Maria Barroso. No palácio de Belém

Nove de Março de 1986. Mário Soares torna-se oficialmente o primeiro civil a ocupar a Presidência da   República Portuguesa depois da revolução de 25 de Abril, sucedendo ao general António Ramalho Eanes. No mesmo dia, Maria Barroso torna-se primeira-dama. E as dúvidas surgem logo aí: o que é isso, afinal, de ser primeira-dama? O cargo…

As honras com que Mário Soares e Maria Barroso são recebidos no estrangeiro são naturalmente as mesmas que prestam aos chefes de Estado que nos visitam. E isto exige trabalho, rigor e disponibilidade. Maria Barroso, sempre na primeira linha, não tem mãos a medir. Durante o primeiro mandato visitam Portugal 35 chefes de Estado.

Como actriz, como militante do PS, como presidente de vários organismos e instituições, Maria Barroso foi sempre uma mulher de causas, de combates a favor da liberdade ou em defesa dos que considerava mais vulneráveis e desprotegidos. Mesmo com o tempo muitíssimo limitado, nunca deixou de travar as batalhas que a sua consciência lhe impôs. Quis o destino, porém, que a grande luta em que foi envolvida durante o tempo que permaneceu em Belém não tivesse que ver com causas nem com a função de primeira-dama. E se tenha travado muito longe de Portugal.

Para desespero de Maria Barroso, foi sem poder intervir directamente que se viu obrigada a assistir à luta do seu filho João pela vida, num hospital da África do Sul.

No dia 26 de Setembro de 1989, um pequeno avião Cessna em que seguiam os deputados portugueses João Soares, do PS, Rui Gomes da Silva, do PSD, e Nogueira de Brito, do CDS, despenhou-se no mato. A aeronave acabava de descolar do aeroporto do quartel-general da UNITA, na Jamba, onde os deputados tinham ido assistir a um Congresso da organização liderada por Jonas Savimbi. O filho de Mário Soares ia sentado no cockpit e segundos antes do acidente terá chamado a atenção do piloto Joaquim Augusto (um próspero comerciante residente em Windhoek, com estreitas ligações à UNITA, que era também proprietário do avião) para um problema técnico.

Em condições normais, ninguém teria dado pela queda do aparelho na floresta e os seus ocupantes só seriam descobertos muito tempo depois, alguns provavelmente já mortos. Era noite e o fumo resultante do acidente não seria visto. Quis a sorte, porém, que alguém na base se tenha apercebido de que algo não estava bem com o avião, procurando seguir com os olhos a sua trajectória e percebendo que ia cair. Seguiu-se o alerta e o envio de uma coluna de homens a bater o mato. Ao fim de algum tempo os socorristas chegaram ao local do sinistro e encontraram os destroços do aparelho — e, no meio dos ferros torcidos, os feridos. Seguir-se-ia uma louca correria de vários quilómetros pela mata, com as vítimas a serem transportadas em braços ou em macas improvisadas de regresso à base – donde seriam enviados para Pretória, ficando internados no hospital H. F. Verwoerd.

Curiosamente, João Soares entrara contrariado no avião, como se adivinhasse o desfecho. Mais tarde, dirá ao jornalista Joaquim Vieira: «Quando chego ao aeroporto dizem-me que o avião teria de ir a Joanesburgo primeiro. Eu digo que já não estou interessado. Nogueira de Brito e Gomes da Silva ficam satisfeitíssimos porque o objectivo deles era Joanesburgo e dizem-me: ‘Venha daí connosco’. O piloto diz-me outra coisa também razoável em termos práticos: ‘Já é noite. Vamos para Joanesburgo, dormimos no hotel, ao pé do aeroporto e, amanhã de manhã, partimos para Windhoek, e, no fundo, não perde tempo nenhum’. Foi nesta base que eu entrei no avião. A partir daí não tenho memória de nada, a não ser de acordar nos cuidados intensivos do hospital de Pretória» .

Quem recebeu a notícia, por volta da 1h30 da madrugada, foi a filha Isabel, que de imediato se lançou para casa dos pais, que já estavam deitados. O casal presidencial partiria no dia seguinte para uma Visita de Estado à Hungria e Holanda, e Maria Barroso tinha passado o serão a fazer as malas. Levantam-se em sobressalto. Pelas sete da manhã avisarão a mulher de João Soares, Olímpia, ficando combinado que ela e Maria Barroso viajarão imediatamente para Pretória. Por sugestão de Isabel, falarão a um sobrinho de Maria Barroso, Eduardo Barroso, médico-cirurgião, que as acompanhará na viagem, o qual segue com a roupa que tinha no corpo.

