Haverá sangue

No jardim do antigo Hotel Leonardo, em Freital, uma pequena cidade oito quilómetros a sudoeste de Dresden, dezenas de refugiados sírios, kosovares e afegãos protegem-se do passado e do calor tórrido à sombra das árvores: o hotel transformou-se em Março num abrigo temporário para 379 imigrantes dos países mártires do mundo, recém-chegados à Alemanha. O…

À boleia do convénio entre os revolucionários e os seus aliados internacionais, o líbio iniciou então um périplo por hospitais de três países – Jordânia, Áustria e Alemanha -, até que após três anos e nove operações, o braço recuperou 90% da mobilidade. Pelo contrário, as feridas na sua cidade gangrenaram e, em 2014, quando quis regressar a casa, o aeroporto de Benghazi estava fechado devido ao conflito caótico entre milícias rivais. Mohammed não tinha para onde ir. “Levaram-me primeiro para um acampamento com 3000 pessoas em Tröglitz e, há duas semanas, transferiram-me para aqui”, diz. “Quando cheguei, havia dezenas de homens a assobiar-nos e a gritar. Fiquei tranquilo, pois não percebia o que diziam. Mas depois começaram a atirar-nos ovos e pedras. Não nos queriam. Fiquei chocado!”.

Passaram-se três meses desde que Freital se converteu no epicentro da contestação do PEGIDA (Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente) contra as políticas alemãs de emigração. Os apedrejamentos às janelas são diários, o que obriga a polícia a uma vigilância permanente, e já se registaram sete casos de violência física. Sob o risco de espancamento e humilhação, os refugiados não podem sair sozinhos. E a situação piora às segundas-feiras, dia escolhido pelo PEGIDA para marchar nas cidades da antiga Alemanha de Leste. “Se quiser dar uma volta na cidade ou ir ao supermercado, não posso ir sozinho, senão os nazis batem-me”, diz Mohammed. “Só conseguimos sair daqui acompanhados por voluntários que nos protegem”.

O PEGIDA, movimento criado em Outubro de 2014 por Lutz Bachmann, um chef e publicitário com um cadastro repleto de burlas, tráfico de cocaína e condução sob o efeito de álcool, saltou para as manchetes da imprensa mundial no início de 2015, quando 25 mil alemães acorreram às ruas de Dresden na segunda-feira subsequente ao ataque terrorista ao Charlie Hebdo. O acontecimento fez soar as sirenes de emergência num país altamente traumatizado pelo nazismo e pela xenofobia. Angela Merkel apressou-se a criticar publicamente a ideologia do grupo: “A Alemanha é um país de imigrantes”, defendeu.

Pouco depois, no fim de Janeiro, o polémico líder do grupo nacionalista foi obrigado a recuar, em consequência de uma foto disseminada pela internet em que surge vestido como Hitler, com bigodinho e penteado incluídos. Os protestos perderam adesão; hoje, o número de manifestantes vai de algumas centenas a 3000. “Mas aqueles milhares que desfilaram em Janeiro não mudaram de ideologia porque Bachmann se vestiu de Hitler”, diz Andrea Huebler, de 34 anos, activista da RAA Saxónia, uma associação de apoio às vítimas de violência racial. “Essas pessoas podem não comparecer porque não querem ser identificadas pelos vizinhos como membros do PEGIDA, mas são as mesmas que atacam, às escondidas, os imigrantes em Freital ou em Tröglitz ou que espalham as ameaças nas redes sociais”.

Os números recolhidos pela RAA mostram que os ventos semeados pelos seguidores de Bachmann começam a dar sinais de tempestade; só em Dresden, registaram-se 27 casos de violência racial nos primeiros seis meses de 2015, a somar aos 36 de 2014. Um crescimento de 89% em relação a 2013. “Há claramente um pré-PEGIDA e um pós-PEGIDA”, diz Andrea. “E, ao contrário do que os media de Berlim escrevem, o racismo na Saxónia não é coisa do passado. É um fenómeno em ascensão”.

Ninguém melhor que Jens Drescher, o diretor do asilo de Freital, para o comprovar. Drescher não é especializado em trabalho social, nem em psicologia, nem tão pouco em relações internacionais, as áreas mais vocacionadas para dirigir um centro de refugiados convencional. Mas Freital deixou em Março de ser um local qualquer; as intimações e as brigas tornaram-se rotina e o serviço social assumiu um papel secundário perante o protagonismo do ódio. Drescher é detective privado e segurança. E tem pinta disso: alto e largo como um guerreiro bárbaro, argolas nas duas orelhas e uma voz pujante. Podia estar à porta de uma discoteca ou a guardar as costas de um político destacado, mas está a dirigir uma casa com quase quatro centenas de exilados de dez nacionalidades diferentes, dezenas de crianças e 27 mulheres grávidas. “Desculpem, mas esta noite nem fui à cama”, diz o diretor, de 44 anos, acabado de sair do duche e ainda a abotoar uma camisa amarela. “Estive a separar os grupos de esquerda e de direita que se concentraram aqui durante a noite e depois a mediar o diálogo entre eles”.

