico-Filosóficas, e havia alguma divisão entre os cursos. No entanto, a Maria de Jesus movia-se muito no grupo de Românicas, pelas afinidades poéticas e culturais que tinha com intelectuais como o Lindley Cintra, que mais tarde não aceitou ser do MUD Juvenil. Ele era o melhor aluno da Faculdade e os melhores alunos não queriam meter-se em política – não porque fossem de direita, mas porque queriam ser professores catedráticos. Além de que havia medo, porque alguns dos nossos colegas eram informadores da PIDE». 

Enquanto profissional dos palcos e cidadã politicamente empenhada, Maria Barroso encarava os recitais como um imperativo de consciência: «Já costumava dizer poesia na Faculdade de Letras e, como se soube que eu estava no Teatro Nacional, isso fez sensação e comecei a receber convites de outras universidades – pediam-me para ir dizer poemas e eu ia. Nessa altura, houve um entusiasmo louco pelo país, com o MUD e depois com o MUD Juvenil! Lembro-me, por exemplo, de um recital que fiz no Técnico. E de um outro, em Económicas e Financeiras, em que o [Custódio Pereira] Maldonado Freitas [1917-1994], que era aluno de Medicina, desatou a gritar ‘Guernica, Guernica!’ – a pedir um poema do Álvaro Feijó. Eu disse o poema com uma grande força e o director não gostou nada, claro, porque esses actos de resistência eram mal vistos. Mas eram também os nossos instrumentos de combate, numa época em que era difícil transmitir aquilo que sentíamos de outra maneira.

Na senda das sessões de sábado na Academia dos Amadores de Música, aí se realizaram, a 1 e 15 de Junho de 1946, dois recitais de música e poesia, por iniciativa de um grupo de estudantes da Escola de Belas Artes e da Faculdade de Ciências. Do programa musical constava a interpretação, em piano solo ou piano e voz, de composições de Luís de Freitas Branco, Karol Szymanowski, Béla Bartók, Sergei Prokofiev, Lopes-Graça, André Jolivet e Jean Hubeau – intercalada por comentários de Francine Benoît, para contextualizar as obras. Na vertente literária, e a anteceder os concertos, houve palestras do historiador Joel Serrão sobre poesia portuguesa do século XX – uma a incidir nas gerações da Orpheu e da Presença, outra na do ‘Novo Cancioneiro’. Ambas foram complementadas com a leitura de poemas representativos, a cargo, respectivamente, de Manuela Porto e Maria Barroso.

Solidários com dirigentes presos, os estudantes oposicionistas mobilizaram-se a 29 de Abril de 1947. Maria Barroso esteve na linha da frente, a apoiar o namorado e os amigos, numa concentração histórica que lhe proporcionou o primeiro confronto a sério com a violência policial. «Tinham sido presos muitos colegas nossos do MUD Juvenil – o Mário [Soares], o Francisco Salgado Zenha, o Júlio Pomar, o Mário Ruivo, o Rui Grácio e vários outros. Então combinámos, passando a palavra de faculdade para faculdade, que devíamos reunir-nos todos no Campo de Santana para protestarmos pela prisão deles e definirmos uma estratégia para os ajudar a sair em liberdade. Foi uma grande manifestação e nós íamos todos com um grande entusiasmo, uma grande vontade de poder contribuir para que eles fossem libertados. Mas a certa altura o número de polícias no Campo de Santana era tão grande que nós nos assustámos e entrámos para a Faculdade de Medicina.O director de então deixou-nos entrar e mais do que isso, veio muito simpaticamente falar-nos. Estava ele a tentar acalmar-nos, a dizer ‘Aqui não haverá mal nenhum, a polícia não entrará’ – que era o desejo dele, coitado –, quando a polícia entrou de roldão na faculdade e desatou a bater numa série de estudantes. Lembro-me de ter descido umas escadas a correr e de, para não cair, tentar segurar-me a um colega que não tinha um braço. Ainda hoje guardo essa sensação de ter agarrado numa manga vazia. Foi uma sensação terrível que me ficou pela vida fora.»

Entre os grandes dramas e as pequenas comédias dos meses agitados, Maria Barroso manteve-se ocupada com os estudos, as exigências do Teatro Nacional e até uma primeira incursão no cinema – na película Aqui, Portugal, de Armando de Miranda. Descrito pelo próprio autor como uma «história sem princípio nem fim da alma do nosso povo» Aqui, Portugal integrava-se no espírito das comemorações do oitavo centenário da tomada de Lisboa aos Mouros (1147), que continuavam a decorrer (desde Março e até Outubro) por altura da primeira projecção do filme no Éden, a 27 de Junho de 1947 – num momento em que a película anterior de Miranda, o estrondoso sucesso Capas Negras, com Amália Rodrigues e Alberto Ribeiro nos principais papéis, entrava na sétima semana de exibição no Condes.

A 29 de Junho de 1947, dois dias depois da estreia de Aqui, Portugal, Maria Barroso deslocou-se ao teatro Rosa Damasceno, em Santarém, para uma récita de poemas que veio a ter consequências determinantes na sua carreira. Com efeito, logo a 30 de Junho, o diligente Governador Civil de Santarém, major António Manuel Baptista, remeteu à direcção da PIDE, em Lisboa, um «ofício confidencial». Posteriormente, os autos de declarações seriam enviados ao Governador Civil de Santarém – «para seu esclarecimento» – e ao Ministro da Educação Nacional, que tutelava o Teatro D. Maria II. Assim se explica como, embora arquivado pela PIDE em Dezembro de 1947, o processo veio a ter consequências nefastas.

Com a chegada do Outono, voltaram os deveres: o quarto ano do curso de Histórico-Filosóficas e uma nova época teatral. A definitiva confirmação da promessa aconteceria como um dos grandes acontecimentos da temporada, Benilde ou a Virgem Mãe, uma estreia em mais do que um sentido: não só se tratou do primeiro texto dramático de José Régio, poeta maior da sua geração, a ser levado à cena no principal palco do país, como Maria Barroso teve, pela primeira vez, honras de protagonista. Em escassas 16 representações, de 25 de Novembro a 10 de Dezembro, a peça marcou a dramaturgia portuguesa e a carreira da actriz.

Em todos os jornais do dia, com mais ou menos palavras, encontrava-se o mesmo louvor. No Diário de Notícias: «Há que salientar, necessariamente, Maria Barroso, de cuja interpretação basta dizer que é cheia de inteligência e sensibilidade. A forma como exprimiu os êxtases místicos confirmam-na como actriz de largo futuro».

ESPECIAL MARIA BARROSO

Introdução: Uma mulher de garra

1. As primeiras memórias

2. Filha de pai rebelde

3. Um poema em cena

4. Entre a faculdade e o Nacional

5. No palco do combate

6. Uma carreira interrompida

7. A angústia do cativeiro

8. Primavera adiada

9. De Aveiro à Alemanha

10. No Palácio de Belém