Sousa e Castro: ‘Marinho tem a Idiossincrasia de um militar de Abril’

Integrou o Movimento das Forças Armadas e foi porta-voz do Conselho da Revolução até à sua extinção. Deixou então a vida militar e dedicou-se aos negócios: uma fábrica de gangas e lojas pelo país. Pelo meio, foi director da campanha de Maria de Lourdes Pintasilgo a Belém e passou pelo PRD do amigo Ramalho Eanes.…

Onde andava quando Portugal entrou na CEE, organizou a Expo’98 e aderiu ao Euro?

Estava nos negócios. Uma grande parte dos militares que fizeram o 25 de Abril foram tratar das suas vidas depois de 1982.

Despreocupados com a vida colectiva?

Feita a transição era o tempo dos partidos. Eu não participava na política, mas economicamente ia fazendo as minhas avaliações.

Deixou o Exército em 84. No ano seguinte começa o cavaquismo. Que memória guarda desse tempo? Já era crítico?

Quando Cavaco tem a segunda maioria, eu disse logo: «O país vai para o charco». Ele consegue uma maioria de mais de 50% dos votos à conta de engordar classes profissionais. Entrava na Função Pública quem queria e comprou reformas quem quis. Cavaco Silva é o primeiro responsável pelo lugar em que Portugal está hoje mergulhado.

Mas havia consumo interno. Ganhou muito dinheiro com as lojas de ganga?

Não perdi nenhum e ganhei algum.

Quando percebe que ganhou ‘algum’ decide deixar os negócios?

Já estava cansado e tinha de ir todas as semanas ao Norte fazer compras. Além disso, os meus filhos não tinham interesse naquele negócio. O meu irmão ficou com a fábrica e em 2004 acabei por vender as lojas a um casal da Póvoa de Lanhoso.

Foi importante passar pelo sector privado?

Foi uma experiência muito enriquecedora.Vinha do meio militar, tinha estado a dirigir alguns serviços públicos, como o serviço de apoio ao Conselho da Revolução e o Instituto Damião de Góis, da Assembleia da República. É no sector privado que percebo, de facto, a realidade económica do país.

Percorreu o país por causa da ganga mas deixou um pé na política. Como foi parar à candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintasilgo, em 86?

Foi a própria que me chamou para director da sua campanha. Houve uma divisão muito grande à esquerda nessas eleições. O general Eanes, com quem estive quase sempre de acordo e de quem sou próximo, tentou lançar um delfim político, que era o Salgado Zenha, mas eu achava que não fazia sentido um Presidente não manter neutralidade. Pintasilgo era uma mulher muito capaz e não tinha apoio partidário. Acabou cilindrada e fora da segunda volta.

Ainda passou pelo PRD, de Eanes.

Fiz uma perninha, depois de Eanes ter ido a Presidente [1976-86]. Quando ele faz a chamada convenção do PRD no Porto, chegou ao pé de mim e disse-me: «Oh Castro, agora é chegada a hora de você vir dar uma ajuda». Meteram-me logo na comissão directiva. Mas eu não tinha vida para aquilo.

Ou não se identificava com ‘aquilo’?

Não tinha vida. Fazia a parte comercial dos negócios com o meu irmão e era muito exaustivo. Depois, discordei completamente do apoio do PRD à moção de censura que acabou por derrubar o Governo minoritário de Cavaco e, portanto, afastei-me.

Discordou?

Devo dizer que não tenho qualquer simpatia por Cavaco: é um provinciano e é um homem que não tem nada que ver com o 25 de Abril. Mas considerei que as motivações políticas para derrubar o Governo minoritário não eram suficientemente fortes e não estavam assentes em questões políticas fundamentais. Era preciso deixá-lo governar, mesmo que depois tenha sido muito crítico nos mandatos seguintes.

O PRD de Eanes propunha-se ‘moralizar a vida nacional’. Remete-me para o discurso do PDR de Marinho. Há algum paralelismo?

