Maria Barroso. Uma carreira interrompida

Naquela tarde de Outono em que viu interrompida a carreira que tantos sacrifícios lhe exigira, Maria Barroso saiu do Teatro Nacional com uma tristeza serena. Como em vários outros momentos da sua vida, a revolta que ‘faz reagir’ haveria de prevalecer sobre o desgosto que ‘faz quebrar’:

«Apanhei um grande choque e tive muita pena. Foi até o que disse a um grande amigo, o advogado Abranches Ferrão, com quem falei sobre o assunto: ‘Mas eu, com a minha postura, lutei sempre pela dignificação do teatro…’ Mas isso não importava ao regime e, para a minha demissão, não havia recursos nenhum: a Amélia Rey Colaço ficou absolutamente proibida de me contratar. Quando ela mo comunicou, respondi-lhe: ‘Pronto, Senhora Dona Amélia, o que é que se há-de fazer? Vou representar outros papéis, não tem importância nenhuma’. E segui com a minha vida. Isto passou-se em 1948, em 1949 casei. Entretanto, continuei o meu curso de Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras. Mas sei que tanto a Amélia Rey Colaço como o marido desenvolveram todos os esforços para que eu não fosse demitida, porque, depois do 25 de Abril, tive acesso a uns documentos da PIDE que diziam isso mesmo».

De facto, nos ficheiros da polícia política, consta uma informação, datada de 1 de Novembro de 1948, sobre «MARIA DE JESUS SIMÕES BARROSO – actriz», em que se lê: «Sua Ex.ª o Ministro da Educação Nacional não autorizou o contrato da epigrafada para a Companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro.

Robles Monteiro pediu a Sua Ex.ª o Ministro do Interior para interceder junto do seu colega mas não foi atendido».

Posteriormente, seria arquivada no processo a informação de que «em 20-11-54 foi pelo Exmo. Sr. Director dado conhecimento ao actor Robles Monteiro das actividades políticas da actriz Maria Barroso».

Na entrevista telefónica que concedeu, em Setembro de 2010, para este Álbum de Memórias, Mariana Rey Monteiro recordava assim o impacto que a demissão de Maria Barroso teve na sua família:

«Havia sempre imenso respeito pelo ideal político de cada um, mas, na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, isso era uma coisa que ficava à porta e não interferia com nada. Sabíamos que a Maria Barroso mantinha a sua actividade política e dava uns recitais impressionantes. Só que isso não tinha qualquer relação com o trabalho dela no teatro e, portanto, não nos dizia respeito. Agora, quando ela foi impedida de continuar a sua carreira no Teatro Nacional, isso criou em nós uma grande indignação. Lembro-me de a minha mãe ter ficado muito triste e dizer: ‘Cortaram-lhe as pernas’. uFicámos toda a vida horrorizados com isso, até pela amizade e admiração que continuou a existir entre nós».

O público e a crítica tiveram saudades de Maria Barroso. Mas, para a actriz, a experiência nos palcos foi-se tornando uma recordação cada vez mais distante, à medida que outras preocupações ganhavam protagonismo na sua vida. Ficou o amor à profissão, como ficaram a memória e algumas – poucas – imagens para a avivar:

«Quase não tenho fotografias da minha passagem pelo Teatro Nacional. Hoje sinto pena de não ter mais, mas naquela altura, como andava muito metida na política, achava que era uma futilidade tirar retratos. Se hoje tenho aqueles retratos tão bonitos da Benilde ou a Virgem Mãe, devo-o à Amélia Rey Colaço, que os mandou tirar. Eu não guardava retratos nenhuns…».

Quase cinco anos depois de ter caído a cortina sob o último acto de Maria Barroso no Nacional, um repórter do República procurou o rasto à actriz, para saber por que desaparecera da vista do público e o que pensava sobre «a crise do teatro português». O artigo, publicado na edição e 15 de Abril de 1953 daquele diário, deixava claras as razões para o afastamento dos palcos, logo nas letras gradas do título:

«Porque está desempregada?

Porque me mandaram embora – responde-nos Maria Barroso».

