Por estes dias, a vida de Luís Ferreira anda em permanente rebuliço. Mas ao contrário dos milhares de portugueses que nesta altura do ano gozam férias, a agitação está bem distante da rebentação impetuosa das ondas do mar ou de movimentações geográficas à descoberta de tesouros históricos e culturais. Desde 2006, quando criou o Bons Sons na aldeia de Cem Soldos, a pouco mais de cinco quilómetros de Tomar, que o designer de formação está privado de qualquer tipo de lazer no mês de Agosto – embora, no caso deste festival, que acontece na terra onde Luís nasceu há 31 anos, a palavra trabalho se confunda muitas vezes com ócio.
O prazer que tem ao testemunhar (e contribuir para) o crescimento do Bons Sons alivia qualquer carga que a preparação do evento impõe, até a das últimas edições, em que o mesmo ganhou uma incontestável dimensão nacional. Foi, aliás, essa afirmação no extenso panorama de festivais de música de Verão que determinou alterar a periodicidade do Bons Sons, que a partir desta edição passa a acontecer todos os anos. Abandonar o carácter bianual que o definia desde há nove anos foi uma ambição traçada logo na criação do festival, mas foi o sucesso da iniciativa que impulsionou a mudança.
Tornou-se normal avaliar o êxito de um acontecimento através da ditadura dos números. Mas em Cem Soldos a contabilidade não se faz só com os 38 mil espectadores que, no ano passado, entupiram as ruas da aldeia durante os quatro dias de concertos. Antes da adesão dos festivaleiros, foi o trabalho desenvolvido pela comunidade que ditou a singularidade deste festival. E essa participação local totalmente integrada é um dos grandes trunfos do Bons Sons. «Seria natural senhoras de 90 anos não terem lugar na produção de um festival de música. No Bons Sons têm um papel de destaque», comenta com a Tabu Luís Ferreira, numa tarde particularmente quente de Junho, enquanto nos encaminha para a Oficina das Avós, onde se produz todo o merchandising do festival.
Resguardadas da temperatura elevada que se sente na rua, 12 idosas entrelaçam as linhas que as unem ao festival. A mais nova do grupo é a septuagenária Carolina Mourão, nomeada coordenadora da Oficina e responsável por garantir a produção de, pelo menos, 1.500 Tixas por ano, a largatixa em feltro que serve de mascote do Bons Sons. É ela que nos conta que cada peça demora, em média, uma hora e meia a concluir, enquanto os porta-chaves e as pregadeiras em crochê já não requerem tanta dedicação.
Sentadas em redor de uma mesa – onde repousam agulhas, tesouras, cestos cheios de novelos coloridos e dezenas de tecidos retalhados -, as avós comentam que o Bons Sons contribuiu para que se sintam úteis à aldeia. «Velhos são os trapos», brinca a senhora Marília, de 92 anos, para depois perguntar a Luís Ferreira se é desta que o rancho local actua no festival. A gargalhada é geral.
Grande parte dos artistas que compõem o cartaz – quase sempre 100% nacional – são nomes desconhecidos para as matriarcas de Cem Soldos. Nesta edição, as excepções serão, provavelmente, os fadistas Ana Moura e Camané, mas nomes como Bruno Pernadas, D’Alva, Nigga Fox ou Duquesa (entre as cerca de 50 bandas agendadas) passam-lhes completamente ao lado. Tal como acontece, aliás, à maioria dos habitantes de Cem Soldos. Mas isso não belisca, em nada, a fé que depositam no trabalho de Luís Ferreira.
O Bons Sons foi criado com a premissa de que o trabalho voluntário em comunhão pode fortalecer uma comunidade inteira. Quer isto dizer que, pagas as despesas, os lucros revertam para a aldeia, como aconteceu no ano passado, em que as verbas angariadas serviram para construir um lar de idosos e residências artísticas. E esta capacidade de agregar uma região inteira em torno de um bem comum tem sido reconhecida por inúmeras instituições, que consultam ou convidam regularmente Luís Ferreira para palestras sobre o tema um pouco por todo o país. «Consideram o Bons Sons inspirador e muitas vezes querem implementar algo semelhante nas suas localidades», afirma o director, frisando que o facto de não dependerem dos habituais patrocínios de grandes marcas é outro dos aspectos mais louvados.
A ideia para fazer o Bons Sons partiu da associação cultural local (a SCOCS), em 2006, quando a organização celebrou 25 anos. «Começámos a pensar numa forma especial de assinalar a data, valorizando o conhecimento local e a tradição cem-soldense de trabalho em equipa». Aceite por todos, nas duas primeiras edições houve, porém, alguma desconfiança em relação à permanência durante tantos dias de estranhos em Cem Soldos. «No início, foi um grande impacto. Começaram a aparecer pessoas com tranças rastafari, que não tomavam banho e andavam sempre com cães… Ficámos um pouco apreensivos. Mas depois correu tudo tão bem, não houve roubos, nem confusão nenhuma», lembra a senhora Carolina Mourão, autocensurando-se por ter julgado pessoas pela aparência.
