Audição de crianças em tribunal gera dúvidas

Na sala de audiência, Maria, de 10 anos, chorou. Não conseguiu dizer uma palavra que ajudasse o juiz a perceber se preferia estar com a mãe ou o pai. Noutro caso de conflito parental, Rui, de oito, levou num papel escrito o que a mãe queria que dissesse ao juiz.

O novo Regime Geral do Processo Tutelar Cível, debatido quinta-feira no Parlamento, reforça a necessidade de ouvir as crianças nos processos de regulação das responsabilidades parentais. Os especialistas ouvidos pelo SOL aplaudem este princípio, mas alertam: para perceber o que sentem as crianças é preciso saber escutá-las. Senão, as consequências podem ainda ser piores. Como foram no caso de Rui, que acabou por ser afastado do pai por um depoimento que não correspondia à sua vontade.

Rute Agulhas, psicóloga forense, não tem dúvidas de que a maioria dos magistrados não sabe fazer isto pois não tem formação. “Não basta saber que não se deve perguntar à criança se quer ficar com o pai ou a mãe. Há erros mais subtis mas que são determinantes nos processos, como considerar que um choro é sinal de medo quando pode ser vergonha ou tristeza”.

'Terão os tribunais capacidade'?

A docente do ISCTE, que faz formação nesta área e ouve dezenas de crianças e adultos, diz que é preciso conhecer o desenvolvimento emocional e cognitivo da criança, saber interpretar o choro, o silêncio, a expressão corporal, o que diz e o que não diz. E dá o exemplo da menina de quatro anos que entrevistou há dias: “Recusou a sala das brincadeiras que tenho para se sentirem melhor. Não falou. Só quando fui passear com ela para o jardim e ver os patos é que falou”. Nas perícias que faz – pelo menos três sessões e durante várias horas -, é também possível detectar a instrumentalização dos filhos por parte dos pais. Reproduzem expressões de adultos, justificam sentimentos factos que ocorreram quando eram bebés, dos quais não podem ter memória.

“Terão os tribunais capacidade e formação para fazer isto?” – questiona também Ricardo Simões, da Associação para a Igualdade Parental, que lembra que a actual lei já prevê que as crianças sejam ouvidas, de acordo com a sua maturidade, em especial a partir dos 12 anos. Mas não tem sido a prática, diz, e quando essa audição é mal feita agudiza “o sofrimento das crianças que vivem conflitos de lealdade”.

Magistrados e advogados também têm dúvidas

No parecer que enviou aos deputados, a associação concorda com o princípio da audição da criança e a criação de equipas muldisciplinares nos tribunais para apoiar os pais na busca do consenso. Mas tem “dúvidas quanto à forma e condições que se supõe existir para a audição das crianças, podendo colocar em causa a sua audição livre e verdadeira da sua vontade”. A associação diz-se ainda preocupada com “os meios financeiros e humanos que vão ser alocados”. Para garantir as habilitações dos técnicos, sugere que a sua formação seja certificada pela Ordem dos Psicólogos.

Magistrados e advogados levantam questões semelhantes nos seus pareceres, embora concordem com a simplificação dos processos e a valorização dos depoimentos orais em detrimento dos relatórios. “Uma criança pode ter capacidade para se exprimir e emitir uma opinião sobre uma determinada questão que, no processo a afecte, e não ter capacidade para compreender os actos processuais”, alerta o Conselho Superior da Magistratura. Ou seja, acrescenta a psicóloga Rute Agulhas, “pode até ter discernimento para se pronunciar, mas não ter a noção de que o que diz pode implicar uma mudança de residência”.

Tribunais sem salas

Quando a proposta de lei diz que a audição não pode decorrer num “espaço ou ambiente intimidatório, hostil ou inadequado à sua idade, maturidade e características pessoais”, as dúvidas sobre a sua operacionalidade são unânimes.

Patrícia Branco, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, analisou a arquitectura dos tribunais. Em 2012, concluiu que, entre os 22 com competência especializada,  só quatro tinham espaços para a audição e atendimento de crianças (salas de acolhimento, de mediação e de espera).

A investigadora propõe, por isso, a criação de “salas de acolhimento de crianças e de mediação – com janela de visão unidireccional que permita ver e analisar o comportamento da criança – com um aspecto neutro e informal, material didáctico e brinquedos”.

Além deste novo regime tutelar cível, estão no Parlamento outras duas propostas na área da família. Sobre isso, há uma crítica transversal entre os peritos: não houve debate público em torno desta reforma profunda. O Conselho Superior do Ministério Público diz mesmo que algumas soluções são “incompletas” e “incoerentes”.

rita.carvalho@sol.pt