O contrário é que seria de estranhar, dado que dormir é a actividade vital que mais tempo ocupa o ser humano: se considerarmos uma esperança média de vida de 85 anos – cerca de cinco anos acima da média nacional, mas pensar positivo costuma ser o melhor efeito placebo –, chegamos à conclusão que passamos mais de 28 anos a dormir. Um terço da nossa vida, portanto.
É normal que todo este tempo possa parecer um desperdício, mas dormir é essencial ao (bom) funcionamento do corpo humano. É durante o sono que realizamos funções vitais à nossa sobrevivência, como a agregação da hormona do crescimento; a segregação do cortisol (quando não se dorme, a quantidade desta hormona é mais elevada pela manhã, o que aumenta o risco de hipertensão arterial). Além disto, o nosso corpo usa as horas de sono para rever os processos imunológicos, ou seja, ‘alinhar as tropas contra as infecções’. Estudos recentes concluem ainda que o sono é essencial no armazenamento da memória e está provado que as variações de humor também têm uma correlação directa com a ausência de sono.
Primeira conclusão: dormir mal, de forma reiterada, pode trazer consequências desastrosas. Mas como saber se sofremos de privação do sono?
Causas, sintomas… e turnos. Teresa Paiva, a médica neurologista que vela há décadas pelo sono dos portugueses, explica: “Quando se dorme, ao fim-de-semana, mais de duas horas do que é habitual (para os adolescentes são três), é porque durante a semana se está a dormir menos do que se precisa”. Alterações de humor, fadiga acima do expectável e falhas de memória são outros indicadores comuns de que algo está errado. “As pessoas têm de perceber que o sono é importantíssimo para o corpo humano. Dormir bem é mais importante do que comer bem”.
As causas que levam à privação de sono são díspares: excesso de exposição à luz artificial, stress, excesso de trabalho, ausência de rotinas, e a lista poderia continuar. No entanto, a neurologista destaca um sintoma que tem observado na maioria dos pacientes: “Ultimamente, mais de 80% das pessoas que me procuram têm falta de vitamina D, o que é quase incompreensível num país tão solar como o nosso”.
Noutros casos, o problema é patológico: as doenças prevalecentes são apneia, insónia e síndrome das pernas inquietas. Teresa Paiva resume ainda outros tipos de doença mais raros, como “a narcolepsia (quando se adormece irresistivelmente) e a cataplexia, que faz com que os doentes fiquem imobilizados quando experienciam sensações fortes, como um ataque de riso”. Mas deixa bem patente que “há pessoas com narcolepsia com altos cargos em Portugal, o que significa que esta doença pode ser controlada”.
Além das patologias, Teresa Paiva mostra-se preocupada com quem trabalha por turnos, uma realidade cada vez mais comum . “As escalas dos turnos estão pessimamente feitas, não respeitam os ritmos biológicos de descanso, por isso a minha sugestão é que os responsáveis se aconselhem com quem sabe e tomem medidas”. Como os trabalhadores não podem, simplesmente, deixar u de comparecer, a médica faz algumas sugestões para minorar os efeitos negativos: “Deve tentar dormir uma sesta reparadora antes de um turno nocturno; quando sai, de manhã, deve usar óculos de sol e preferencialmente não conduzir, dado que o risco de acidentes é mais elevado. Se não tiver alternativa, o melhor é fazer uma chamada telefónica durante o trajecto, para ir acompanhado”.
Dado que os turnos levam ao aumento dos consumos de substâncias aditivas e das taxas de divórcio – além de provocarem problemas sexuais nos homens –, a médica aconselha a “procurarem um plano B para, a longo prazo, conseguirem sair dos turnos”.
‘Contar carneirinhos é uma estupidez’. Se acha que sofre de alguma das patologias acima descritas, o melhor é procurar rapidamente um médico. Há no entanto um conjunto de dicas para ajudar a melhorar a qualidade do sono, assim como há outros ditos que são “totalmente errados. Não se devem beber chazinhos nem leite, pois na maioria das vezes acaba por se acordar a meio da noite para urinar e perde-se o sono. Contar carneirinhos é uma estupidez. Entreter-se com o telemóvel ‘à espera de que o sono venha’ é incorrecto”.