Drescher e a sua mulher, que o auxilia nas tarefas administrativas, mudaram-se também para um quarto do antigo hotel. “O trabalho é tanto que nem conseguimos ir a casa”, explica. São eles que organizam a distribuição de comida e de roupa, que intermedeiam o contacto entre os refugiados e as instituições burocráticas e, essencialmente, que zelam pela integridade do local e dos ocupantes. A primeira recomendação que fazem a todos os que chegam é a de permanecerem com as janelas fechadas, para não ouvirem os insultos proferidos do exterior. “Há uma tensão constante entre os que exigem que os estrangeiros regressem aos seus países e os que querem mostrar-lhes que são bem-vindos. E esta gente odeia-se. Nem falam uns com os outros”, diz o diretor. “Tenho insistido no diálogo e em abrir o centro a todos aqueles que pretendem conhecer os refugiados e eliminar os preconceitos”. Impera a ignorância. Diz Deschner que corre o rumor entre a extrema-direita que os refugiados que chegam a Freital recebem 9000 euros, acrescidos de mais 900 euros mensais, o que provoca a ira da população. “Mentira absurda”, denuncia. “Recebem apenas os bens mais básicos. Mas não pensem que é barato…só de energia pagamos mensalmente 8000 euros”. 120 camas são pagas pela Câmara Municipal, ao passo que as outras são subsidiadas pelo Governo regional.

Todos os dias chegam de 140 a 150 imigrantes à Saxónia. Só este ano, estima Drescher, a província oriental da Alemanha recebeu 22 mil novos moradores, todos eles bastante carenciados e, em alguns casos, com traumas profundos. “Muitos chegam aqui assustados e com sequelas de guerra ou da viagem para a Europa. Andam à pancada e até houve um sírio que desatou a aplicar choques eléctricos aos colegas com um taser”, conta. Por isso, aprendeu a lidar individualmente com cada um dos casos que lhe aparece pela frente. “Há vários tipos de pessoas – os que chegam só para receber tratamento médico, os que esperam pelo apartamento e os que só querem estar longe da guerra. Vejo refugiados que aprendem alemão, procuram trabalho e querem integrar-se, mas também outros que querem viver às custas do Estado”. O que mais o enerva, diz, é o aproveitamento político da situação. “É uma vergonha!”, exclama, enquanto mostra no telemóvel fotografias de cartazes do Die Linke, partido de esquerda radical, e do Partido Nacional Democrático (NPD), de ideologia neonazi, captadas nas imediações do edifício.

Mas há quem participe sem segundas intenções. Fatigado, Dreschner puxa para cima da mesa uma caixa de cartão com postais chegados nos últimos dois dias. São centenas e vêm de toda a Alemanha. “Infelizmente, não tenho tempo para lê-los”, confessa. “Valorizo o gesto, mas preferia que nos mandassem roupa, brinquedos ou donativos”. Num dos postais, assinado por Marlene, uma estudante de Direito em Leipzig, lê-se: “Fiquei chocada quando ouvi que havia protestos em Freital contra os refugiados. Quero que saibam que são bem-vindos e que vos desejo tudo de bom!”. As cartas escorrem do caixote para cima da mesa e com elas mensagens de paz e amor, pombas brancas e arco-íris. Porém, lá fora, a realidade não é assim tão colorida.

Em Gorbitz, nos arredores de Dresden, predomina o tom pardo dos prédios clonados do modelo soviético – plattenbau -, com as suas fachadas pré-fabricadas. Tradicionalmente um bairro da classe operária, perdeu quase metade dos seus moradores após a reunificação e é hoje o maior bastião do PEGIDA na cidade – na primeira volta das eleições autárquicas, em Junho, a candidata independente apoiada pelo movimento, Tatjana Festerling, arrebatou aqui mais de 20% do eleitorado.

