Trump. O nome é Trump

Donald Trump. Uma sondagem recente nos Estados Unidos concluiu que 99% dos americanos conhecem este nome – Trump. Aos 1% dos inquiridos que não sabem quem é Donald Trump, o próprio dispararia, de língua mais rápida que uma ligação nervosa, com o reiterado ‘losers’: que espécie de falhado não ouviu falar de um homem que…

Trump. O nome é Trump

A ausência de humildade é proporcional à carência de travão oral. Donald Trump partilha o que pensa, mesmo que ninguém esteja interessado. É desbocado, malcriado, rude, factualmente incorrecto – e, não estando sozinho no batalhão de gente-de-fazer-cair-o-queixo-com-as-alarvidades-que-profere, o que distingue o (the) Donald é este trunfo (trump): carradas de dinheiro.

Trump é o maior financiador da sua campanha. A 30 de Junho, tornou público um descritivo da fortuna, que calculou em 8,7 mil milhões de dólares (dos quais 3,3 mil milhões representavam o valor do seu apelido). Semanas depois, subiu a parada: “Afinal, valho mais de 10” mil milhões – um montante que a Bloomberg já contestou, baixando-o para 2,9 mil milhões. A empresa de media avança que o portefólio trumpiano “é dominado por arranha-céus e campos de golfe”, com holdings ligadas ao imobiliário, resorts, a famosa Trump Tower de Manhattan… A disparidade, reconhece a Bloomberg, deve-se em parte a formas distintas de apreciar as propriedades, e pelo facto de, segundo a agência, Donald Trump não “revelar a sua metodologia” de avaliação.

Como autofinanciador, no entanto, o magnata permitiu-se ainda no fim-de-semana passado rotular de “marionetas” os candidatos republicanos que compareceram num encontro com ricos doadores das campanhas, patrocinado pelos multimilionários do petróleo, os irmãos Koch. Entre os concorrentes de Trump às primárias republicanas, estavam presentes o ex-governador da Florida Jeb Bush, o senador do Texas Ted Cruz, o senador da Florida Marco Rubio, o governador do Wisconsin Scott Walker e a ex-presidente da Hewlett-Packard Carly Fiorina. O nova-iorquino – que não foi convidado para a conferência – desejou “boa sorte a todos os candidatos republicanos que viajaram até à Califórnia para mendigar dinheiro dos irmãos Koch”.

A liderança nas sondagens, no campo republicano, afia-lhe a língua. Soma consistentemente cerca de um quinto das preferências dos inquiridos, à frente dos mais  directos perseguidores, Jeb Bush e Scott Walker (ao mesmo tempo, numa fórmula ama-se/odeia-se, uma percentagem idêntica dos sondados detesta-o). No tanque republicano com – até agora – 17 tubarões, Trump domina a luta e deve-o sobretudo à retórica sem filtro. Como o próprio reconhece, desalinha-se da linguagem vagarosa do politicamente correcto: “Não gosto de desperdiçar muito tempo”. Isso vale-lhe alguns admiradores, mesmo entre os concorrentes. Ted Cruz está nesse clube de fãs: “Acho que ele é óptimo. Acho que ele é impetuoso. Acho que ele diz a verdade”. Trump já retribuiu os elogios.

Quantos mais sound bites atira, mais cobertura mediática tem, mais reconhecível se torna – e mais sobe nas sondagens. No reverso da medalha, mais aliena potenciais eleitores.

Ficará para a história o discurso de 16 de Junho em que se anunciou protocandidato à Presidência dos EUA, com a (já) famosa diatribe dos imigrantes mexicanos – os que “estão a trazer drogas. Estão a trazer crime. São violadores”. E alguns, presume ele, “são boas pessoas”. E outros ainda, admitiu mais tarde à CNN, por causa de uma notícia do Washington Post, provavelmente até são seus assalariados. Porque Trump “não podia garantir” que todos os trabalhadores que emprega estão em situação legal na América.

Os republicanos bem sabem que precisam de cortejar a comunidade hispânica e as mulheres, mas o estilo do multimilionário é um eficaz repelente de votos. Como sintetizou um colunista do New York Times, “o que são boas notícias para Trump podem ser notícias desastrosas para a marca republicana”.

E as ameaças de Michael Cohen – vice-presidente executivo da Trump Organization e conselheiro jurídico do patrão – a um jornalista do Daily Beast também são más notícias. O repórter repescou uma velha história, retirada do livro de 1993 Lost Tycoon: The many Lives of Donald J. Trump (do ex-jornalista da Newsweek Harry Hurt III), em que a primeira mulher de Trump, Ivana, confessava que o marido a tinha violado. Frases como “vais sofrer as consequências” ou “vou dar cabo da tua vida enquanto estiveres neste planeta” marcaram a posição de Cohen. O tiro no pé, o vice disparou-o com a explicação: “E, claro, entende que por definição não se pode violar a própria esposa”.

