Um fim-de-semana feliz

À memória de Manuel Machado

Na sexta-feira estive na Feira do Livro de Barcelos. Num belíssimo espaço verde do centro da cidade, com jardins de uma enorme variedade floral e muito bem tratados, a Feira estava cheia de gente, disponível não só para ler, mas para conversar sobre os livros e as possibilidades de vida que eles trazem dentro. 

O pensamento e a imaginação são as duas grandes forças do mundo; por isso as ditaduras queimam livros, por isso as democracias titubeantes os desvalorizam. Não é verdade que não haja leitores – desculpa tantas vezes utilizada para manter o tabu sobre conversas em torno de livros na televisão pública.

Não há é vontade de dar voz aos que dedicam a existência a ler, escrever e pensar: entre as dezenas de comentadores sobre a crise grega, ainda não vi na televisão um só escritor. 

O discurso político-partidário é organizado e previsível; articula-se como um esquema pré-formatado e controlável. 

O ‘pensamento único’ que hoje tanto se critica não é, ao contrário do que se afirma, constituído pelo eixo governo-versus-oposição. 

A partidarização convulsiva do pensamento, à esquerda como à direita, é que o esmaga. 

Quando a televisão quer mostrar ‘o povo’ vai buscar um desempregado, uma pensionista, um estudante e um empresário de restauração, e põe-nos a fazer perguntas aos políticos que, gratos e aliviados, saúdam as perguntas ‘concretas’ – sempre mais fáceis de responder do que as questões ‘abstractas’ sobre princípios, estratégias e métodos. 

Não há escritores nem leitores entre ‘o povo’ híper-realista dos ecrãs. Os escritores servem para dar a patine da página silenciosa às Comissões de Honra. Uma vez ouvi a um candidato em campanha esta frase sobre um escritor seu apoiante: «Não me tragam esse aqui para o mercado que ele é muito inconveniente, ainda se põe a falar e estraga-nos tudo». A liberdade é muito incómoda; e quanto mais informada e loquaz, pior. 

 

O Portugal que não aparece nos telejornais é dez mil vezes melhor do que aquele que se vê. 

No domingo fui à minha terra, Tomar, para a Festa dos Tabuleiros. As ruas do centro histórico decoram-se com flores e grinaldas de papel colorido, demonstrando uma criatividade e um amor ao lugar radicalmente comoventes. 

Os tabuleiros são esculturas de pão e flores, encimadas pela cruz de Cristo ou pela pomba do Espírito Santo: cada tabuleiro tem a altura da rapariga que o transporta e pesa entre 15 a 20 quilos. 

Mais de meio milhar de pares (porque, tratando-se de uma festa da fertilidade e da partilha, cada rapariga é acompanhada por um rapaz, que a ajuda na difícil tarefa de carregar o tabuleiro, se for caso disso) desfilaram pela cidade, literalmente abarrotada. 

 

A cidade de Tomar, mesmo sem flores nem festas, é uma visão de paraíso – sobretudo para quem, como eu, ali viveu uma infância feliz e as festas e férias da juventude. 

Os barquinhos de chocolate, o cheiro dos cedros da Cerca, o Nabão onde o meu avô me passeava de barco, a verdejante piscina pública, as naves da Igreja de São Baptista onde tantos segredos e sonhos inventei, os degraus da Câmara Municipal a que o meu tio Manuel Machado presidiu, há mais de quarenta anos, são para mim imensos e universais, como quando eu tinha três ou quatro anos. 

Mas o esforço e alegria daquela multidão que faz flores de papel nas horas livres para a festa da terra, a exaustão orgulhosa com que centenas de raparigas carregam o tabuleiro à cabeça, debaixo de sol, horas a fio, isso concentra na verdade tudo o que aprendi. Nunca deixarei de o agradecer. 

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