O fado de Ruben

Quando Ruben Alves pediu a Celeste Rodrigues para definir a irmã numa palavra, não se espantou de todo com o substantivo usado: beleza. “Ela dava beleza às coisas”, resumiu a nonagenária sobre a eterna Amália Rodrigues. O encontro entre o realizador que ficou célebre por A Gaiola Dourada (2013) e a irmã da fadista que…

O objectivo era simples: editar um álbum que chegasse ao grande público francês. Os nomes de fadistas que deveria convidar vieram-lhe de imediato à cabeça, bem como a ideia de chamar Celeste Rodrigues para fechar o disco. Ruben contactou então o realizador Diogo Varela Silva, neto de Celeste Rodrigues, que se mostrou receptivo ao repto lançado. Algum tempo depois, a avó regressava aos estúdios da Valentim de Carvalho que frequentou durante anos com a irmã.

Mas o que faz um cineasta vir intrometer-se numa área tão específica como a da música? “Um realizador conta histórias com imagens. Desta vez é com música, mas vai dar ao mesmo”, esclarece de imediato, afastando inevitáveis cepticismos. Ainda assim, admite, durante a criação de Amália: As Vozes do Fado – disco que sai em Portugal amanhã, dia 17, e em França em Agosto – não resistiu a pegar na câmara para filmar um documentário, que será entretanto exibido na TVI no final do ano. 

Falando um par de minutos com Ruben, fica claro porque o chamaram para dirigir o projecto. Foi, aliás, pela voz de Amália que o luso-descendente, nascido em Paris há 35 anos, se apaixonou pela cultura lusa e, posteriormente, se sentiu impelido a descobrir melhor o que é isto da alma portuguesa. Hoje não sabe precisar a idade exacta com que ouviu pela primeira vez Amália, mas foi “certamente na adolescência”, com a rádio ligada ou em casa de uns tios. “Na verdade, Amália é omnipresente. Entra em nós dessa forma, daí ser tão difícil especificar quando a descobri. Sei que quando tive a noção de quem era fui a correr comprar um CD – The Art of Amália – e ouvi-o até à exaustão”.

Ao contrário da ideia estereotipada que ainda preservamos dos emigrantes portugueses espalhados pelo mundo – de que suspiram por tudo e por nada pelo que é nacional -, os pais de Ruben não alimentavam o fascínio do filho pelas coisas de Portugal. Hoje é ele, inclusive, que tem de “mandar vir com” os progenitores para preservarem a sua identidade portuguesa. “Gosto de coisas que têm alma, que têm história. Adoro pegar em coisas antigas e dar-lhes vida nova”, comenta sobre o espólio material, mas cuja devoção facilmente se transporta para temas menos palpáveis como o fado, uma “música com uma história tremenda”.

A par da voz, Amália Rodrigues também o arrebatou pela sua figura “tão cinematográfica”. “A forma como se vestia, como enchia o palco. É incrível como uma pessoa que nasceu num bairro popular, sem nenhuma educação erudita, depois tinha aquela inteligência toda, de ir buscar poetas para cantar, de inovar tanto… Dá uma personagem cheia de dimensão”.

Ruben teve melhor noção disso mesmo com 20 e poucos anos, quando levou os pais a ver o espectáculo de Filipe La Féria dedicado à fadista, entretanto estreado em Paris. Por essa altura, o realizador já tinha traçado  o cinema como objectivo profissional e com o musical despertou totalmente o interesse pela cantora. “Há sempre um momento em que ou te entregas, deixas-te levar por esse lado emocional que te encanta, ou viras as costas. Eu deixei-me levar, especialmente porque sempre tive desde pequeno essa coisa de vender Portugal”.

A partir dessa altura, sempre que vinha a Lisboa passava noites atrás de noites fechado em casas de fado, para onde ia quase sempre sozinho. A Mesa de Frades, em Alfama, e a Tasca do Chico, no Bairro Alto, tornaram-se locais de peregrinação e foi assim que começou a descobrir uma nova geração de fadistas, com nomes como Ricardo Ribeiro ou Carminho a destacarem-se. “Um dia levei um amigo francês que é produtor musical à Mesa de Frades e nessa noite estava a cantar o Ricardo Ribeiro. Ouvi-lo ao vivo já é sempre um momento muito poderoso, ali tão perto é ainda mais forte. O meu amigo ficou de boca aberta”.

Foi esse sentimento, bem como a “transversalidade que hoje se sente no fado” – facilmente reconhecida ouvindo-se o cunho nortenho de Gisela João, a tradição invocada na interpretação de Camané ou a herança alentejana de António Zambujo -, que Ruben quis transmitir em Amália: As Vozes do Fado (o disco inclui ainda convidados inesperados como Bonga, Branko, dos Buraka Som Sistema, ou Caetano Veloso). “Acho muito bom não perder as raízes, a tradição, mas é importante actualizar as coisas. Até porque quero mesmo que o público francês, sobretudo as novas gerações, preste atenção a este trabalho e comece a isolar o fado no saco enorme que é a world music”.

Há uma razão para este desejo: depois de A Gaiola Dourada ter saído, Ruben fartou-se de receber elogios sobre a cena de fado que existe no filme. Mas neste caso os louvores não eram positivos. Diziam-lhe: “‘Adorei aquela cena de flamenco’. Ficava muito triste e lá explicava que era fado”, comenta. O desconhecimento deu-lhe, porém, um encorajamento maior para divulgar este Património da Humanidade da Unesco, levando mais longe a ideia do disco.

A Amália de Vhils

Já que Lisboa tem cada vez mais turistas e o fado é tão urbano, pertencendo às ruas e ao povo da capital, o realizador lembrou-se de convidar o street artist Vhils (Alexandre Farto) para reproduzir, em Alfama, o rosto de Amália em calçada portuguesa. A criação só foi revelada há pouco mais de uma semana, mas foi difícil mantê-la escondida dos habitantes de Alfama durante as três semanas em que os calceteiros da Câmara Municipal de Lisboa trabalharam na efígie da fadista, que será também a capa do disco. “Ao segundo dia, toda a gente já sabia que era um rosto da Amália”. E os comentários não pararam de chegar, lamentando-se o secretismo da obra: “Tanta coisa, tanta coisa, aposto que vai sair uma merda”, disse um dos habitantes a Ruben Alves.

Hoje, porém, a postura é outra. Qualquer visitante que pise o trabalho é logo repreendido pelos locais. No dia da nossa conversa, um miúdo estrangeiro trepou-o de skate debaixo do braço, com o objectivo de, a seguir, deixar cair em cima da plataforma com rodas aproveitando a inclinação da obra. O ‘atrevimento’ gerou a indignação de Alfama quase inteira e foi Ruben quem acalmou os ânimos. “Expliquei-lhes que esse é mesmo o objectivo do Vhils, que é uma peça integrada na rua e precisa de ganhar pátina”. Alguns bairristas compreenderam, mas daí a aceitarem a ideia ainda vai um longo caminho. Quando algo nos está tão próximo do coração e criamos determinadas expectativas, quem é que nos convence do contrário? 

alexandra.ho@sol.pt