O detalhe é que não só a violação marital é um facto – como é um crime no estado de Nova Iorque desde 1984. E o caso de Ivana data de 1989. Cohen já pediu desculpa, reconhecendo que este último comentário foi “inarticulado”. O Donald, à CNN, sacudiu a água do capote: “Ele não está a falar por mim, claro, mas eu disse-lhe que não concordava com ele. O Michael estava extremamente zangado porque ele sabia que aquilo nunca aconteceu”.

O que “nunca aconteceu” foi um episódio relatado por Ivana no livro e descrito nas audiências de divórcio dos Trump. Após uma operação de redução do couro cabeludo pelas mãos de um cirurgião indicado pela então mulher, Trump culpou-a pelo (infeliz) resultado final e vingou-se. Quando Lost Tycoon: The many Lives of Donald J. Trump foi para as estantes, já o casal estava divorciado. A primeira página da obra apresentava uma declaração de Ivana: “Afirmei que o meu marido me tinha violado. […] Como mulher, senti-me violada, no sentido em que o amor e o carinho, que ele normalmente mostrava por mim, estavam ausentes. Referi-me a isso como ‘violação’, mas não quero que as minhas palavras sejam interpretadas no sentido literal ou criminal”.

Ivana, com quem Donald esteve casado entre 1977 e 1992, comprometeu-se no acordo de divórcio – que lhe terá garantido 25 milhões de dólares – a não falar do casamento sem a autorização do ex. A exuberante socialite de origem checa conheceu Trump na década de 70. Nessa época, o jovem baby boomer nascido em Queens já tinha galgado o rio East para a margem ‘certa’: Manhattan. O filho de Fred Trump – fundador da dinastia ligada ao ramo imobiliário, mas que não deu o salto para o coração de Nova Iorque – começou por trabalhar com o pai. Recebia as rendas nos prédios de custo controlado: “Um dos primeiros truques que aprendi foi que nunca se fica de frente para a porta quando se bate. Fica-se junto à parede e estica-se o braço para bater à porta”, recordava o Donald em Trump: The Art of The Deal (1987).

1971 revelou-se um ano-chave: alugou um estúdio em Manhattan, no Upper East Side: “Fiquei a conhecer todas as boas propriedades”, relata na mesma obra, híbrido de autobiografia com conselhos sobre negócios. Tornou-se um rapaz da city e apostou na noite – a noite elitista do Le Club. Entre os seus membros estavam “alguns dos mais bem-sucedidos homens e as mais belas mulheres do mundo. O género de sítio onde era provável ver um velho rico de 75 anos entrar com três louras suecas”. À sua maneira, Trump terá chegado lá: depois do casamento com a modelo Ivana, com quem teve três filhos, deu o nó uma segunda vez com a actriz Marla Maples (1993-1999, uma filha) e está casado desde 2005 com a ex-modelo eslovena Melania Knauss. A idade das consortes foi baixando: Melania, com quem também tem um filho, é 24 anos mais nova – Trump já vai nos 69.

Era ainda Trump solteiro a viver la vida loca na cidade que nunca dorme quando, do outro lado do mundo, um homem aguardava a liberdade numa esquálida cela vigiada por vietcongs. Os destinos de um e outro haviam de cruzar-se. Ao também jovem John McCain – ex-candidato presidencial derrotado por Obama e actual senador republicano,que nas palavras de Trump “só é herói de guerra porque foi capturado” -, cujo avião tinha sido abatido sobre Hanoi, quebraram os ossos mas não o espírito. O tenente, filho do almirante que também comandou as forças armadas dos EUA naquele teatro de guerra, recusou a liberdade antecipada que a filiação lhe garantia e penou meia década nas prisões do Vietname do Norte, vítima de torturas reiteradas e documentadas.

Nesses idos de 60 e 70, o playboy do imobiliário que vestia fatos castanho-avermelhados com mocassins a condizer fez-se um empresário confiante. Em 1983, num perfil do New York Times, um Donald J. Trump mais moderado nos casacos azuis-escuros e camisas de riscas discretas sentenciava: “Aos 37, ninguém fez mais do que eu nos últimos sete anos”. O vazio de modéstia e a fixação de ‘entrar a matar’ já eram as fundações da marca Trump. Tinha erguido os 68 andares da luxuosa Trump Tower na 5.ª Avenida, os 1.400 quartos do Grand Hyatt Hotel e estava a concluir o megacomplexo de hotel e casino da Trump Plaza, em Atlantic City.