O paralelismo que admito é que em ambos os períodos percebe-se a necessidade de haver uma força política que ponha em prática um conjunto de práticas virtuosas, seja através das políticas que preconiza, seja pelo exemplo de boa conduta dentro do próprio partido. Além disso, é necessário que surja uma proposta disponível para negociar com qualquer governo, que seja o fiel da balança e que consiga impor algumas práticas de moralização da vida pública portuguesa.

É isso que o aproxima de Marinho e Pinto?

Quando ouvi o discurso de Marinho e Pinto na abertura do ano judicial (2012), pensei para comigo: este homem tem a mesma idiossincrasia de um capitão de Abril que derrubou a ditadura. Quando ele funda o PDR, procurei-o e disse-lhe: «Você é a única pessoa desde o 25 de Abril que eu vi ser directo e firme perante todos os órgãos de soberania». Disse-lhe que podia contar comigo e passado algum tempo ele ligou-me para eu colaborar na feitura do programa do partido, no capítulo da Defesa e das Forças Armadas. Estou plenamente no PDR e pronto para servir.

Um coronel recebe ordens de Marinho?

Nunca obedeci a ninguém. Acho que Marinho e Pinto não me vai dar ordens, mas se as der pode ter a certeza que não as cumpro. Vou aparecer permanentemente associado às minhas ideias. As minhas ideias são, neste momento, as ideias que o PDR defende.

Mas é um partido centrado no seu líder.

É verdade. Mas todos eles são. A questão deve ser outra: o que é que eles defendem? Que propostas têm? Acha que os partidos já instalados em São Bento vão aceitar as propostas do PDR como a revisão das subvenções para os partidos, a revisão da lei eleitoral para que qualquer cidadão se possa candidatar, se não tivermos força política? Não vão.

Já falou com Vasco Lourenço sobre a sua adesão ao PDR?

Ele sabe que estou envolvido no partido. Terá as suas dúvidas. Mas isso já não me diz respeito.

E com os restantes colegas do Movimento das Forças Armadas?

Alguns companheiros do 25 de Abril poderão dar um apoio mais efectivo e outros, como Carlos Clemente, Teófilo Bento, José Manuel Carrilho Leitão e Joaquim Sérgio, vão mesmo integrar a lista de Lisboa.

O PDR recusa o esquema clássico esquerda-direita. Nunca se inscreveria num partido de esquerda?

Sempre tive esperança que o PS fosse, pelo menos, social-democrata. Mas o PS é uma manta de retalhos que leva a cabo políticas sempre muito suicidas e que, por via disso, perdeu inexoravelmente o centro político. Se não considerarmos a parte canónica e o discurso religioso, o Papa Francisco está mais à esquerda do que essa gente toda. Não podemos ter dois milhões de portugueses à beira da pobreza e nem podemos ter crianças a ir com fome para a escola. Um social-democrata e um socialista não podem aceitar uma coisas destas. A minha infância foi difícil: éramos sete irmãos e na aldeia sabia-se o que era a pobreza. Mas hoje não é admissível o que se passa em Portugal.

Nasceu em Celorico de Basto, há 71 anos. O que faziam os seus pais?

A minha mãe era regente escolar, uma profissão que Salazar inventou para substituir as professoras primárias. Recebiam um terço do vencimento que pagavam aos professores, não tinham direito a férias e não descontavam para a Caixa de Previdência. O meu pai era chefe de estação da CP. Pertencíamos à classe dos remediados, a chamada classe média depois do 25 de Abril. Os remediados, como o comerciante, o chefe da estação, o guarda-republicano, lá conseguiam por um filho ou outro a estudar.

Tinha então algum estatuto.

