Miguel Gomes. ‘Alguém roubar 40 vacas diz algo sobre o estado a que chegámos’

As Mil e Uma Noites, trilogia aplaudida de pé em Cannes, vê o seu primeiro volume estrear-se hoje. Confusão de tempos: o Portugal dos desempregados contado pela princesa Xerazade ao pai Shariar, e contado pelo realizador Miguel Gomes à filha Carolina. À conversa com o cinéfilo que detestava matemática, que andou à tareia por causa…

Como lhe surgiu a ideia de entre os verões de 2013 e 2014 colocar jornalistas a escrever notícias sobre o país como pesquisa de um filme a ser rodado ao mesmo tempo?

De uma vontade de mergulhar no real e trazer para dentro do filme o Portugal dos desempregados, pessoas e situações que estavam a acontecer na actualidade do país naquele momento. Essa investigação os jornalistas fariam melhor do que qualquer um de nós. Mas sem que prescindíssemos de um mundo paralelo, o dos génios do vento, do galo que fala, enfim, aquele que existe apenas nas nossas cabeças e que um filme enquanto prolongamento da realidade pode oferecer. O cinema de que gosto, mesmo que de ficção científica, transporta verdade no artifício.

Os próprios apoios do Instituto do Cinema e do Audiovisual não prevêem bem projectos desta natureza.

Não tinha a certeza de nos safarmos, mas fiquei contente por recebermos carta branca não só da parte do ICA como de outros institutos de cinema, televisões europeias e fundos comunitários para apoio à produção. Este filme é uma co-produção com a França, Alemanha e Suíça. O Tabu deu-me visibilidade e fez com que agora tivesse um orçamento quase equivalente a todas as longas-metragens que filmei antes: eram três [A Cara que Mereces, Aquele Querido Mês de Agosto, Tabu], acrescentei-lhes o dobro de uma só vez. Foi isso que permitiu rodar durante um ano, ter actores disponíveis para serem chamados a qualquer hora, contratar três jornalistas sem eles estarem preocupados sobre se iam ser pagos ao final do mês, como infelizmente acontece hoje em dia nos jornais.

Fizeram, então, uma simulação do argumento?

Sim, durante três meses eu e os argumentistas, ainda sem os jornalistas, líamos todas as manhãs os jornais e apresentámos um dossiê com 150 recortes de imprensa que dariam histórias para a Xerazade contar ao rei. Apresentámos um argumento fabricado a partir daquelas notícias e ainda uma terceira secção que explicava o método que durante um ano nos levaria ao filme. Dissemos que não iríamos filmar uma única página daquele argumento.

Pode dizer-se que a natureza interventiva do projecto começa logo na escolha desses jornalistas? Falo de Maria José Oliveira, que se despediu do Público na sequência da controvérsia com Miguel Relvas.

Felizmente contratei a Maria José e não o Miguel Relvas, acho que fiz a boa opção. Ela teve esse episódio e eu sabia que ela estava desempregada. Quando lhe liguei, lembro-me que primeiro ficou muito desconfiada, pareceu-lhe que a esmola era grande e era uma coisa insólita – afinal os jornalistas andam sem trabalho e não costumam fazer parte da equipa de um filme. Conhecia-a quando fui crítico de cinema no Público entre o final dos anos 90 e 2000 e além de uma excelente jornalista pareceu-me alguém com quem eu poderia discutir o filme de forma cúmplice, tendo capacidade para coordenar uma equipa, pequenina, de mais dois jornalistas escolhidos por ela.

Até o modus operandi do filme parece fruto do seu tempo.

Está umbilicalmente ligado a este momento da História do país. Quando tinha cinco anos, a minha filha, hoje com nove, pediu-me para lhe comprar uma coisa qualquer. Disse-lhe que não tinha dinheiro e ela perguntou-me se era por causa da crise. Com a idade dela eu não conhecia essa palavra. A Carolina está a passar por esta fase sem perceber a sua complexidade e eu achei que podia passar-lhe, em diferido, se lhe apetecer ver o filme daqui a dez anos, como era o país nesta altura. Imagino que aí Portugal e a Europa possam já ser muito diferentes e há algumas razões para estarmos pessimistas.

A Cahiers du Cinéma, que dedicou a capa da edição de Junho ao As Mil e Uma Noites, referia-se ao filme como um “jornal de uma revolução que ainda não aconteceu”.

