Maria Elisa: ‘Vários presidentes da RTP orgulhavam-se de dizer que não viam televisão’

Foi o rosto da programação do canal público, lançou programas e personalidades que ainda hoje são o sal da TV. Maria Elisa escreve sobre a maturidade na mulher e disseca preconceitos, expectativas e afectos, com o foco apontado à condição feminina, em ‘Confissões de uma Mulher Madura’.

Fala, no livro, do vaivém a que muitas pessoas estão sujeitas hoje em dia. Podemos estar à distância sem perder o contacto?

Toda a gente se queixa. Há, no livro, uma avó, a Isabel, que diz ‘está bem, tenho a fotografia do meu neto a sorrir. Mas eu sei lá para quem ele está a sorrir. Para mim não é. O que eu queria é que ele sorrisse para mim’. Não é a mesma coisa. Às vezes, temos a ilusão de que a fotografia diz muita coisa, regista coisas que de outra maneira não podíamos registar. Mas que isso não substitui as relações próximas.

A dado passo diz que é impossível substituir um beijo ou um abraço.

Claro. O toque é talvez aquilo que mais falte às pessoas, quer em relações sentimentais ou amorosas, quer nas relações de afecto de uma mãe com uma filha ou um filho. Ou de um pai, ou dos avós.

Tem o projecto de um dia viver junto do seu marido no mesmo sítio?

Temos. Ele reforma-se daqui a três anos e meio. Já tínhamos essa ideia desde o princípio.

Vivem assim há quantos anos?

Três de casamento e antes uns quatro anos.

Como o conheceu?

Através de amigos comuns durante umas férias em Washington. Eu estava em casa de amigos, que, por sua vez, eram amigos dos melhores amigos do meu marido. Foi assim, completamente por acaso.

Esse casamento recente desmente o mito de que não somos capazes de nos apaixonar à medida que a idade avança?

Acho que isso não é verdade. Também não sei, quando as pessoas dizem isso, se se referem às relações que começaram muito antes e que se podem desgastar com a idade. E é normal, acho que um casamento dá trabalho. É um work in progress. Tem de haver um compromisso e uma vontade que as coisas dêem certo. Sem isso é muito difícil, porque as pessoas não são iguais quando se conhecem, pode ser aos 30, aos 40, ou numa idade mais adiantada, pois trazem atrás de si uma bagagem enorme. As pessoas não são nada almas gémeas.

Mas essa bagagem de experiências prévias também deve ter de se encaixar com alguma química, algum miligrama de alma gémea?

Claro que sim. Seria muito difícil viver com uma pessoa totalmente diferente de mim. O meu marido é o mais típico judeu americano, de uma família típica, e no entanto, eu, ao conhecer a minha sogra, o meu cunhado, a mulher dele, etc., descobri, que ao nível dos laços familiares e da importância que cada um de nós dá à família, há muitas semelhanças. Não estava à espera, porque há aquele mito, que é verdade, que os americanos vivem cada qual em cada estado. O meu marido vive em São Francisco, a minha sogra perto de Filadélfia. Claro que é longe, são cinco horas de avião, mas eles têm todos contacto permanente. E isso é importante, porque nós não nos casamos só com uma pessoa. Do meu ponto de vista, também nos casamos com a família.

A propósito dos livros que temos lá em casa para ler quando tivermos tempo, afinal, quando chega a idade da reforma, continuamos indisponíveis para os ler…

O que me aconteceu com a transumância foi o contrário: abriu-me as portas a muito mais leituras, também até a assuntos sobre os quais eu não conhecia tão bem. É claro que fica muita coisa para trás, mas isso é inevitável. Ficamos com a tal angústia da finitude do tempo.

Diz ainda no livro que chegou à tal ‘certa idade’ e sentiu-se encurralada, como muitos da sua geração, os baby boomers, entre ser cuidadora de um filho e de uma mãe ao mesmo tempo.

A parte de cuidadora, num sentido informal, geralmente refere-se a ser cuidador de pessoas mais velhas e que já têm alguma necessidade até de cuidados físicos. Já não têm autonomia. Os mais novos, neste momento, aquilo de que mais sofrem é de falta de autonomia financeira. Isso é um problema gravíssimo que estamos a viver – e também na Grécia, ainda é mais gritante -, com pessoas que, com um, dois ou três cursos superiores, aos 30 e tal, 40 anos, estão a viver na rua, ou com os empregos mais precários que há. Ou estão a viver, como ouvi, ou a sobreviver, porque têm família. As famílias, enquanto têm um bocadinho, repartem. Só se sobrevive com muito amor e com muitas dificuldades.