Nestes nove anos de actividade, o grande percalço acabou por acontecer na 4.ª edição, em 2012, mas não teve nada que ver com o público. Um problema técnico de bilheteira, que Luís Ferreira nem gosta muito de comentar, causou o prejuízo, com a associação cultural a ter de assumir uma dívida inesperada. «Até hoje ainda não percebemos muito bem o que aconteceu. Mas foi um momento difícil, em que esteve em cima da mesa acabar com o Bons Sons».
Luís foi dos que se bateram pela continuação, «porque era uma pena desperdiçar tanto potencial», mesmo que para isso tivessem de assumir outras responsabilidades. «Arranjámos vários trabalhos em Lisboa e Tomar, como montagens de infra-estruturas e trabalhos de restauro, e tudo o que se ganhava era para abater a dívida. Também decidimos que não ia haver gastos com pequenas coisas, só com grandes que garantissem retorno financeiro», revela o responsável.
Assim, o voto de confiança no Bons Sons manteve-se, com a população a encontrar soluções para minimizar a ocorrência de erros. «Os nossos engenheiros informáticos [o nosso aqui é literal, uma vez que são todos cem-soldenses] criaram um sistema específico para as cinco entradas da aldeia», diz Luís, explicando que as valências pessoais e profissionais dos cerca de mil habitantes de Cem Soldos são sempre usadas em prol da comunidade. E, de-pois, há todo o conhecimento autodidacta que acumularam com a produção ao longo destes nove anos do Bons Sons.
O percurso pessoal de Luís Ferreira mostra isso mesmo. Designer de formação, o director do festival trabalhou durante vários anos como coordenador de produção e desenvolvimento na ExperimentaDesign, em Lisboa. É, aliás, na cidade que vive e trabalha, até porque sente que ajuda «melhor Cem Soldos» estando em permanência na capital. Mas a presença há uma década em Lisboa não retira, em nada, o orgulho que tem em ser cem-soldense, até porque nunca, durante todo o seu crescimento, se sentiu «prejudicado» por viver ali. «A associação sempre se preocupou em proporcionar experiências e actividades aos jovens e, em miúdo, fartei-me de fazer campos de férias e intercâmbios de jovens em países como Luxemburgo, Irlanda, Eslováquia, Polónia, Albânia, Itália… Conheço muitos lisboetas que nunca tiveram estas oportunidades».
A própria vivência da aldeia, realça o responsável, é favorecida pelo seu «urbanismo». «Haver este largo central potencia a vida em comunidade. Toda a gente se concentra aqui», comenta, enquanto nos dirigimos para a praça.
São seis da tarde e estão todos em contagem decrescente para o Arraial, que acontece anualmente no último fim-de-semana de Junho. O frenesim no largo é notório. Enquanto um grupo de adolescentes coloca lâmpadas num coreto, outro agrupamento de homens está atarefado a estender uma esteira de palha sobre os bares. Em simultâneo, há crianças a distribuir cadeiras pelos espaços de restauração, mulheres a estender toalhas e demais voluntários a espalhar sinais com sentidos obrigatórios e de proibição para orientar o trânsito. E quase todos trazem vestidas t-shirts de edições passadas do Bons Sons. Não é o caso de Alexandre Santos, de 22 anos, porque as dele estavam «por lavar», mas a disponibilidade que oferece para executar as tarefas necessárias é semelhante à de qualquer outro morador.
O jovem tinha 13 anos quando o Bons Sons começou e já nem imagina Cem Soldos sem a enchente de gente que invade a aldeia a meio de Agosto. É a ele que Luís Ferreira se dirige para ajudar a montar as tiras de flores de papel coloridas, missão que promete durar horas depois de o vento ter-se intrometido no ofício ao entrelaçar a peça toda.
Nestas ocasiões, o trabalho colectivo estende-se para lá do largo. Umas ruas atrás da praça central, tal como na Oficina das Avós, há várias mulheres reunidas de volta de uma mesa. Mas em vez das linhas de lã e dos tecidos de natureza diversa, aqui arranjam-se frangos, picam-se cebolas e alhos, cortam-se legumes. Há panelas xxl que começam a ser postas ao lume, dezenas de paletes empilhadas com vários ingredientes.
Sandra Craveiro, de 33 anos, é a coordenadora da restauração. «O que fazemos para o Arraial é uma espécie de aquecimento para o Bons Sons», diz, bem-disposta, explicando que durante o festival há dez áreas de restauração espalhadas por Cem Soldos, incluindo dois restaurantes com lugares sentados. Destes espaços, só dois é que são concessões – escolhidas após a recepção de 50 propostas -, porque em 2008, quando a alimentação ficou quase toda a cargo de serviços externos, não correu tão bem. «Nesse ano, o festival cresceu tanto que não tínhamos capacidade para dar resposta a tudo. Mas rapidamente percebemos que quem nos visita no Bons Sons quer ser recebido pelos cem-soldenses». E é assim que Luís Ferreira imagina a continuação do festival, que para o ano completa a sua primeira década.
alexandra.ho@sol.pt