Maria José, 52 anos, empregada de balcão, já esteve mais de quatro meses a dormir duas horas por noite e aconselha por experiência própria: “Não vá para a cama a pensar antecipadamente que não vai dormir, isso só cria ansiedade”. Esta funcionária de uma loja de produtos dietéticos diz que o “produto mais procurado para induzir o sono é a melatonina”, algo que o mais famoso short sleeper do país, o professor Marcelo Rebelo de Sousa, nega: tirou-lhe o sono “dias a fio”.
O que deve – ou não deve – então fazer? Deve ir para a cama com os pés razoavelmente quentes, não deve usar aparelhos electrónicos no quarto, não deve trabalhar até à última, pois não dá ao cérebro tempo de se acalmar. Crie uma rotina de horas para adormecer e acordar, não faça exercício antes de dormir, não leve afazeres para a cama – se o ajudar, aponte-os e elimine assim o risco de esquecimento. E oiça o seu corpo, o que leva à segunda conclusão: perceba que tem limites.
Ronaldo e a quimera das horas. Provavelmente não estava à espera de ler neste contexto o nome do galáctico jogador de futebol, mas a atitude de Cristiano Ronaldo em relação ao sono trá-lo para a história. Para que a arte que faz com os pés se mantenha ao mais alto nível, desde os tempos do Manchester United que o melhor jogador de futebol do mundo aprendeu que (até ele) tem limites – dormir bem é essencial na alta competição. Quem lhe ensinou a lição? Nick Littlehales, sleep coach, ou aportuguesando, treinador do sono.
Este perito britânico em sono, antigo jogador profissional de golfe e ex-responsável de marketing na indústria das camas, especializou-se no repouso dos atletas. Entre algumas das suas responsabilidades, cabe a este homem zelar pelos espaços de descanso dos desportistas (desde a cama à disposição do quarto, passando pelo tipo de ventilação disponível).
Littlehales chegou a viajar com a selecção inglesa no Europeu 2004. Num cuidado sem precedentes e numa altura em que estas questões eram ainda tidas como “supérfluas”, adaptou “o quarto de hotel de cada jogador às suas necessidades específicas para ajudar no processo de recuperação física”, como se pode ler na entrevista que concedeu ao The Guardian. Não deverá ter feito um trabalho tão afincado no quarto de David Beckham – Portugal eliminou a Inglaterra por 6-5 em grandes penalidades nos quartos-de-final, e foi o menino bonito o único jogador inglês a atirar por cima da barra.
Resultados à parte, tanto o especialista como Teresa Paiva reconhecem que “não há um número mágico de horas para dormir”. Littlehales considera que ninguém atinge realmente o número ideal de horas, a neurologista desdramatiza e diz que o importante é “ter boas rotinas”, mas quando não se consegue dormir pontualmente “também não se deve entrar em paranóia”.
Para o perito inglês, a problemática do número correcto de horas de sono também se prende com a genética. Dormir pode ser uma actividade quase mecânica – mas ao mesmo tempo é tão íntimo que difere de pessoa para pessoa quase como se de ADN se tratasse.
Muitos são os nomes conhecidos que têm ou tiveram necessidades biológicas que o podem espantar. Por exemplo, Albert Einstein era um long sleeper, precisando de dormir dez horas por noite. E Madonna, tal como o professor Marcelo, contenta-se com cerca de quatro horas de sono. A lista poderia continuar, mas estes exemplos são suficientes para a terceira conclusão: não copie os hábitos de sono de ninguém. Se acha que consegue ‘treinar-se para dormir menos ou mais’ provavelmente só ganhará uma má auto-estima, dias pouco produtivos e menos vontade de aproveitar a vida.
Resolva os seus problemas. Maria José sabe porque não dormiu durante tanto tempo seguido: ultrapassava um segundo divórcio, desta feita turbulento. Recebeu acompanhamento adequado, mas diz que só conseguiu voltar a dormir quando os problemas pessoais começaram a dissipar-se. “Fiz ioga, tomei comprimidos e produtos naturais, fui seguida por psiquiatras. Falei com a minha família, que me ajudou muito. Mas a única coisa que fez com que voltasse a dormir foi quando a minha vida estabilizou”.
Por isso, Teresa Paiva também não retira algum misticismo da equação para o sono perfeito. “Para mim, dormir não é uma arte – é uma bênção”.
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