Como tem vivido com a fibromialgia? Quando foi diagnosticada?

Em 2001. Daí para cá, fui aprendendo a viver com a doença, que é crónica. Como faço com outras dificuldades, tento relativizar as consequências da fibromialgia: é certo que nem sempre posso evitar as dores ou o cansaço, mas a farmacologia foi apresentando alternativas que melhoram muito os principais sintomas.

Há sete anos até publicou um livro sobre o assunto.

Sim, mas não me deixo definir pela doença, sou mais do que ela. Por outro lado, o contacto com inúmeras pessoas que sofrem de outras doenças crónicas muito mais graves do que a minha leva-me a encarar a minha situação com a coragem de que elas são exemplo, perante a adversidade.

Também é conhecida por se expor muito. Sofreu com isso?

Sofri. Acho que somos bastante hipócritas. As pessoas não gostam que se diga abertamente o que se pensa, o que se sente ou o que se escolhe. Não criticam situações dúbias. Uma das jornalistas que mais admiro e admirei sempre, em França, a Anne Sanclair, no dia em que o célebre Dominique Strauss-Kahn foi para ministro das Finanças, ela, que estava no ar com o maior sucesso – era a jornalista favorita dos franceses -, demitiu-se no mesmo dia em que ele aceitou o lugar. E nunca mais apareceu na televisão. Foi para funções administrativas. Achou que o facto de continuar a entrevistar políticos, como era a vida dela, a partir do momento em que o marido tinha um papel activo na política, entrava em conflito com o que ela fazia. Nunca vi uma situação destas em Portugal.

Nunca esteve exposta a uma situação dessas?

Como fui durante muitos anos uma pessoa sozinha, sofri mais ataques quando fui deputada pelo PSD. A Comissão de Ética da Assembleia da República (AR) dizia que eu não podia continuar a ser jornalista de TV. Andou a discutir o meu caso durante meses. E, como escrevi muitas vezes, aquilo que realmente é um dos cernes, para mim, do tráfico de influências em Portugal, é a situação de muitos advogados que estão em empresas que defendem interesses de certas pessoas e que depois vão para o Parlamento votar leis que sabemos que vão afectar esses clientes de forma positiva ou negativa. Estamos a falar de há dez anos. Agora já há livros sobre isso.

E não tem havido polémica sobre o assunto na AR?

Pouca. Ninguém estava interessado em discutir isso. Uma das coisas que me levou a comprometer-me com o projecto de Durão Barroso, foi eu achar que se estavam a passar coisas, do ponto de vista de gestão na RTP, de uma gravidade muito grande. Ele disse, numa entrevista à Visão, que se fosse eleito ia demitir a administração e acusá-la de gestão dolosa. Ele foi eleito e nada aconteceu. Na altura pareceu-me que houve ali forças que se mexeram.

Também foi atacada por ir para a bancada do PSD e até tinha algumas bandeiras contrárias à filosofia do partido.

Fui como independente e porque me identifiquei com o projecto de Durão Barroso. E ainda hoje tenho muita pena que esse projecto não tenha ido avante.

Já na Comissão Europeia ele foi muito criticado por causa da gestão da crise.

A crise europeia é muito difícil de resolver. A Europa é quase um sonho impossível. Mesmo assim, é extraordinário aquilo que se conseguiu fazer e pôr tantos povos, que têm tantas diferenças entre si a todos os níveis, a falar uns com os outros e a conhecerem-se muito melhor, e termos hoje gerações e gerações para quem andar pela Europa inteira a circular, mesmo com pouco dinheiro e a mochila às costas, é completamente banal. Essa é talvez das maiores conquistas do projecto europeu.

Continua a acreditar nele?

Continuo. Estou muito preocupada com a Grécia, como toda a gente, mas ao contrário de certas pessoas, tenho alguma admiração pelo governo grego. Tal e qual como aconteceu aqui, quem conduziu o país à crise não foram Varoufakis e Tsipras. Foram os três governos anteriores. Acho que é corajoso o facto de eles terem querido fazer uma coisa diferente daquilo que viram falhar, por exemplo, em Portugal. Se é possível ou não arranjar uma alternativa, não sei, pode ser uma coisa quixotesca. Mas que há coragem, há.

Ainda sente o bichinho do jornalismo, a tentação, por exemplo, de agora ir para Atenas fazer uma reportagem?

