Nasceu no ano de Há Festa na Aldeia (1947), quando o seu tio tinha 40 anos. Passava tempo com ele?
Lembro-me de ter seis anos e vê-lo no Natal e no Verão. Ele era um homem alto, forte, elegante, um gentleman à inglesa, dizia poucas palavras de cada vez, ficava a ouvir a um canto para depois soltar uma piada ou fazer um truque com o chapéu. Conheci-o verdadeiramente em 1979 quando fiz alguns dos meus primeiros espectáculos. Ele veio ver La Famille Deschiens e aconselhou-me em Les Oubliettes. Perguntava sempre se podíamos pôr mais uma palavra ou mais música ou se, pelo contrário, menos seria mais.
Guarda alguma memória em particular?
Eu não estava lá. Ele estava com a sua filha, Sophie Tatischeff, e com a mulher, Micheline, e elas perceberam que ele ia morrer quando ele disse: ‘Sinto que há uma história de amor entre o grande homem negro que limpa o meu quarto e a enfermeira que toma conta de mim’. Foram as suas últimas palavras, trabalhou até ao fim.
Quando se pensa numa genealogia do cinema francês, Tati é um nome à margem, difícil de empacotar.
Fez um cinema original e como que desajustado do seu tempo, ao jeito de Bresson. Era sobretudo um visionário. Captou um homem num mundo que se estava a tornar noutro, aquilo a que hoje chamamos globalização. Ele não odiava o progresso, sabia como mostrar a beleza, por exemplo, de um aeroporto, como vemos em Playtime – Vida Moderna ou O Meu Tio. Era um solitário também na personalidade, que não era fácil: íntegro, autoritário, perfeccionista. Hoje em dia chamamos tatillons às pessoas preocupadas com detalhes.
Onde acaba Tati e começa o sr. Hulot, a figura ingénua de calças acima dos tornozelos a que deu corpo nos seus filmes?
Talvez haja qualquer coisa de sr. Hulot no Tati jovem, quando não era casado nem tinha emprego, mas sobretudo, como a personagem, Tati foi uma criança a vida toda. Adorava Buster Keaton e um homem chamado W. C. Fields de quem muita gente se esqueceu hoje, mas que era aquilo a que o meu tio chamava ‘cómico natural’: simples, igual a toda a gente, sem se parecer com um palhaço.
Muita gente não compreendeu Playtime porque era difícil encontrar, nas suas paisagens colectivas, o sr. Hulot.
Sim, era como se Tati dissesse ao espectador ‘tu estás no Playtime’, toda a gente estava lá dentro. Mas o problema do filme foi que foi muito caro, levou três anos a rodar. De alguma forma é o seu último filme porque foi o último em que esteve ao comando de tudo.
Foi a primeira obra a ser restaurada pela fundação Les Films de Mon Oncle, tendo essa versão estreado em 2002 em Cannes.
Foi muito engraçado, enfiámo-nos num carrinho muito velho, um Renault 4, na companhia de alguns cães para que, quando abrissem a porta, eles fossem os primeiros a subir a passadeira vermelha. Ao mesmo tempo foi triste que a Sophie Tatischeff, também na origem da fundação, tenha morrido antes dessa data.
De que outras formas fazem circular a sua obra?
Vai sair um grande livro pela Taschen. Há muitos jovens inspirados em Tati hoje em dia e ele tinha uma grande sede de transmissão, por isso são importantes projectos como o documentário Tati Express, a ser co-produzido por nós e que olha para a obra dele em paralelo com elementos da sua época como os salons de arts ménagers [salões comerciais onde eram apresentadas as últimas novidades do mercado], a publicidade da época… Depois, é preciso preocuparmo-nos com a preservação dos elementos fotoquímicos em película, que envelhecem com o tempo mas são a base para qualquer restauro ainda melhor que queiramos fazer daqui a uns anos.
O que gostaria que os espectadores de hoje levassem do seu tio?
Aquilo que ele queria: que observem o mundo com humor. Como ele tinha hábito de fazer no terraço de um café.