Se por um lado o filme não é neutro politicamente – assumo-o logo ao início de cada volume, com um texto que diz que durante este período em Portugal existia um governo aparentemente desprovido de um sentido de justiça social – ao mesmo tempo não acho que o cinema deva servir para condenar pessoas como um tribunal. Mesmo naquele episódio mais feroz e sarcástico dos membros da Troika ‘de pau feito’; mesmo aí aquele Primeiro Ministro tonto e absolutamente irresponsável tem um lado infantil: desenha unicórnios na mesa do restaurante, faz inscrições com um canivete nas árvores, comporta-se como um miúdo de dez anos, o que lhe dá uma faceta enternecedora. Não estou a falar do Passos Coelho, mas de uma personagem. Jean Renoir dizia: “Todas as personagens têm as suas razões”.

A produtora O Som e a Fúria anunciou o filme como um acontecimento antes das eleições. O cinema terá essa capacidade imediata de mudar qualquer coisa ou terá antes o papel de pensar essa mudança num movimento que é mais lento?

O cinema, em Portugal sobretudo, não tem esse poder mobilizador, ao contrário da televisão ou da internet que entram pela casa das pessoas adentro. O cinema exige uma atitude activa da parte de um espectador: é preciso ele sair de casa, comprar um bilhete, entrar numa sala; dá algum trabalho. E nesse sentido o filme não vai chegar a gente suficiente para influenciar as eleições. Se o Luís Urbano, o produtor, pensasse que isso seria assim estaria a ser naïf (o que para mim, muitas vezes, é uma qualidade). No dia em que apanhei o avião para Cannes – estava em Paris, nessa altura – ainda estava a acabar o filme! O primeiro volume, O Inquieto, começou por ser distribuído em Junho em França e faz todo o sentido em termos de calendário que em Portugal estreie na rentrée e numa altura em que estarão a ser discutidas campanhas eleitorais e as pessoas vão estar centradas no balanço sobre o que foi o país nestes últimos anos.

Não é todos os dias que um produtor leva à frente um filme de seis horas.

Temos um acordo de que não tenho nada a ver com estratégias de lançamento do filme, e ele por sua vez tenta não me chatear muito a cabeça. Não me diz “deves filmar com esta actriz” ou “não gosto desta história, filma outra coisa”. Existe este respeito e confiança para que cada um faça aquilo que sabe fazer.

A provocação também pode ser um gesto político?

É dos melhores gestos políticos. Embora o livro d’As Mil e Uma Noites seja muito mais rock n’roll e ao lado dele o meu filme seja para meninos, trouxe desses contos orientais de há séculos esse lado desbragado de ridicularizar o poder e a sua zona invisível: o sexo. Tirando o caso de Strauss-Kahn, ninguém fala sobre o sexo dos reis nem dos Presidentes da República. Quebrar esse tabu é possível dentro deste quadro de cultura popular que, às vezes de uma forma carnavalesca, é essa a ideia, se ‘vinga’ dos poderosos aos quais está submetido durante a vida toda. Além disso, as histórias que apareciam nos jornais encaixavam naquele imaginário porque eram cada vez mais surrealistas. Havia crimes que me pareciam absurdos e que antes da crise não tinham lugar, não existiam. Há um segmento do filme, chamado ‘As Lágrimas da Juíza’, inspirado numa série de crimes verídicos como o roubo de um sistema de rega de um estádio de futebol no interior do país. Outro exemplo é o roubo de gado, que não é propriamente uma actividade discreta. Termos chegado a este estado de as pessoas se arriscarem a roubar 40 vacas como se estivessem no faroeste diz alguma coisa sobre a actual sociedade portuguesa.

O lado interventivo na génese do projecto, o sentido provocatório, o imaginário popular, a aproximação ao que será um génio do povo, parece que estamos a falar de Pasolini. Ele que por acaso também realizou o seu As Mil e Uma Noites.

E que eu nunca tinha visto até à véspera das rodagens! Vi-o com os meus argumentistas, nenhum de nós o tinha visto. O Pasolini é alguém pelo qual tenho respeito e que teve um percurso muito singular, mas sinto-me muito afastado dele excepto na questão da cultura popular. E ele talvez vá mais longe nela ao chamar os seus próprios protagonistas, ou seja, pessoas do povo para fazerem de actores. Isso acontece também nos meus filmes, mas não sempre. Ele fazia-o como um projecto político, de fazer grandes filmes populares mas com o povo e com o proletariado, e tenho a impressão de que ficou desiludido com a falta desse sucesso junto das massas. Talvez esteja a fazer uma psicanálise barata, mas para acabar no Salò ou os 120 Dias de Sodoma, que é um filme de uma violência e negrume extremos, acho que é preciso haver uma grande desilusão.

Tem medo dessa desilusão?

O Tabu foi vendido para vários países mas eu acho que teria o mesmo tipo de relação com o filme caso ele tivesse tido menos visibilidade. É claro que é melhor ter mais espectadores, mas a minha relação com o meu trabalho não passa pela caução de terceiros, nem da crítica nem da bilheteira. Tenho a obrigação de ter uma relação individual com o meu trabalho.