Gorbitz é um dormitório. As ruas estão desertas e só ocasionalmente passa um tipo agarrado a uma garrafa de cerveja ou uma senhora vestida de licra montada numa bicicleta. Quase não há lojas. “Todos os dias tenho de lavar a vitrina porque me escrevem insultos racistas durante a noite”, diz o curdo Agiri, proprietário do restaurante Gorbitzer, adjacente à estação ferroviária. “Estou aqui há 20 anos e nunca tinha tido problemas. Desde que começaram as manifestações perdi clientela e tenho medo”. A escassos metros, Johann, de 38 anos, aguarda pelo comboio para se deslocar para o supermercado em que trabalha. Apesar de não ter votado em Ferterling, admite ter participado em três das manifestações do PEGIDA: “Este era um típico bairro alemão mas, por haver tantas casas baratas e desocupadas, está agora cheio de africanos e árabes. Atiram lixo para o chão, fazem barulho e até roubam. Claro que começámos a perder a paciência”. No Club Pasage, um centro social com bar e sala de cinema ainda do tempo da República Democrática Alemã (RDA), o empregado Milan Süss, de 19 anos, tenta compreender o fenómeno que levou as famílias de Gorbitz a adotarem um discurso tão radical: “Acho que esta zona tem muitos desempregados e muita gente mal formada”, diz. “Quando o PEGIDA começou a apontar o dedo aos emigrantes como fonte do problema, eles foram os primeiros a segui-los porque, finalmente, alguém lhes mostrou que os culpados não eram eles próprios, mas os estrangeiros”.

A fórmula não é nova: a História mostra que em tempos de crise económica, os nativos, como que movidos por uma lei de seleção natural, afastam os estrangeiros para diminuir a concorrência. Mas esta história é outra: a Alemanha tem um crescimento económico sólido e a taxa de desemprego mais baixa desde a reunificação (6,4%). Mesmo em Gorbitz, a percentagem de desempregados é largamente inferior à existente nos países do sul da Europa. Além disso, o peso da imigração é mínimo (2 a 3%) e a cidade tem apenas uma mesquita. E, mesmo com todos estes contra-indicadores, a região tornou-se no maior pesadelo para os muçulmanos na Europa. Então, porquê a Saxónia? Porquê Dresden? Esta é a pergunta que se coloca em vários quadrantes da sociedade alemã.

É preciso recuar a 13 de Dezembro de 1945, a madrugada em que 796 aviões ingleses largaram 4500 toneladas de explosivos sobre Dresden. No dia seguinte, um novo ataque, desta feita da Força Aérea americana, consumou a operação que as forças aliadas definiram como ‘estratégica’. Contam os avós saxões que os bombardeamentos foram de uma intensidade tal que, a 20 quilómetros de distância, era possível ler o jornal à noite, sem qualquer luz. A pérola barroca do Elba, com as suas igrejas, a majestosa ópera e a academia de arte, ficou reduzida a pó: 75 mil prédios colapsaram e entre 18 a 25 mil pessoas morreram. Foram precisos muitos anos para os Aliados e os historiadores reconhecerem aquilo que os habitantes de Dresden tinham como inequívoco: a destruição da cidade foi um crime de guerra e não uma missão estratégica. A propaganda nazi vendeu-a como a cidade-mártir, a vítima do ‘Holocausto alemão’. A mensagem enraizou-se no imaginário colectivo. “Em vez de assimilarem o processo de culpabilização instituído na Alemanha pós-guerra, muitos cidadãos de Dresden incubaram a vitimização”, diz Elisabeth Dike, autora de estudos sobre os paradoxos da memória na História. “Essa ferida aberta ainda influencia alguns sectores da sociedade, que não repudiam o nazismo como noutros pontos do país”.

As quatro décadas seguintes foram de um isolamento profundo sob domínio soviético. Dresden ficava no ‘vale dos desinformados’, uma zona da Saxónia a que a informação era vedada e que não recebia sequer sinal da televisão da Alemanha Ocidental. “Foram 40 anos em que o contacto com os estrangeiros se cingiu aos poucos que vinham aqui parar de outros países comunistas”, diz Andrea Huebler. “Daí que outras culturas ainda causem muita estranheza aos que cresceram na RDA”.

No início dos anos 90, logo após a queda do Muro, o pesado legado histórico emergiu. Milhares de jovens organizaram-se em grupos neonazis e perpetraram diversos ataques a refugiados na Alemanha de Leste, o mais brutal dos quais em Rostock, em 1992, contra imigrantes romenos e vietnamitas. “Se olharmos bem para a composição do PEGIDA, constatamos que a maioria dos seus apoiantes são de meia-idade. Não é preciso ser um especialista em matemática para calcular que estas pessoas que hoje marcham em Dresden são as mesmas que atacaram selvaticamente os imigrantes há 20 anos”.

