Maria Barroso. Filha de pai rebelde

Lembro-me de, com uns três ou quatro anos, me porem uma cadeirinha à janela. Gostava de ver passar as pessoas, é uma das primeiras memórias que guardo. Parece que ainda vejo a janela… Eu não era uma criança muito extrovertida, pelo contrário. Mas gostava de observar as pessoas, ouvi-las falar, vê-las mexer. Não sei porquê,…

Assim eram passados os dias da pequena Maria de Jesus e da família na principal avenida de Setúbal. Uma família que aumentou a 14 de Março de 1929, com o nascimento de Judite, a oitava criança a nascer em casa do tenente Alfredo Barroso e da professora Maria da Encarnação. Recuando a essa época, Maria Barroso recorda a imagem dos pais: «A minha mãe era uma mulher com uns olhos bonitos, castanhos, muito doces. O meu pai era um homem pequeno, baixo. Não era bonito, mas tinha boa figura. Era muito simpático e a cara dele reflectia isso».

Em casa com mulher, sogra e seis filhos para alimentar, Alfredo Barroso angustiava-se por permanecer em Quadro de Arma, situação que configurava um corte no seu ordenado e, em contraciclo com o reequilíbrio orçamental do país, enfraquecia ainda mais as magras finanças da família. As tentativas para regressar ao activo saíam-lhe invariavelmente goradas. Em Agosto de 1929, por exemplo, o Delegado Especial da Polícia de Informações de Lisboa, em resposta a um ofício confidencial do gabinete do Ministério da Guerra, defendeu não ser conveniente a colocação do tenente em qualquer unidade, «pois apesar da sua absolvição a sua acção no movimento de Fevereiro [de 1927] não foi pequena».

Ia valendo aos Barroso o ordenado de Maria da Encarnação, que a 1 de Outubro começou a dar aulas numa escola primária feminina fora de Setúbal. Três dias depois, Alfredo fez um requerimento ao Ministro da Guerra, pedindo para «transferir a sua residência para a Vila de Palmela», e, duas semanas mais tarde, era autorizado a juntar-se à mulher e aos filhos.

Maria Barroso relembra: «Ficámos numa casa muito simpática. Na rua, havia umas escadinhasu rudimentares, por onde desciam de manhã os pastores com os rebanhos. Ainda ouço os balidos e os chocalhos das ovelhas… A casa tinha rés-do-chão e primeiro andar. No rés-do-chão, ao fundo do corredor, ficava a cozinha e a dispensa, onde havia uma cesta com maçãs. Sentia-se o cheiro das maçãs quando se entrava em casa…».

A 27 de Janeiro de 1931, com a mulher outra vez grávida e o filho mais velho a precisar de assistência, Alfredo, num requerimento redigido em Lisboa, pediu «a permissão de se deslocar de Palmela para Setúbal (para junto dos seus) durante o número de dias que for julgado necessário para restabelecimento da saúde dos seus doentes e necessário equilíbrio da sua vida económica». Sensível aos argumentos de Barroso, a 30 de Janeiro o ministro fez mais: autorizou «a transferência de residência obrigatória […] de Palmela para Setúbal». A 30 de Maio, com a família novamente reunida debaixo do mesmo tecto, na Rua Ladislau Parreira, Maria da Encarnação deu à luz o seu nono e último filho, Fernando Aníbal. Maria Barroso tinha então seis anos, mas lembra-se do dia em que nasceu o irmão mais novo. 

Pouco depois do nascimento do último filho, Alfredo e a família trocaram mais uma vez de casa. Maria Barroso recorda: «Fomos para uma quinta [de S. Jerónimo] que havia diante do quartel de Brancanes, já à saída de Setúbal. Era uma quinta engraçada, muito simples – não era nossa, mas o meu pai alugou lá uma casa – e eu brincava muito, sobretudo com o irmão a seguir a mim, o Alberto. Passeávamos pelos campos, trepávamos às árvores, comíamos a fruta das nespereiras, coisas assim… Mais tarde, o meu pai contou que, nesse tempo, chegou a ter armas e explosivos escondidos debaixo das tábuas das camas. Ele estava sempre a conspirar [contra a ditadura]. Foi, por exemplo, muito amigo de um homem chamado Jaime Rebelo, que era anarquista e que, a dada altura, foi preso. O meu pai teve muita pena e levou a mulher e os dois filhos dele – uma filha e um filho – lá para casa, para lhes dar algum apoio, porque eles tinham dificuldades. Estiveram connosco, na quinta, durante algum tempo. O meu pai ajudava os outros o mais que podía».

A 9 de Janeiro de 1932, o chefe da Agência Militar, em Lisboa, tinha proposto que o pai de Maria Barroso aí fosse prestar serviço, em substituição de um tenente que dera entrada no Hospital Militar Principal e cujo estado de saúde não fazia prever um regresso ao serviço. Com notória má vontade, os superiores recusaram a proposta. 

Por fim, a 3 de Abril, o Ministro anuiu à proposta e Alfredo, depois de cerca de nove anos na ‘prateleira’ apresentou-se ao serviço, em Lisboa.

Porém, mais tarde seria preso e deportado para os Açores. Mau grado todo o sofrimento e dificuldades que dela advieram, a prisão de Alfredo acabou por unir ainda mais a família e despertar a consciência das crianças. Maria Barroso recorda: «Começámos a perceber que havia qualquer coisa errada, com que não nos podíamos conformar, quando o meu pai foi deportado para os Açores. Aos filhos mais pequenos a minha mãe não pormenorizou que ele tinha sido preso por razões políticas, mas os meus dois irmãos mais velhos compreendiam, claro».

Enquanto o afortunado sr. dr. Oliveira Salazar continuava o seu trabalho, o pai de Maria Barroso intensificou a actividade conspirativa, num contexto de asfixia e reorganização das facções oposicionistas. Se em Abril de 1936 a PVDE não tinha notícias de que Alfredo conspirasse contra o regime desde que regressara dos Açores, em 1938 o caso mudou de figura. A 26 de Setembro desse ano, o nome do capitão (por erro referenciado como ‘tenente’) apareceu num relatório da polícia política.

Já em 1940, as informações mais recentes sobre a acção do pai de Maria Barroso justificaram que os serviços da PVDE incluíssem no seu processo uma «biografia política» actualizada.

Mesmo com o aperto da vigilância, Alfredo não voltou tão cedo a ser preso ou prejudicado no trabalho. Pesasse embora a paz cinzenta que oprimia o país e a negra guerra em que o mundo se empenhava – na qual Salazar manteve, inteligentemente, uma providencial neutralidade –, os anos seguintes não trouxeram sobressaltos aos Barroso, que usufruíram dos encantos de uma vida simples e pacata. Enquanto os filhos mais novos iam avançando nos estudos, os mais velhos formaram-se e entraram no mercado de trabalho, trazendo algum desafogo ao governo da casa. Pela sua parte, a adolescente Maria de Jesus abraçou, com determinação e sacrifício, o projecto de se tornar actriz.

ESPECIAL MARIA BARROSO

Introdução: Uma mulher de garra

1. As primeiras memórias

2. Filha de pai rebelde

3. Um poema em cena

4. Entre a faculdade e o Nacional

5. No palco do combate

6. Uma carreira interrompida

7. A angústia do cativeiro

8. Primavera adiada

9. De Aveiro à Alemanha

10. No Palácio de Belém