Mais tarde, Maria Barroso descreverá assim a O Século de Joanesburgo essas horas terríveis:

«[Recebi a notícia] imediatamente a seguir ao acidente, à 1 hora e 30. Tinha acabado de preparar as malas para duas viagens oficiais à Hungria e à Holanda e acabava de me deitar, sem conseguir adormecer. Minha filha Isabel apareceu de repente em nossa casa para nos dizer o que acabava de lhe ser transmitido telefonicamente – o João tinha sofrido um acidente na Jamba.

Como é óbvio, deixei de lado as viagens oficiais que o meu marido iniciou, cheio de apreensão e dor, e corri para junto do meu filho, com a minha nora e um sobrinho médico, quase irmão do meu filho. Calculará a nossa ânsia durante essa longa viagem: Como iríamos encontrar o João? Ainda estaria vivo?»

E enquanto a primeira-dama ruma em aflição com destino ao Sul, ao encontro do filho, o marido, de coração partido, dispõe-se a cumprir o programa oficial das visitas à Hungria e à Holanda. Só no fim da viagem, de regresso a Lisboa, partirá para Pretória na companhia da filha e de um assessor. Mal é conhecido o acidente, chovem os telefonemas em casa dos Soares.

Quando as rodas do avião transportando Maria Barroso, a nora, Olímpia, e o sobrinho Eduardo pisam solo sul-africano, os familiares de João Soares ainda não sabem se o encontrarão vivo ou morto. A viagem fora dramática, e as duas mulheres só se tinham aguentado à custa de calmantes ministrados por Eduardo Barroso. Mas logo depois chegará a notícia: João continua vivo, embora em estado crítico.

Tendo entrado no hospital inconsciente, o sinistrado, de 40 anos, tem traumatismo craniano, lesões gravíssimas no maxilar com perda de nove dentes, e múltiplas fracturas: no fémur direito, em oito costelas do lado esquerdo, no externo, na rótula e no pé direito. Além de lesões pulmonares resultantes do impacto da queda, agravadas pelo facto de terem mediado 12 horas entre o acidente e a ligação ao ventilador. O prof. Jan Becker, que assume o comando da extensa equipa médica que assiste o ferido, dá-lhe 10% de hipóteses de sobreviver.

O primeiro contacto de Maria Barroso com o filho seria arrepiante. A primeira-dama descreverá desta forma o momento em que, na companhia da nora, viu João pela primeira vez no hospital:

«Quer a minha nora quer eu hesitámos quando nos aproximámos da cama onde o João estava na Unidade de Cuidados Intensivos. Estava quase irreconhecível – braços, pernas, cabeça inchados, enormes. Tinha equimoses, nódoas negras imensas, costuras junto à boca, na testa, imensos tubos que o ligavam desesperadamente à vida. Uma visão de pesadelo».

João Soares seria submetido a uma grande operação ao rosto, com a reconstituição do maxilar inferior, recuperando parte do seu aspecto normal. Mas continuava em risco de vida. Só dois depois da chegada do pai é que será considerado livre de perigo. E a partir daí os prognósticos clínicos sobre a evolução do seu estado de saúde serão cada vez mais positivos.

Embora a sua deslocação a Pretória tivesse por único objectivo a visita ao filho, Mário Soares e Maria Barroso encontraram-se com o casal De Klerk, orgulhando-se mais tarde o Presidente português de ter contribuído para o fim do apartheid e a libertação de Nelson Mandela. «A conversa teve lugar num almoço a convite dos sul-africanos, onde também participou ‘Pik’ Botha, que então detinha já a titularidade dos Negócios Estrangeiros. Soares terá começado por evocar em termos comparativos a transição falhada de Marcelo Caetano e a conseguida do franquismo, para argumentar perante De Klerk: ‘Só quando puser Nelson Mandela em liberdade e se comprometer publicamente a renunciar à política do apartheid, a Europa, os EUA e o mundo vão acreditar que De Klerk quer fazer uma transição democrática a sério na África do Sul. Mas também lhe digo: se hesitar e ficar a meio caminho por falta de coragem, alguém, um dia, mais tarde ou mais cedo, o vai fazer por si…’».

Já no embarque de Soares para Lisboa, ‘Pik’ Botha – que se vai despedir dele ao aeroporto – comunica-lhe que De Klerk irá libertar os presos políticos, que Mandela sairá daí a uns meses da prisão e que o apartheid será desmantelado.

A recuperação milagrosa do filho – sobrevivente da queda a pique do avião a uns 50 metros de altura, segundo afirmações do piloto – terá um impacto tremendo na vida e nas convicções de Maria Barroso. Criada numa família anticlerical, a primeira-dama desperta na África do Sul para a fé e para a confiança em Deus. Nessa altura dirá: «Eu penso que a fé é qualquer coisa que tem a ver com o foro íntimo de cada ser. Sem se ser praticante pode-se estar mais próximo de Deus do que exercendo uma prática quotidiana, formal, com um coração e uma actuação muitas vezes a léguas da maravilhosa doutrina de Cristo».

