Aconselhem-se, que isso passa

Leio nos jornais que anda por aí um pai ‘involuntário’ a ocupar os tribunais de todas as instâncias para que lhe concedam o direito à escusa da paternidade. 

Alega, por exemplo, que o direito constitucional de uma criança à paternidade não pode colidir com o direito igualmente constitucional de uma pessoa à ‘reserva da vida privada e familiar’.

Não faz muito sentido que alguém que se preocupa tanto com a sua família arranje um filho fora dela e se possa queixar da ‘involuntariedade’ de uma gravidez para a qual contribuiu. Os bebés não caem das árvores quando se lêem poemas debaixo delas. E o Anjo Gabriel parece que só apareceu uma vez.

O que a mim me espanta é que este processo tenha pernas para andar, em vez de – atendendo ao famoso e teórico ‘superior interesse da criança’ – ser arquivado na nascente, como são tantos outros que pareciam ter caminho.

O curioso é que este infausto caso se tenha apoiado numa tese universitária (pelos vistos aprovada) que defende que os homens possam recusar-se a assumir um filho estabelecendo o paralelismo com a possibilidade da interrupção voluntária da gravidez.

A estultícia desta comparação recorda-nos que a má-fé se mostra sempre mais ilimitada do que a imaginação humana.

Não tenho aqui espaço para o debate, aliás arcaico e inconsequente, sobre a origem da vida. O que sei é que o facto de o aborto ser proibido nunca, ao longo da História, impediu nenhuma mulher de abortar – mas tem impedido muitas delas, por todo o mundo, de continuarem a viver, deixando muitas vezes cortejos de órfãos.

Conheço inúmeros casos, e tenho uma grande amiga que até hoje – e já vai perto dos cem anos de vida – chora os filhos que não pôde ter porque, tendo-se casado muito jovem e tendo engravidado ao mesmo tempo que arranjou um trabalho de que necessitava mesmo e que era incompatível com a gravidez, fez um aborto em tão más condições que quase morreu, e nunca mais pôde ter filhos.

Falo deste caso concreto porque estou cansada das discussões filosóficas e da moralização sobre o que deve ser o comportamento das mulheres. O mundo iria certamente muito melhor se o comportamento dos homens merecesse metade deste escrutínio.

A obrigatoriedade de consultas de aconselhamento às mulheres que pretendem interromper a gravidez legalmente (ou seja, nas primeiras dez semanas de gestação) é uma golpada feia numa lei aprovada há oito anos por referendo.

Sempre fui (e sou) contra referendos, quaisquer que sejam; vejo-os como deturpações demagógicas e perigosas da democracia representativa (que defendo). Se as razões deste meu parecer não forem evidentes para os leitores, posso explicá-las numa próxima crónica. Sou aliás particularmente avessa a referendos sobre questões de consciência individual, como esta. Mas tendo o referendo obtido resultados claros, porquê esta alteração – e porquê agora?

Além da humilhação que este paradoxal ‘aconselhamento obrigatório’ representa para as mulheres (empurrando-as portanto para a clandestinidade, porque obviamente não as fará mudar de decisão), significará também um atraso na interrupção da gravidez – e a inviabilização legal da mesma, em muitos casos.

As mulheres sós e abandonadas (sempre tão caridosamente invocadas) já dispunham de aconselhamento e acompanhamento a pedido. Mas, por estranho que pareça, a esmagadora maioria das portuguesas sabe pensar pela sua cabeça. É a esta verdade assustadora que muitos não se habituam: aconselhem-se, que isso passa.

inespedrosa.sol@gmail.com