Enfrasque-se no Verão

Há poucas vinganças que restam aos desgraçados que continuam a trabalhar quando 90 % da população foi a banhos e manda fotos para o Facebook dos pezinhos na areia, dos petiscos à beira-mar e das ilhas desertas paradisíacas onde estende a toalha. Para aqueles a quem ilha deserta significa o grupo de quatro ou cinco…

Saladas no Frasco, de Julia Mirabella, é a tradução da Editorial Presença do Mason Jar Salads, onde se fornecem 28 receitas para criar saladas que se transportam para o trabalho. A partir destas 28, e dominados os princípios genéricos de como construir uma refeição em altura, a imaginação só acaba com o frasco todo cheio. O truque é compreender a técnica do layering – mais ou menos como na moda. Seguem-se as regras e ninguém se magoa. Julia Mirabella, a autora e blogger, conta que se viu confrontada com um problema quando começou a trabalhar: precisava de se manter saudável com refeições confeccionadas rapidamente.

Diz Julia, na introdução, que descobriu que podia preparar cinco refeições para os dias úteis da semana, reunindo os ingredientes em frascos numa hora aos fins de tarde de domingo. A cada dia que passa é só apanhar um frasco no frigorífico e sair porta fora. A questão que se põe – a quem vê os legumes apodrecerem em três dias – é saber graças a que truque de magia a salada se aguenta. Tem que ver com a disposição científica das camadas: a primeira, a assentar no fundo, é obrigatoriamente o tempero (que pode ser um vinagrete), a seguir deverão ser colocados alimentos que não absorvam molho e só no fim se devem adicionar as verduras e as folhas.

Quanto menos ar dentro do frasco melhor. No final da montagem deve fechar-se bem, conseguindo um efeito de quase vácuo. Segundo a autora, é por causa deste efeito que os alimentos se mantêm frescos. E o facto de serem acondicionados em vidro, e não em plástico, permite ainda um consumo mais saudável, livre de químicos.

Numa altura em que o transporte de marmitas se tornou prática comum, para Isabel Zibaia Rafael, autora do blogue premiado Cinco Quartos de Uma Laranja, a ideia das saladas em frascos é “uma moda muito engraçada e útil. Uma maneira muito prática de fazer refeições saudáveis. À hora de almoço basta virar o conteúdo para uma taça e a salada está pronta com tempero e tudo”. A única questão, adianta Isabel, é garantir que não haja erros de composição: em baixo os alimentos que não se estraguem com a marinada. E é importante “ter em atenção a qualidade e frescura dos ingredientes e manter o frasco bem vedado”. A moda cá ainda não pegou a sério mas, diz Isabel Zibaia Rafael, seria bom que pegasse. Pelo menos no Verão, quando é agradável dispensar o microondas.

Virgílio Nogueiro Gomes, conhecido investigador e professor de História da Alimentação e autor de livros sobre a nossa tradição gastronómica, entende que a moda pode ser boa, mas só se for posta em prática como deve ser. “As modas resultam de uma reflexão sobre as condições em que vivemos, e isso tem um lado positivo. E agora há cada vez mais gente a levar almoço para o trabalho. Tenho medo é das coisas feitas à pressa e mal. É como o sushi, mal preparado pode ser perigoso”.

Mas será esta ideia de uma alimentação à base de saladas um estrangeirismo? Para o autor de Transmontanices: Causas de Comer, longe disso. “Em Portugal há imensas saladas, claro que sim! E até há um tipo muito particular, como as saladas de leguminosas com conservas, muito comuns entre nós e que não existem em mais lado nenhum. No Verão, o feijão frade com uma conserva de atum ou sardinha é uma das refeições recorrentes”, defende o investigador. Mais ainda, as saladas de polvo frias, com tomate, pimento e cebola, ou de búzios, servidas como petisco e mote inicial de um jantar de Verão. E há ainda o grão de bico com lascas de bacalhau, a meia desfeita intemporal que pode levar um toque de pimentão doce e a salada russa, “que não é portuguesa, mas da qual nos apropriámos, acompanhando com croquetes, rissóis ou pastéis de bacalhau”.

Dentro do capítulo modas, há ainda as receitas que recorrem a produtos recém-valorizados, como a salicórnia, “uma erva que está a ser recuperada e que tendo sabor salgado permite retirar o sal marinho do tempero”, e a introdução de couves cruas em juliana, como é o caso da roxa.

Se tudo isto pode ser construído em altura dentro de um frasco e ficar dias no frigorífico?A ideia não é essa, mas entre nós, consumidores da chamada dieta mediterrânica, comer vegetais é uma tradição. “Veja-se que uma das características essenciais da dieta mediterrânica é que a proporção de vegetais é maior do que a das proteínas”. E a simplicidade é um trunfo entre nós, mesmo em chefes consagrados: “Os livros de receitas do José Avillez e do Henrique Sá Pessoa são do melhor que podemos ter. E a simplicidade e a relação com os vegetais são preponderantes”. Para o gastrónomo transmontano, aliás, ingerir vegetais é uma necessidade. Frequenta o Templo Hindu, com “um excelente buffet vegetariano ao domingo”, e os seus olhos estão agora a devorar o Livro de Cozinha da Marta, da Marta Horta Varatojo, essencialmente vegetariano e macrobiótico, com “saladas fantásticas”. De resto, a salada é “um elemento importantíssimo do equilíbrio alimentar”, diz o gastrónomo que tem trabalhado activamente na preservação da cultura alimentar portuguesa.

E acrescenta que é importante seguir as recomendações de Michael Pollan, o jornalista e guru de uma revolução em curso, inventor das regras de ouro, publicadas em Portugal sob o título Saber Comer. Algumas das regras: ‘Coma apenas o que pode apodrecer’; ‘Não coma comida que lhe entre pela janela do carro’; ‘Se tem o mesmo nome em todas as línguas não é comida; lembre-se do Big Mac e das Pringles’. Resumindo, Michael Pollan chegou à doutrina: “Coma comida. Não demasiada. Sobretudo plantas”. Em frascos ou não, o que importa é o cômputo final.

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