A esquerda chama-lhes ‘Nazis in Nadelstreifen’ (’Nazis com fato’): conservadores da classe média, de meia-idade, facilmente influenciáveis por discursos populistas e xenófobos. São eles que formam o grosso da plateia que se junta ao final da tarde de uma segunda-feira na Praça Richard Wagner, em Leipzig. No meio das cores saxónicas e germânicas, destacam-se as bandeiras de dois países estrangeiros: Israel e…Portugal. É José António (nome fictício), de 47 anos, que carrega o estandarte luso, adornado com uma rosa. “Estou aqui pela 14ª vez para dizer que as leis de emigração têm de ser muito mais duras”, diz o algarvio, que se instalou em Leipzig, onde trabalha como administrador de condomínio, em 1997. “Ninguém tem o direito de trazer a sua porcaria para a Alemanha. Quer seja árabe, africano ou português, quem comete um crime deve ser recambiado para a sua terra. Mais nada!”. No palco, Lutz Bachmann, de boné e óculos escuros, discursa para um milhar de seguidores. Os alvos a abater são denunciados, um a um, acompanhados por aplausos: o Islão, a ‘Luegenpresse’ (‘imprensa mentirosa’), o imperialismo americano e Angela Merkel, “uma esquerdista que sacrifica o povo alemão em prol dos muçulmanos e dos gregos”. De repente, o guru do PEGIDA é atingido por uma granada de tinta vermelha, atirada por um anti-fascista que furou a barreira policial. “Estes tipos são fascistas de esquerda. São uns animais. Eles odeiam o Estado e a nação. A imprensa diz que nós somos perigosos mas a verdadeira ameaça está daquele lado”, diz José, apontando para a numerosa falange anti-PEGIDA, agrupada nas traseiras do palco. O seu objetivo é abafar os discursos dos nacionalistas; para isso, capricham nos apupos e nos assobios, reforçados com uma dose de punk disparada ruidosamente de um sofisticado equipamento sonoro. Acompanham com o dedo do meio permanentemente estendido para Bachmann. “Cada vez que eles saem à rua, temos o dever de enfrentá-los para mostrar que em Leipzig não têm hipótese de triunfar”, diz Lucia, 26 anos, voluntária na ajuda aos refugiados asilados na cidade. “Somos o país mais próspero da Europa e podemos ajudar muito mais. Veja-se a Operação Mare Nostrum: estava a correr bem e teve de ser abortada porque a Itália estava a pagá-la sozinha. A Alemanha tem capacidade para mais. E estes nazis só protestam porque têm medo de perder a prosperidade”.

A marcha arranca após os discursos. É encabeçada por duas pessoas em cadeira de rodas, seguidas pelas faixas do movimento e por um grupo musculado de ‘cabeças rapadas’, todos com t-shirts de marca Yakuza – a nova moda entre os neonazis. Erguem cartazes com cruzes sobre mesquitas, motes contra os jornalistas e Merkel nas mais variadas situações: como Hitler, mas com o símbolo do euro a substituir a suástica, vestida de freira com a inscrição ‘mamã multicultural’ ou a sair do traseiro do americano Tio Sam. O portador deste último é detido pela polícia. José junta-se a outros manifestantes na tentativa de resgate do companheiro. Depois, discorre sobre a “islamização já em curso”, sobre a necessidade de “novas cruzadas” e as “táticas sujas dos árabes que fazem muitos filhos para ter benefícios sociais e povoar a Alemanha de muçulmanos”.

Ao longo da avenida, centenas de anarquistas furiosos tentam furar a barreira policial para bater nos manifestantes. Os nacionalistas respondem com provocações. Um homem alto e grisalho aponta para as manchas vermelhas na t-shirt: “É o sangue seco de um parasita de esquerda”, explica o amigo. Os ânimos fervilham. Cheira a ódio, muito ódio, daquele putrefacto por anos de armazenamento nas caves da História. “Olhem para isto. É um ambiente de guerra civil”, desabafa Tatjana Festerling, a candidata autárquica do PEGIDA. “Está na hora do Governo definir uma estratégia para travar a imigração ilegal. O esforço que estamos a fazer em Dresden nesse sentido é a última esperança deste país. Se falhar, haverá sangue”.

De regresso à praça, José queixa-se do novo abrigo para refugiados que abriu próximo da escola dos filhos. “Esta gente vem para cá e só depois de nove meses ficamos a saber quem eles são. Podem até pertencer ao Estado Islâmico. Não pode ser. Eu exijo saber quem são estas pessoas e ao que vêm”. A 100 quilómetros dali, em Freital, o sírio Ibrahim espera pelo estatuto de refugiado para poder trabalhar como médico. Entretanto, recusa-se a dizer à família que é insultado diariamente e que o abrigo em que vive já foi alvo de fogo posto e de uma tentativa de invasão. “Eles já têm problemas que cheguem”, diz. Mas vive assustado. “Se eles me dessem, pelo menos, a oportunidade de lhes contar a minha história, tenho a certeza que não me odiavam. Mas nenhum deles aceita sequer conversar comigo”.