O que o fez querer ser realizador?

Começa sempre por ser-se espectador. Não me lembro do primeiro filme que vi, mas lembro-me de um episódio caricato de quando tinha oito anos e estava numa colónia de férias. Andei à tareia na sala a ver o Dumbo, do Walt Disney. Eu estava muito comovido e solidário com o elefante e havia uns rapazes que estavam a gozar com o filme, achavam-no uma coisa piegas, para citar o nosso Primeiro. Eu insultei-os, comprei uma guerra, eles saíram da fila deles e foram para a minha. Nessa altura não sabia que o Walt Disney era suficientemente poderoso para não precisar da minha ajuda.

É verdade que no liceu estava na área de Economia?

Não percebo sequer porque me deu uma ideia tão estúpida, ainda por cima estava sempre a ter notas negativas a matemática. Isso ainda me deu mais vontade de fazer qualquer coisa de que gostava muito e que era ver filmes e pensar como seria fazê-los. No final do liceu decidi inscrever-me na Escola de Cinema [do antigo Conservatório Nacional] e a partir daí as coisas foram acontecendo.

Essa cinefilia tem um pano de fundo familiar?

Nos anos 80, quando era criança, ia todas as semanas com a minha avó ao cinema. Mas não existe qualquer relação profissional da minha família com a sétima arte.

Como foram os tempos no Conservatório?

Tirei o curso entre 92 e 95. Recordo-me com algum carinho das aulas com o Paulo Rocha. Eram muito delirantes, um pouco como os filmes dele. Ele podia começar a falar de um assunto qualquer e depois derivava para outros universos de uma forma quase onírica. Tirando isso aquela experiência foi um bocado frustrante. Talvez por culpa minha, nunca fui muito bom no papel de aluno. Na altura a Escola de Cinema não era na Amadora, ficava no Bairro Alto, e eu gostava muito mais de estar fora do edifício. É uma forma de dizer que baldava-me muito. Sentia que os professores eles próprios não acreditavam muito naquilo, pareciam desconfiar daquela função de transmitir a actividade de fazer filmes. 

A verdade é que a maior parte do cinema português passou por ali.

Sim, quando cheguei, tinha acabado de morrer um professor que, segundo relatos de vários alunos, teve uma influência muito grande. O Pedro Costa ou o Manuel Mozos estão sempre a referir-se a ele: António Reis. Entrei no primeiro ano em que ele não deu aulas. Daquela geração do Cinema Novo tive uma relação com alguém que não apanhei como professor, mas também lá dava umas aulas. Foi um amigo e primeiro que tudo um vizinho, estava com ele quase todas as semanas durante alguns anos, já depois do período da escola. Foi o Fernando Lopes. Foram o Fernando e o Paulo Rocha que deram o pontapé de saída para esta coisa que tem durado este tempo todo – e já passaram mais de 50 anos desde que eles fizeram os seus primeiros filmes. O Fernando fez o Belarmino e o Paulo Rocha Os Verdes Anos, dois filmes que acho muito importantes na história do cinema português. O Fernando Lopes falava-me muito dos seus projectos, lembro-me de estar com ele na altura em que ele filmou O Delfim, estava eu a fazer curtas-metragens. Impressionavam-me os dois pela generosidade e paixão com que falavam de filmes.

Que imagem guarda dessa amizade com o Fernando Lopes?

Uma vez o Fernando estava a falar de como tinha jogado nos iniciados do Estoril. O Alberto Seixas Santos, muito admirado, vira-se para ele e para mim e diz: ‘Mas ó Fernando, estás maluco? Quem jogou nos iniciados do Estoril fui eu e não tu’. O Fernando era um bocado mitómano, como o Paulo Rocha, e se calhar isso é qualquer coisa que, de maneiras diferentes, os realizadores partilham. Apropriam-se do real e acreditam mesmo em coisas que não se passaram, reconstroem o mundo a partir dos seus desejos. Se virmos bem, o Belarmino, no filme, vai sempre dando a sua versão sobre as coisas que lhe aconteceram e sente-se que ele não está bem a dizer a verdade – era um desdobramento do Fernando.

Imagino que no sentido de risco e na liberdade de citar deva algo ao César Monteiro.