Vendeu anos mais tarde a sua parte no segundo empreendimento e o terceiro já fechou portas, em contenda judicial. Um ex-colaborador de Trump e executivo da Trump Plaza descreveu em 1991, no livro Trumped!, uma aversão do Donald: “Tipos negros a contar o meu dinheiro! Odeio isso”. Outro brinde foi: “A preguiça é uma característica dos negros”. O visado não refutou as acusações quando, em 1999 numa entrevista à Playboy, se referiu à prosa livresca de John R. O’Donnell – “O que O’Donnell escreveu sobre mim é provavelmente verdade. O gajo é um falhado de merda”.

Os negócios tentaculizaram-se, à medida que a marca Trump crescia. Abriu casinos na Nova Jérsia, pontuou o país de resorts, hotéis, campos de golfe e condomínios, numa expansão que ao longo dos anos chegou além-mar. A crise também o atingiu, com o império imobiliário a sofrer as ofensivas de várias bancarrotas, sobretudo nos anos 90. Quando em 2010 foi chamado a depor, na terceira vez que a Trump Entertainment Resorts Inc. abriu falência, a Time recorda que ele disse ao juiz: “Não gosto da palavra B”, de bancarrota.

Outro negócio falhado tinha asas. No final dos anos 80 comprou a Eastern Air Shuttle, uma frota de 17 Boeing 727 com rotas entre Nova Iorque, Washington e Boston. Renovou os interiores com toques à Trump, desde chão envernizado a adornos dourados nas casas de banho. A Trump Shuttle nunca teve lucro e passou para as mãos dos credores em 1992. Já neste milénio a Trump Mortgage durou ano e meio até fechar portas: pretendia ser a companhia líder de mercado nos empréstimos para habitação, mas implodiu com a bolha imobiliária de 2007.

Abriu caminho para as fragrâncias Trump – uma expectavelmente baptizada de ‘Sucesso’ -, a colecção de fatos, camisas, gravatas e acessórios para homem com assinatura Donald J. Trump, os concursos de beleza da Miss USA, Miss Universo e Miss Teen USA. As recentes apreciações sobre mexicanos levaram a NBC a cortar relações comerciais com Trump: as competições em busca da mais bela já não serão emitidas pelos canais da estação. Os grandes armazéns da Macy’s também acabaram com uma parceria de mais de uma década. A refinada ironia, que a internet não perdoa, é que a linha de roupa de Trump etiqueta-se tanto com made in China (“as coisas que vêm da China desfazem-se ao fim de ano e meio, não valem nada”, garantiu em 2010 à Fox News) como com made in Mexico.

Ainda que o milionário tenha emendado depois em comunicado que nunca lhe “agradou o facto de as gravatas e as camisas serem feitas na China”, e de ter assegurado que uma eventual nova colecção seria fabricada na América, o deslize ter-lhe-ia custado o seco remate da sua própria autoria: “Estás despedido”. Pelo menos no programa televisivo que apresenta, The Apprentice, com aspirantes – e há a versão Famosos – a homens de negócios, que a NBC também vai deixar de transmitir.

“Este tipo, Trump, é um monstro egoísta, rico louco. Pessoas como ele são supostas comprar os candidatos – e não ser candidatos”, gozou Jon Stewart, némesis assumida do empresário, em recta final do The Daily Show. O apresentador, que se despediu ontem do programa, agradeceu ao longo das últimas semanas o manancial que Trump ofereceu, apenas sendo ele próprio, para as sátiras do talk-show.

E é sendo ele próprio que Trump enfrenta agora outro nível de combate no ringue político das primárias, distantes ainda da nomeação que a Convenção Nacional Republicana fará no Verão de 2016. Seleccionado para o primeiro debate televisivo entre republicanos, na Fox News, que ontem reunia os 10 candidatos melhor posicionados nas sondagens (já depois do fecho desta edição), é esperado nesta e em próximas contendas com outros pretendentes que apresente ideias. Provavelmente não poderá repetir sugestões de política externa como a que fez em 2010 à ABC sobre o Iraque. Assertava então que os EUA deviam “ficar” com o petróleo iraquiano como recompensa pelos custos que os americanos já tinham tido em guerras no Médio Oriente: “Não se trata de roubar nada. É levar – estaríamos a reembolsar-nos”.

Pelo menos ontem, o ainda líder das sondagens republicanas não teve de estar cara a cara com Lindsey Graham e Rick Perry. O senador e o ex-governador, dos poucos que mais firmemente criticaram a retórica de Trump, não se qualificaram para a discussão televisiva. Evitaram por agora cruzar-se com o homem que: a) tornou público o número de telemóvel de Graham, b) tweetou que Perry “devia ser obrigado a fazer um teste de QI antes de o deixarem entrar no debate republicano”. Enquanto Trump estiver na corrida, o circo não sai da cidade.

ana.c.camara@sol.pt