A situação na minha aldeia era de atraso civilizacional. Da minha geração foram estudar apenas o filho do juiz, o filho do médico, mais um outro e eu fui porque o meu pai era chefe da estação e os filhos viajavam nos caminhos-de-ferro à borla e em primeira classe. Viajei todos os dias entre Celorico e Amarante, onde fiz o quinto ano (hoje o nono) e depois de Marco de Canaveses para o Porto, onde fui fazer o que são hoje os 10.º, 11.º e 12.º anos. Aquilo era tão difícil. Nunca sabíamos a que horas chegávamos a casa.

Em casa falava-se contra o Estado Novo?

Abertamente não. Os meus pais eram cumpridores do trabalho, não eram muito politizados, embora no meio ferroviário já se sentisse uma grande animosidade contra o regime. Havia circulação de pessoas, de mercadorias e às vezes de panfletos contra a ditadura. Mas quando começou a guerra em África a coisa mudou de figura. A minha mãe mandou três filhos para o combate. Começaram a vir os mortos e os feridos e aí evoluiu-se para um pensamento mais crítico sobre o que se estava a passar.

O serviço militar era o meio para escapar à pobreza. Ou então emigrava-se. Pensou em emigrar?

Não. Um tio meu que chegou de África comprou-me o enxoval para ir para o seminário – os candidatos a padre tinham de ter um enxoval, tal como os candidatos à Academia Militar. Mais tarde, quando começa a guerra, a Academia deixa de ser uma profissão de salão, de dourados, e passa a ser uma profissão de risco, à qual deixavam de aderir os filhos de famílias abastadas. Em 62, eu pensava entrar na universidade e ter dinheiro para estudar. Mas dinheiro era coisa que não tinha. Cheguei a fazer o exame para a Faculdade de Ciências no Porto. Aquilo dava para várias coisas, como professor de liceu. Mas, como não podia frequentar, o sonho da Academia Militar começa a crescer e esperei um ano para fazer os exames de admissão.

Entre o exame para a Faculdade e a entrada na Academia Militar o que ficou a fazer?

Fui trabalhar para o Porto como funcionário judicial. Tinha 18 anos. Foi aí a minha primeira experiência social fora da escola e foi um choque, um pavor. Era escriturário de segunda classe do 1.º Juízo Cível da Comarca do Porto. Como tinha acabado de chegar puseram-me a fazer o trabalho mais ‘sujo’: penhoras.

Fez muitas?

Sabia que ia estar ali apenas um ano, até concorrer à Academia ou à Escola Naval. Onde entrasse primeiro, ficava. Então, quando via que as pessoas tinham necessidades eu dizia sempre que não havia bens penhoráveis. Foi das primeiras acções efectivas que pude fazer.

Nunca foi apanhado?

Não. Eram penhoras pequenas. Estamos a falar de alguém que devia 10 contos ao merceeiro e que tinha um rádio lá em casa. Eu achava que o rádio fazia falta e não penhorava.

Quanto tempo ficou neste trabalho?

De Janeiro a Outubro. Em 1963. Ganhava 1.100 escudos por mês. Pagava 750 escudos de pensão completa, porque fiquei a viver no Porto. Tinha cama, comida e roupa lavada. O que restava era para as minhas despesas. Um par de sapatos, para ter uma ideia, custava 100 escudos. Depois ainda me davam dinheiro lá do Juízo Cível, que chegava anexado aos processos, consoante a urgência que os advogados tinham em fazer avançar o processo.

Isso é suborno.

(risos) Era o que acontecia. Estou a falar da minha vida, não é? Não lhe posso mentir. Não estou a dizer que fosse subornado. Eles recebiam o dinheiro (uma nota de 100 escudos ou uma de 500, se fosse uma coisa mesmo à séria), colocavam-no numa gaveta e depois distribuíam pelos funcionários. Um puto de 18 anos, a caminho da Academia Militar, lá conseguia estragar aquele esquema?

Antes do 25 de Abril é enviado para Angola e para Moçambique. Ficaram traumas desse período?

Eu acho que não. Superei bem isso.

E questionava a sua missão em África?