Embora já tivesse pago um elevado preço pelo exercício da sua cidadania, Maria Barroso não desistiu de se expor pelas causas em que acreditava. No Início de 1949, teve oportunidade de voltar a fazê-lo, quando toda a oposição se mobilizou em torno da candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República.

Com as eleições marcadas para 13 de Fevereiro de 1949, havia que tirar parido das seis semanas de campanha, exercendo a ‘liberdade suficiente’ que o regime alegava conceder nos períodos eleitorais. Maria Barroso exerceu-a.

A PIDE, que estava atenta a todos os movimentos de oposição e mantinha a ex-actriz sob vigilância, sabia. Ao seu processo na polícia política foram averbadas duas informações provenientes das páginas do diário República. Na primeira, com data de 7 de Janeiro, consta que «apresentou cumprimentos ao general Norton de Matos»; na segunda, datada de 9 de Fevereiro, lê-se: «Deverá discursar na sessão democrática a realizar em 10/2, no Centro Republicano Dr. António José de Almeida, […] promovida pela comissão feminina da freguesia dos Anjos, distrito de Lisboa».

A posição de Maria Barroso foi, como não poderia deixar de ser, partilhada por aqueles que lhe eram mais próximos. O namorado, Mário Soares, secretariou Norton de Matos até confessar ao candidato, a contragosto e obedecendo a ordens superiores, que o fazia na qualidade de representante do PCP – episódio que, além de constituir a sua primeira grande discordância com a cúpula do partido, lhe valeu a perda de confiança do general. E em casa dos Barroso, na Praça das Flores, o ambiente efusivo em torno da campanha contagiou toda a família, a começar pelo pai, que presidiu à Comissão da freguesia das Mercês.

Apesar de todos os esforços dos apoiantes, Norton de Matos abandonou a corrida presidencial na véspera das eleições, dispensando o seu adversário, Óscar Carmona, de fingir disputar nas urnas um mais do que seguro quarto mandato no cargo que detinha desde 1926.

O pior veio depois, quando o regime, como era hábito, fez o acerto de contas. Maria Barroso recorda: «Normalmente, durante mais ou menos o mês que antecedia as eleições, o Governo deixava que as pessoas falassem à vontade e até que escrevessem nos jornais ou dessem entrevistas. Mas ao fim desse tempo, era inevitável: metiam-nas na cadeia. Ao contrário do que Salazar tinha dito, não vivíamos num país livre, ‘tão livre como a livre Inglaterra’. Pelo contrário, vivíamos dominados por um regime ditatorial, que não permitia que gozássemos dos mais elementares princípios de cidadania».

Detido «para averiguações» a 15 de Fevereiro, Soares recolheu nesse mesmo dia ao Aljube. Era aí que se encontrava quando, uma semana mais tarde, foi celebrado o seu casamento – que tanto os afectos como as circunstâncias tornavam premente, como explica Maria Barroso: «Tínhamos simpatizado um com o outro e começado a namorar. Daí, nasceu de facto, um grande entendimento e ternura, que se mantêm até hoje. Casámos a 22 de Fevereiro de 1949, estava ele preso e o meu filho João para nascer. Eu continuava em casa dos meus pais, mas tinha acabado de ser despedida do Teatro Nacional, o que me perturbou bastante e, de certo modo, precipitou o nosso entendimento. Como íamos ficar com uma ligação importante, que era o nascimento do nosso filho, até já tínhamos pensado num casamento secreto, para selar essa ligação profunda. Que selámos à mesma, quando o Mário estava preso no Aljube. O casamento propriamente dito foi uma cerimónia muito simples, na Conservatória do Registo Civil, na Rua Alexandre Herculano. Quem representou o meu marido, por procuração, foi o Rogério de Araújo, que trabalhava no colégio do meu sogro». 

ESPECIAL MARIA BARROSO

Introdução: Uma mulher de garra

1. As primeiras memórias

2. Filha de pai rebelde

3. Um poema em cena

4. Entre a faculdade e o Nacional

5. No palco do combate

6. Uma carreira interrompida

7. A angústia do cativeiro

8. Primavera adiada

9. De Aveiro à Alemanha

10. No Palácio de Belém