E o seguinte texto descreve com transparência o processo por que passou a mulher de Mário Soares: «Maria Barroso, filha de um pai anticlerical (que, segundo Isabel Soares, entrava nos eléctricos e insultava as freiras), explicará as raízes e razões da sua reconversão. ‘A minha avó, mãe da minha mãe, que era muito u religiosa, levava-me à missa em Setúbal. Depois tive uma professora de Moral, D. Aida Conceição, que tinha muito contacto comigo e queria muito que eu voltasse à religião, e o meu pai dizia-me: ‘Se Deus existe, Ele é generoso, julga-te pelo que fizeres, de acordo com determinados valores, e não é preciso aproximares-te tanto’. Eu nem sequer era praticante, mas com o desastre do João fiquei tão impressionada e emocionada que até mandei um recado ao padre João Resina, do Campo Grande: ‘Que reze pelo meu filho’. E quando estava em Pretória o médico, que era um grande médico, dizia-me todos os dias: ‘Está um bocadinho melhor, mas continua muito doente. Peça a Deus’. Tive um reencontro com a fé e acreditei que a recuperação do João se deu por intervenção divina».

O médico que Maria Barroso cita era o professor Jan Becker, o chefe da equipa clínica que tratou João Soares, que também dizia: «Foi Deus que o curou, eu fui apenas um instrumento na mão de Deus».  O único que não se comoveria – nem converteria – seria o próprio paciente. Já livre de perigo, diria a um jornalista amigo: «As minhas convicções são perfeitamente inabaláveis. Ou a minha ausência de convicções, se quiseres. Aliás, o médico que me tratou, que é um professor admirável, a quem eu devo muito, profundamente religioso, disse-me num dos primeiros dias: ‘Você tem de agradecer a Deus tê-lo salvo’. E eu disse-lhe: ‘Peço imensa desculpa, mas a única pessoa a quem tenho de agradecer é a si, porque eu, feliz ou infelizmente, não acredito em Deus’.

A reeleição presidencial foi um passeio para Mário Soares. O PSD, o partido do Governo liderado por Aníbal Cavaco Silva, absteve-se de apresentar candidato — numa decisão inédita que, por um lado, reconhecia a incapacidade do partido para encontrar uma pessoa capaz de se bater com Soares em condições minimamente dignas e de não ter um resultado vexatório, e, por outro, visava não abrir uma frente de conflito entre o Governo e o Presidente. Assim, só o CDS e o PCP apresentaram candidatos: Basílio Horta e Carlos Carvalhas. Depois de uma campanha sem história, Mário Soares foi reeleito no dia 13 de Janeiro de 1991, com 70% dos votos. Basílio Horta, criticado pela violência verbal usada no debate televisivo com o Presidente-candidato, só teria 14%, ficando Carvalhas com 13%.

Soares e Cavaco estavam nos antípodas. O primeiro nascera numa família citadina, republicana, sem grandes dificuldades financeiras, fora desde muito cedo oposicionista ao Regime, considerava-se a si próprio um bon vivant e era um político do velho estilo, sem grande paciência para os números mas muito hábil nos bastidores. O segundo era um provinciano nascido numa família remediada, seco, austero, tímido, com boa formação financeira e sem vocação para os jogos políticos. Não podiam ser mais diferentes. No segundo mandato, porém, o verniz iria estalar.

Sendo toda a vida uma mulher de causas, Maria Barroso não desperdiçou a passagem por Belém para dar mais peso a algumas campanhas que sempre apoiou ou para se dedicar a lutas nas quais achava valer a pena envolver-se. Timor-Leste, Moçambique, Angola, ex-Jugoslávia… O mundo está muito perigoso e Maria Barroso não consegue fechar os olhos aos dramas humanos, sobretudo aos que ocorrem em países que falam português ou no coração da Europa. As causas que abraçou desde sempre são espelho de uma mulher que constitui um exemplo notável de luta pela dignificação das mulheres, de luta pelas causas que achava nobres, mas também de empenhamento na família, acompanhando o marido nas constantes viagens ao estrangeiro e nos acontecimentos oficiais, ajudando o filho a lutar pela vida na África do Sul, usando os poucos tempos livres para estar presente junto dos netos.

Uma mulher que provou de forma cabal que a vida familiar, a vida profissional e a vida pública não se excluem nem são incompatíveis – antes se completam para a perfeita realização humana.

ESPECIAL MARIA BARROSO

Introdução: Uma mulher de garra

1. As primeiras memórias

2. Filha de pai rebelde

3. Um poema em cena

4. Entre a faculdade e o Nacional

5. No palco do combate

6. Uma carreira interrompida

7. A angústia do cativeiro

8. Primavera adiada

9. De Aveiro à Alemanha

10. No Palácio de Belém