Vejo as reportagens e penso logo que gostava de lá estar. Aliás, noutras alturas estive exactamente ali, na praça Sintagma, conheço aquilo tudo. Continuo a ter essa compulsão, mas foi exactamente essa compulsão que a RTP tentou matar em mim.

Conta que foi passada para uma cozinha em frente à antiga sede, na 5 de Outubro.

Isso foi muito antes, há muito tempo. Mas fui. Mais recentemente, quando voltei de Londres, quis regressar à redacção e não me deixaram.

Acredita que as coisas vão mudar?

Não sei. Pela primeira vez temos à frente da televisão um homem que vem completamente do campo dos conteúdos, da programação, o Nuno Artur Silva. Trabalhei muitas vezes com ele, como directora de programas, e é uma pessoa que sabe daquilo. Uma das coisas que me custou sempre foi porem à frente da RTP pessoas que não sabiam nada de televisão e que tinham orgulho em dizê-lo. Conheci vários presidentes que gostavam de dizer que não viam televisão.

E como aturou isso tantos anos?

Como é que o país aturou… Mas isso nunca me aconteceu enquanto eu era directora de programas. Fui directora de programas com quatro presidentes. Os dois primeiros foram Proença de Carvalho e Macedo e Cunha. Jamais algum deles disse uma coisa dessas, pelo contrário. O projecto da primeira novela não teria sido possível sem o entusiasmo de Proença de Carvalho. Era uma coisa nova, cara. Com Macedo e Cunha estivemos menos tempo, mas ele também era uma pessoa que se interessava.

Depois teve um interregno…

A seguir, fui convidada por Manuel Roque quando estava na Gulbenkian, talvez o melhor emprego que tive na minha vida, em termos de trabalho e de remuneração. O presidente da Gulbenkian era Ferrer Correia, a quem me ligavam laços muito estreitos. De maneira que quando Manuel Roque me convidou para voltar à RTP, eu disse-lhe que voltava durante algum tempo para lhe dar uma ajuda. Ferrer Correia disse que esperavam por mim algum tempo. Entretanto ele saiu e Manuel Roque, incompatibilizado com o ministro da tutela, José Sócrates, saiu também. E vem então um senhor chamado Brandão de Brito, que parecia também gostar de televisão, mas depois resolveu demitir-me. Mas enquanto eu lá estive, tivemos até uma relação bastante cordial.

É conhecida por ter criado o Serviço de Comunicação da Gulbenkian…

Criei-o totalmente. Não existia. Foi o professor Ferrer Correia que me chamou para isso.

E ideias para programas que acabaram por se banalizar hoje.

Muitas. Mas também muitas pessoas. Às vezes nem me lembro de todas, e são as pessoas que me lembram. É uma coisa de que me orgulho muito.

Foi a primeira mulher na direcção de programas.

Fui a única.

Na SIC também?

Fui. Agora a SIC tem várias directoras. O que fui foi directora de programas, que é uma pessoa que se ocupa de tudo. Na RTP, desde logo, dos dois canais, de tudo o que não é informação. A SIC agora dividiu-se em produção, programação, etc. Na altura, quer na RTP, quer na SIC, tinha tudo.

Quem é que gostou mais de lançar?

O caso de maior sucesso é capaz de ser a Júlia Pinheiro. Ela estava numa cabine de rádio e nunca de lá tinha saído. Nunca tinha feito televisão. Por que é que uma pessoa ouve outra na rádio e pensa que aquela mulher pode fazer bem televisão? É um tiro no escuro. Felizmente previ isso e resultou muito bem.

E mais?

O que a Catarina Furtado fazia na RTP era muito pouco. Fazia o top, dizia duas frases, lançava o videoclipe. Levei-a para a SIC e ela começou logo em grande estilo. Tinha esse potencial, além de ser uma mulher lindíssima, e não há nada a fazer: as câmaras de televisão gostam de mulheres bonitas, sem dúvida. Levei também a Alexandra Lencastre para a SIC. Na altura não como actriz, mas para apresentar programas também. E ainda a Conceição Lino. Na RTP também descobri muitas pessoas. Nalguns casos redescobri: o Júlio Isidro, que não estava a fazer nada, o Herman, sozinho, começou também nessa altura comigo.

No tempo d’O Tal Canal?

