Maria Barroso. Primavera adiada

A sobrevivência de um regime com muitos telhados de vidro dependia, cada vez mais, da eficácia dos mecanismos repressivos para amordaçar meios de comunicação social e cidadão incómodos. Foi o que, uma vez mais, se constatou nas derradeiras semanas de 1967, quando alguns dos seus mais altos dignatários e várias figuras de proa da sociedade…

Acusado de «divulgação de notícias falsas, no estrangeiro, susceptíveis de prejudicar o bom nome de Portugal», Soares passou a consoada de 1967 e a passagem de ano em isolamento numa cela em Caxias, sendo transferido, já em meados de Fevereiro, para uma sala de presos comuns, onde permaneceu até ser posto em liberdade, cerca de duas semanas mais tarde. Mas embora tenha sido o bode expiatório mais visível no processo, Soares não foi, como recorda a mulher, o único: «Mais ou menos um mês e meio depois de terem prendido o meu marido, também prenderam o [Francisco] Sousa Tavares e o Urbano [Tavares Rodrigues], por terem a ideia de eles também estarem implicados na denúncia do caso. O Urbano até teve dificuldade em suportar a prisão – embora se tenha portado bem e não denunciasse ninguém, teve, fisiologicamente, muita dificuldade em aguentar aquilo. A mulher dele – a Maria Judite de Carvalho, que era uma grande escritora e tinha sido nossa colega na Faculdade de Letras – veio ter comigo e disse-me u que ele passava mal. Portanto, quer o Sousa Tavares, quer o Urbano estiveram um mês presos com o meu marido, mas em celas diferentes. Entretanto, o [advogado] José Magalhães Godinho entrou com um pedido de habeas corpus e foram os três soltos no mesmo dia, um de cada vez». Mário Soares era novamente preso pela PIDE, no seu escritório na Rua do Ouro. Maria Barroso chegava ao Campo Grande e era dolorosamente surpreendida com a notícia da nova detenção do marido: «Nunca mais me esqueci… Era dia 19 de Março e a minha filha tinha ido com uma amiga comprar a prenda para o Dia do Pai. Fui buscá-la à loja e, quando chegámos ao colégio, por volta das sete horas da tarde, um dos meus chauffeurs – o António, que era de uma dedicação extraordinária – veio ter connosco com armuito aflito: ‘O senhor doutor foi outra vez preso e veio um recado da PIDE para a senhora lá ir’. Fomos imediatamente para casa, onde já estava o meu filho João, e eu disse à Isabel: ‘Vou com o teu irmão à Polícia política e tu ficas aqui, para comunicar com os nossos amigos’»

Acompanhada pelo filho, Maria Barroso repetiu o trajecto que, por força do hábito, já quase podia fazer de olhos fechados, até à Rua António Maria Cardoso: «Cheguei com o João à PIDE e lá estava o meu marido. Lembro-me que ele me disse: ‘Tens de ter muita coragem, porque vão mandar-me para São Tomé’…». 

Na manhã de 20 de Março, Maria Barroso começou bem cedo a fazer diligências relacionadas com a deportação do marido, prevista para aquela noite. Uma das suas primeiras preocupações foi a de se aconselhar com o cunhado sobre os cuidados de saúde a ter em São Tomé. A deportação terminaria com a entrada de Marcelo Caetano na chefia de Governo. Maria Barroso recordava assim a notícia: «já em casa, começámos a ouvir muito baixinho aqueles noticiários que vinham de Argel – que não eram assim muito apreciados pela Polícia política, mas que nós apreciávamos muito [risos]. De maneira que ficámos cheios de esperança que a deportação acabasse, como efectivamente acabou. O Marcello Caetano, que tinha sido professor do meu marido na Faculdade de Direito, substituiu o Salazar na Presidência do Conselho de Ministros. E sei que uma das pessoas que teve influência junto dele, no sentido de o sensibilizar para a situação injusta do meu marido e para a importância de fazê-lo regressar ao País, foi o bastonário da Ordem dos Advogados, o doutor Pedro Pitta. A verdade é que, logo no primeiro Conselho de Ministros presidido pelo Marcello, decidiram o fim da deportação».

Física e mentalmente incapacitado, Salazar saíra – e entrara Marcello Caetano. Com as ondas de choque dos movimentos sociais de Maio de 68 a alastrarem pelo globo, a partir dos protestos dos estudantes universitários franceses, o horizonte parecia propício à mudança num Portugal estagnado e anacrónico. No que dizia respeito a Mário Soares em particular, a chegada de um novo inquilino à cadeira do poder significara pelo menos o fim da deportação em São Tomé, mas, para o País em geral, as celebradas promessas de uma ‘Primavera marcelista’ trouxeram pouco mais do que uma mera cosmética semântica propensa ao eufemismo, manifesta em algumas mudanças de nome: a PIDE passou a Direcção-Geral de Segurança (Novembro de 1969), a União Nacional a Acção Nacional Popular (Fevereiro de 1970) e a Comissão de Censura para Comissão de Exame Prévio (Novembro de 1970).

Do outro lado da barricada, assistiu-se, no primeiro semestre de 1969, a um progressivo separar das águas entre as diversas correntes da oposição democrática, tendo em vista as eleições legislativas agendadas para 26 de Outubro de 1969. Mas os resultados oficiais haveriam de deitar por terra todas as ilusões quanto a uma progressiva abertura do regime: como no tempo de Salazar, a União Nacional obteve a totalidade dos lugares no Parlamento (130). Em números redondos – a partir de um universo de 1.780.000 eleitores, em que se verificaram 670.000 abstenções –, a UN contabilizou 980.000 votos, contra os 130.000 da oposição. Segundo os resultados provisórios reproduzidos no Diário de Lisboa de 27 de Outubro, a CEUD obtivera nesse distrito uns modestos 8.673 votos, contra os 31.250 da CDE e os 127.036 da UN. Em Santarém, a oposição, unida sob a sigla CED, ficara-se pelos 8.281 votos – também muito abaixo dos 58.337 atribuídos à UN. Maria Barroso descreve assim o seu desencanto: «Tínhamos a esperança de que, com o Marcello a substituir o Salazar, as eleições pudessem ser livres – ou pelo menos mais livres. Mas não foram. Uma vez mais, tudo não passou de um simulacro. Dizia-se que até os mortos votavam, porque os resultados das votações eram completamente falseados». Falhada a do marcelismo, seria preciso esperar que outra Primavera trouxesse a tão apetecida liberdade. 

ESPECIAL MARIA BARROSO

Introdução: Uma mulher de garra

1. As primeiras memórias

2. Filha de pai rebelde

3. Um poema em cena

4. Entre a faculdade e o Nacional

5. No palco do combate

6. Uma carreira interrompida

7. A angústia do cativeiro

8. Primavera adiada

9. De Aveiro à Alemanha

10. No Palácio de Belém