Claro que sim. Questiono-me logo a partir de Angola. Em 67 percebi que havia uma desigualdade enorme: não só no que diz respeito às armas mas também no que diz respeito às condições dos nossos homens. Estavam exauridos, cansados, sem força. Por isso, tínhamos a guerrilha à perna. Quando cheguei a Moçambique, em 70, vi que estava tudo igual. Lembro-me de dizer à minha irmã, que estava em Lourenço Marques, hoje Maputo, a trabalhar: «Palmira, arranja maneira de te ires embora porque o exército está prestes a não aguentar isso». Eu previa aquilo para dois anos. Foram quatro.

Já foi para a guerra com aliança no dedo?

Casei em 68. Conheci a minha mulher na Amadora. Eu era cadete. Namorar um cadete da Academia dava algum estatuto. Se bem que ela na altura já tinha mais estatuto do que eu. Em 63 já ia de carro para a universidade. O pai era oficial da Marinha e a mãe tinha um curso de Enfermagem. Era muito conhecida na Amadora porque fez muitos partos em casa. Não havia maternidade.

A sua mulher apoia-o neste regresso à política?

Ela não está muito entusiasmada com a ideia. Nem os meus filhos. Sabe o que eles me disseram quando anunciei que tinha aderido ao partido? «És uma pessoa com prestígio. Não tens nada que andar nos partidos». A Inês é advogada e o Rodrigo, que nasceu no ano em que morreu Francisco Sá Carneiro, formou-se em Informática de Gestão.

É muito activo no Facebook. Essa necessidade de comunicar vem dos tempos em que foi porta-voz do Conselho da Revolução?

(risos) Você é meu amigo no Facebook? Os meus amigos sabem quem são os ‘arrebentas’. É este Governo. É assim que me refiro a eles. O meu último post (sobre Passos Coelho) tem 500 e tal likes e cento e tal comentários. Isso é obra. Rendi-me ao Facebook para dizer mal, para descarregar. A função de porta-voz era outra coisa. Havia as declarações oficiais, depois das reuniões, e os briefings informais, os off the record com os jornalistas. O Marcelo (Rebelo de Sousa) e a Maria João (Avillez) estavam no Expresso. Tinha conversas informais com eles e com outros jornalistas, junto aos Jerónimos. Só havia uma televisão.

As pessoas reconhecem-no na rua?

Sim. Sobretudo as de mais idade.

Lembra-se do que foi fazer depois do 25 de Abril? Nos dias imediatamente a seguir?

Sim. Lembro-me que fiz uma grande viagem por toda a Galiza, em família, para estrear o BMW que a minha sogra me ofereceu depois do 25 de Abril. E lembro-me também que começou uma perseguição a quem tinha bons carros (risos). Por causa disso demiti-me passados dois meses do Conselho da Revolução.

Como é que quer ser recordado?

Como um homem justo. E chega. Não preciso de mais.

Ter feito o 25 de Abril é a sua maior conquista?

Digo-lhe três: tenho dois filhos, escrevi dois livros e plantei uma centena de árvores, pelos vários sítios por onde andei, inclusive ali na Serra de Sintra. Porque quando eu era pequeno, na escola primária, ensinaram-nos que uma pessoa para ser um homem tinha de fazer um filho, plantar uma árvore e escrever um livro.

Plantou uma centena de árvores?

Sim. Por todos os locais onde passei. Esta casa, que foi comprada a meias com a minha sogra a uns ingleses que fugiram depois do 25 de Abril com medo dos comunistas, tinha um court de ténis. Um dia cheguei ao pé do meu filho, que não jogava, e disse-lhe: «O pai vai fazer uma horta». Andei durante dois anos a encher de terra que trazia da serra para colocar em cima da placa de cimento. Depois fiz furos para as árvores terem margem para crescer. Sou o único maoísta consistente: transformei uma campo de ténis numa horta (risos). 

ricardo.rego@sol.pt