Muito antes. Com o Tony Silva, n’O Passeio dos Alegres. Foi ideia minha, a partir de uma proposta de programa do Herman. E foi retumbante, ainda hoje é um dos grandes bonecos dele. Mas o Herman é um caso à parte. Começámos praticamente juntos na televisão. Temos a mesma idade, uns dois anos de diferença, eu a fazer programas de auditório ainda antes do 25 de Abril, na altura com o Artur Agostinho e a Alice Cruz, e ele, nesse mesmo programa, que se chamava O Tempo em que Você Nasceu, a fazer acompanhamento às pessoas que cantavam. O Herman já tinha o Conservatório e como sabemos, sabe tocar, cantar, sabe fazer tudo.

Mas teve também tiros no escuro, casos que correram mal?

Tive muitas decepções, algumas coisas que me foram sugeridas e que acabei por aceitar, e acabaram muito mal. Tentei o regresso do Henrique Mendes à RTP, porque achei que ele tinha sido injustamente afastado. Para ele ser afastado da maneira que foi com a Revolução, muitas outras pessoas teriam de o ser. Mais tarde, dá-se o regresso dele através da SIC.

Foi consigo?

Não. Há coisas que têm de ter um timing e a gente nem sempre o prevê. Isso, realmente, correu-me mal. Ele nunca fez as pazes com a RTP por causa disso.

Fala nas mulheres e no seu processo de envelhecimento. Há quem diga que é preciso definir quando começamos a envelhecer.

É quando se nasce. A partir desse segundo, e até há quem defenda que é a partir da concepção. Mas é difícil definir. O que acabamos por fazer? Julgamos pela aparência.

E as mulheres estão mais expostas a isso?

Estão. Há duas bitolas completamente diferentes para os homens e para as mulheres. Mas não é só cá. Estes casos britânicos que eu descrevo no livro são prova disso. Um homem de 70 anos é o máximo. Está no auge das suas capacidades, tem imenso charme, tem o cabelo todo branco. Uma mulher, aos 50 e tal, vai para a rua.

As pessoas confiam mais em quem está lá há muito tempo?

É normal. São pessoas que têm outra capacidade de relacionar os acontecimentos. Uma pessoa que, por exemplo, já viveu não sei quantas crises analisa a crise actual da Grécia de uma maneira. Uma pessoa de 20 e tal anos que só viveu esta crise, mesmo um jornalista, tem uma experiência completamente diferente. Na profissão sempre gostei de ouvir os mais velhos, como o Fernando Pessa, por exemplo.

Acha que a televisão está melhor hoje?

Sem dúvida nenhuma. Para já, está tecnicamente a anos-luz. E isso representa muito. Acho estes avanços extraordinários. Só tenho pena de não ter começado já a ter essas vantagens, em termos, sobretudo, de rapidez para fazer as coisas. E acho que hoje há pessoas mais qualificadas. Não gosto é do excessivo condicionamento da informação aos interesses económicos, nomeadamente através daqueles prolongamentos absurdos dos telejornais, odeio telejornais de hora e meia, só gosto dos de meia hora. É aí que eu espero que a RTP volte a marcar a diferença.

Acha que a concorrência gerou homogeneidade em vez de gerar diferença?

Sim, o que é um erro tremendo. Mas aí, quem está errado é a RTP. Tem obrigação de fazer a diferença, mas neste momento tem muito pouco dinheiro. Cavaco Silva fez uma coisa que considero até hoje um erro tremendo, que foi acabar com a taxa.

Fez a televisão pública depender da publicidade?

Passou a depender muito mais. Acho que as pessoas com ordenado mínimo não a deviam pagar. Mas as outras todas poderiam pagar. Embora o valor fosse pequeno, mas todos juntos fazem muito dinheiro. E hoje em dia continuamos a ter o problema do financiamento.

E a situação das mulheres mudou muito?

Para melhor, felizmente. Embora ainda estejamos a anos-luz do que é preciso. Há mulheres na televisão em todos os postos – ou quase, tem havido muito poucas nas administrações. A RTP tem uma administradora. Na administração anterior também já havia. Mas hoje em dia já há muitas mulheres em postos de direcção, o que acho muito importante.

Ainda há a desigualdade na remuneração…

Sim. Embora, para os mesmos trabalhos, continue a haver uma décalage em toda a Europa. Não chega o compromisso, tem de haver também a mesma remuneração. E não é só cá, temos o caso de Hollywood, onde há uma grande militância, neste momento, a favor das remunerações iguais. 

Ainda é longo o caminho a percorrer?

Muito. Sempre disse que sou feminista porque acho que só se pode deixar de o ser quando houver paridade. E a paridade não é ter cinco directoras numa televisão. Ela só existe quando há paridade em casa.

ricardo.nabais@sol.pt