É com um sorriso bem-disposto que Judite Barroso recorda as comédias de enganos que a irmã concebia e protagonizava desde pequena: «Embora tenha vindo de Setúbal para Lisboa com cinco anos, ainda me lembro de muitas coisas dessa altura. Lembro-me, por exemplo, das partidas que a Maria de Jesus, com sete ou oito anos, fazia à minha mãe, com fatos do meu irmão Alberto, que era pouco mais velho do que ela. Vestia-se com roupa dele e batia à porta a fingir que era um mendigo. A minha mãe caía, mas depois lá olhava para a roupa e percebia que era a Maria de Jesus na brincadeira… Ela sempre gostou de fazer partidas, mesmo mais velha, já em Lisboa, muitas vezes com colaboração nossa – dos irmãos e até do pai».
Mas, mais do que nas brincadeiras em casa, era na escola, ou por intermédio dela, que o temperamento de Maria Barroso encontrava o contexto e os estímulos ideais para a expansão das suas aptidões dramáticas. «Naquela época, a reitora do Liceu Filipa de Lencastre era a Dra. Margarida Silva, e a vice-reitora era a Dra. Maria Emília Castro. Foi lá que eu comecei a recitar. A minha professora de Português, a D. Maria José Saavedra, gostava de nos pôr a ler textos em voz alta e estimulou-me muito, porque gostava das leituras que eu fazia de poemas ou de textos mais dramáticos. Uma vez pôs-me a ler o Frei Luis de Sousa [de Almeida Garrett] e, a certa altura – para aí no segundo ou no terceiro ano –, até levou algumas de nós a ver uma adaptação, no Teatro Nacional. Chorei que nem uma Madalena, porque a peça é muito trágica. Claro que nessa altura nem sonhava que um dia haveria de interpretar o papel de Maria, naquele mesmo palco.
Acabou por ser a guerra, de forma indirecta e acidental, a ajudar Maria Barroso a perseguir a carreira de actriz que acalentava em segredo. Estimulada pela professora Maria José Saavedra, que entretanto até já lhe falara do curso de Arte Dramática do Conservatório Nacional, a adolescente de 14 anos fazia por aprimorar o gosto e o estilo na declamação de poesia. À medida que o talento e o prazer iam crescendo, a timidez desvanecia-se e o passatempo secreto tornava-se conhecido de cada vez mais gente. Não tardou muito a que fosse também conhecido em casa .u «Foi a poesia que me que me levou à representação. O meu irmão Alberto esteve numa festa do liceu Filipa de Lencastre em que houve umas representações e ouviu-me a declamar um poema – penso que feito por uma professora minha, sobre a invasão da Polónia. Depois da festa, foi para casa muito espantado e disse aos meus pais: ‘A Maria de Jesus diz poemas. E diz muito bem!’».
A notícia trazida por Alberto e a seriedade com que Maria de Jesus assumiu por fim o desejo de ser actriz tiveram na Praça das Flores o impacto de uma revelação, que inspirou entusiasmo nos outros irmãos e receio nos pais – ou não fosse o teatro, no imaginário da época, sinónimo de costumes dissolutos. Sob esse ponto de vista, Alfredo Barroso confrontou-se com dois argumentos: como cidadão e militar, tinha ideias bem vincadas sobre os valores e atitudes que deviam definir a vida em família e em sociedade; como pai, não se advogava o direito de contrariar a vocação da filha, mas o dever de estimulá-la a fazer escolhas informadas para construir o próprio futuro. Ciente de que era isso que estava em causa – e concluindo que os dois argumentos não se excluíam mutuamente – procurou, através das suas relações, socorrer-se da ajuda de quem pudesse apreciar o assunto com a propriedade que ele exigia:
«Um amigo do meu pai, o capitão Correia Mendes, era casado com uma senhora que representava em operetas no Coliseu dos Recreios – eu já a tinha visto fazer A Viúva Alegre e o Sonho de Valsa. Chamava-se Luísa Nobre e tinha uma voz muito bonita. Por intermédio do capitão Mendes, o irmão dela levou-me ao teatro, ao camarim do [Arnaldo] Assis Pacheco [1902-1991], que era um brilhante actor e professor do Conservatório, para ele me ouvir dizer uma poesia ou duas. Ele ouviu-me e disse: ‘Se fosse noutro país, dizia-lhe já que deixasse tudo e viesse para o teatro. Mas neste país, acho que deve continuar a estudar, embora possa ir para o Conservatório’. E foi exactamente isso que eu decidi fazer».
Nos exames finais do seu segundo ano no Conservatório, feitos a 1 e 2 de Julho de 1942, Maria Barroso voltou a ser recompensada pelo empenho no curso: nas provas teóricas, obteve 17 valores a Arte de Dizer e a Língua e Literatura Portuguesa; nas provas práticas, outro 17 a Arte de Dizer e 12 a Dança Teatral. Perante tais resultados, foi com a consciência do dever cumprido que se preparou para umas merecidas férias com a família. Mas, antes de partir para o Algarve, outro tipo de consciência – a dos problemas políticos e sociais com que o país se confrontava – levou-a a procurar uma plataforma que lhe permitisse agir sobre as suas crescentes inquietações. Encontrou o que pretendia na Associação Feminina Portuguesa para a Paz e inscreveu-se, comprometendo-se a pagar uma quota mensal de 2$50. O comprometimento com esse organismo paracomunista valeu-lhe a primeira referência nos ficheiros da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado).
Em Maio de 1944, a estreia iminente da nova actriz teve direito a destaque e fotografia na revista feminina Eva, dirigida por Carolina Homem Cristo e ‘pouso’ de vários escribas ligados à oposição – caso da jornalista e declamadora Manuela Porto (1908-1950), que assinou o apontamento de reportagem. Intitulado «Maria de Jesus Barroso – uma ‘ingénua que a companhia Brunilde Júdice nos vai revelar».
Apesar do luto pela avô materna, que morre nesse ano, era preciso seguir em frente. A 23 de Agosto estreava no D. Maria II mais um espectáculo da Companhia Brunilde Júdice-Alves da Costa, que se transferirá para aquela casa de armas e bagagens. Madre Alegria – um original dos espanhóis Luís R. de Sevilla e Rafael Sepúlveda, vertido para português por Lino Ferreira, Fernando Santos e Almeida Amaral – fora já, no Trindade, um dos maiores sucessos do repertório de Palmira Bastos. Nesta reposição, Maria Barroso fez par romântico com Alves da Costa.
ESPECIAL MARIA BARROSO
Introdução: Uma mulher de garra