Recordações da Casa Amarela é um dos meus filmes favoritos. “Vai e dá-lhes trabalho” é uma das frases, último diálogo se bem me lembro, dita pela personagem do Luís Miguel Cintra ao César Monteiro. Esta ideia de alguém que pode ser incómodo e partir a loiça. As Mil e Uma Noites comunga isso; não são tempos para ser diplomático. Mas por outro lado, interessa-me no cinema do João César esse lado de reiventar o mundo sem o excluir. Ele inventou uma mitologia à volta de viver em Portugal. Identificarmo-nos com a Lisboa que ele mostra, e sentirmos o trabalho de um olhar que transforma esse mundo em qualquer outra coisa – é talvez isso que mais me interessa no cinema.

O ano passado estreou-se em Cannes um filme de Bruno Dumont, O Pequeno Quinquin, que tinha um humor muito particular, absurdo ao mesmo tempo que místico, que também caía sobre uma comunidade real.

Gosto muito do filme, é talvez aquele que nos últimos tempos, diria até anos, mais me interessou. Conheço a região em que foi rodado porque dei aulas no norte de França, numa escola chamada Le Fresnoy, a norte de Lille. O realizador é de lá e aquele humor, mesmo que se lhe encontrem traços de Tati e Peter Sellers, vem mesmo do que se passa em Boulonnais. Ele estabelece uma relação com o mundo real através de códigos narrativos por exemplo de policiais, mas no fundo aquilo é um retrato das pessoas de uma região. O humor é um filtro que em momentos mais dramáticos faz com que o espectador não seja chantageado emocionalmente. Ou seja, se estamos a falar de uma situação complicada, o humor protege o espectador. Não lhe renega nada da realidade, mas não lha atira à cara.

Quando não pensa em cinema faz o quê?

Os filmes que faço não resultam de um processo muito racional em que existe um determinado assunto e depois vou escrever um guião. A maior parte das vezes vou vivendo como as pessoas vão vivendo, com a família, amigos, visitando lugares, ouvindo música, vendo filmes também, e tudo isso vai alimentando o meu trabalho. Não há uma distinção entre a vida e a fabricação do filme, às vezes sai tudo misturado.

A banda-sonora é um elemento muito forte nos seus filmes.

Acho que se pudesse ter sido músico não fazia cinema. A capacidade de uma canção ser vivida de uma forma muito sensorial, a partir de notas abstractas, das letras… Essa poesia pode ser tão avassaladora de uma forma que é muito difícil um filme igualar. Em três minutos uma canção pode tocar-nos e sentirmos que aquilo é tão certeiro. A altura em que ouço mais música é durante as filmagens, mas reparo que durante o mesmo período ou na preparação dele não gosto muito de ver filmes.

Falamos de melodia e é evidente, pelo que escreveu no diário de rodagem e por terminar As Mil e Uma Noites com eles, que ficou fascinado por estes homens que fazem concursos de cantares de tentilhões. Escreveu que é a coisa mais impressionante que filmou na vida.

Era só apontar a câmara e eles davam-me os dois mundos ao mesmo tempo: o do proletariado com vida difícil em bairros de má reputação como a Musgueira e as suas transformações desde o 25 de abril na zona de Lisboa, ao mesmo tempo que eram homens de que quase ninguém sabe da existência, que têm CD de cantos de pássaros em casa e vivem num universo paralelo.

Levou um deles, Chico Chapas, a Cannes. É verdade que foi uma espécie de vedeta?

Disse-me agora a Maria José, que passou de jornalista a assessora de imprensa e a traidora da classe, que o [jornal] Le Monde vem entrevistar o Chico Chapas. Os jornalistas franceses sentiram-se imediatamente atraídos por ele. Um site americano colocou-o numa lista de melhores actores secundários. O Chico, que não é actor, faz dele próprio no terceiro volume e de Simão Sem Tripas no segundo volume. Ele tem um carisma que eu tentei que ficasse no filme. Vê-lo, por exemplo, a andar na parte dos tentilhões, levou-me a crer que ele seria óptimo para um equivalente ficcional do Manuel Palito, alguém que conseguiria, com a elegância dele, percorrer o espaço como se pertencesse de facto àquele território. A maneira como caminha sobre as silvas, parece que está lá a própria experiência de vida dele.

Disse que ser ingénuo é uma qualidade. Os passarinheiros têm-na?

Recebi duas reacções, quase opostas, a este episódio: uns acham que estas pessoas que descobrimos na Associação Esportiva e Recreativa Onze Unidos [nas fotografias], no Beato, em Lisboa, deviam estar mais empenhadas em melhorar as suas condições de vida em vez de se dedicarem a algo que nada contribui para isso. Outros vêem na actividade deles um mundo poético, ficam ‘encantadas’, como diz o título desse volume, pela beleza daqueles homens calados, que se empenharam naquelas construções muito pobres para os concursos. Para mim os seus rituais dizem-me que eles vivem num mundo alternativo. E isso é sempre um acto de resistência. Tem qualquer coisa de revolucionário.

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