O toque de telemóvel vem da fila. Atrás do balcão, António sabe como vai começar aquela conversa: «Tou?! Agora estou no BES…».
«É sempre assim, para os clientes continuamos a ser o Banco Espírito Santo», desabafa. E é simples perceber o porquê. O banco até pode ser novo, mas o dia-a-dia do Novo Banco vive e continuará a viver sob a sombra de um passado que só agora foi descoberto.
«Tem havido uma grande preocupação em que a marca BES desapareça dos balcões para que os clientes percebam que vieram ao Novo Banco», explica António, de 45 anos, que desde cedo começou a trabalhar em agências do BES na região Norte.
O marketing, porém, nem muda os costumes nem canaliza o ódio dos clientes para outros locais.
As ameaças por parte dos lesados têm sido cada vez mais recorrentes nas instalações do ‘banco bom’ e os ânimos parecem não querer acalmar. O medo que se sente nas agências, de Norte a Sul, é uma rotina para quem dá a cara pela instituição. Vários funcionários têm solicitado baixa médica e as consultas psiquiátricas dispararam. «Uma bola de neve», explica António. «Há clientes a ameaçar-nos, dizem que se não resolvermos o seu problema incendeiam o balcão ou vêm até aqui com uma pistola para fazerem justiça pelas próprias mãos».
Um funcionário do Novo Banco, membro da comissão de trabalhadores e que preferiu não se identificar, revela que há clientes que ameaçam mesmo voltar mais tarde com «uma pistola ou uma faca».
‘Vou à escola do teu filho e ajusto contas com ele’
João tem 60 anos, 37 deles dedicados ao banco, e também teme pela segurança. Trabalhou até há poucos meses numa agência do Porto, onde as ameaças têm tido outras proporções. «Um colega ligou-me há dias a contar que o ameaçaram de morte. Não tem sido nada fácil para quem ficou», desabafa ao SOL.
Rui Riso, do Sindicato dos Bancários Sul e Ilhas, lembra que em alguns casos as armas chegaram mesmo a entrar nas dependências e que já houve até necessidade de deslocar funcionários para prevenir que sejam agredidos. Nos meios pequenos, as ameaças, lembra Riso, estendem-se às famílias: «Chegam a dizer coisas como ‘vou à escola do teu filho e ajusto contas com ele’».
‘Confiei na instituição quando incentivei os clientes’
Para a maioria dos clientes lesados, os principais culpados da sua situação são os funcionários que ficaram no ‘banco bom’. Dizem que foram estes que os incentivaram a comprar acções do Grupo Espírito Santo (GES), numa altura em que o banco estava prestes a falir.
António até entende a reacção dos que se sentem enganados: «Tenho clientes que me dizem: ‘Estou aí nesse balcão por sua causa. Se não fosse você, eu não estava nesta situação’».
Mas a cadeias de culpa e o sentimento de injustiça não se esgotam na relação dos clientes com os bancários. Estes também se sentem traídos pelos seus superiores. «Confiei na instituição quando incentivei os clientes a investir. Vesti muitos anos a camisola da empresa e acabei por ser enganado», continua o mesmo funcionário.
António diz mesmo que só se apercebeu da dimensão de tudo quando a bomba explodiu, a 3 de Agosto de 2014, quando o Banco de Portugal anunciou a resolução que dividiu o BES em ‘banco bom’ e ‘banco mau’.
Enfrentar emigrantes de ânimos exaltados
Rapidamente, o escândalo que deixou o país preso às notícias saltou as fronteiras. Os emigrantes em França, na Suíça, no Luxemburgo e noutros países começaram a juntar-se aos movimentos de lesados do BES que iam surgindo. Hoje são dois – O Movimento dos Emigrantes Lesados e a Associação dos Indignados e Enganados do Papel Comercial – e representam perto de 10 mil lesados. Criaram acções de protesto no Facebook para mover mundos e fundos.
Mundos ainda movem – nas manifestações de rua, de cartazes ao peito e altifalantes em que gritando palavras de ordem. A questão dos fundos é que já é mais delicada. No caso dos emigrantes, são cerca de sete mil e reclamam perto de 700 milhões de euros. Já os lesados do papel comercial do GES são 2.500 e investiram 500 milhões de euros.
Os funcionários entendem as manifestações, mas questionam os objectivos de algumas. «Há movimentos que fazem crer que são muitos mais do que aquilo que realmente são. Há muita coisa estranha nas manifestações», refere Luísa, que com 37 anos trabalha há mais de 15 em balcões do BES em Lisboa.
Uma posição que é partilhada por António, que se manifesta contra a forma como têm sido geridos estes movimentos: «Não ganham nada com isto, só se exaltam e se prejudicam mais. As pessoas têm direito a manifestarem-se, mas com limites».
Ainda não se sabe que rumo vai tomar o Novo Banco, quem o vai comprar ou sequer se o nome vai manter-se. Até agora, tudo parece correr de feição à empresa chinesa Anbang, uma vez que foi a escolhida para uma primeira fase de negociações – os 4 mil milhões que ofereceram foi a oferta mais elevada entre os vários concorrentes. Os funcionários dizem ao SOL só ter conhecimento do que se tem passado através da comunicação social, mas aprovam a opção: «Provavelmente para nós essa será a melhor solução, ainda que possa trazer alguns problemas à imagem da instituição. Tudo vai da percepção que o público tem dos produtos made in China», refere António em tom de brincadeira.
Funcionários e lesados
Há lesados atrás dos balcões. Segundo o SOL apurou são muitos os casos de funcionários que também investiram nos produtos de holdings do GES. «Há muitos clientes que chegam à agência e me acusam de saber da situação do BES. Quando isso acontece, só preciso de dar o meu exemplo: eu também investi em acções. E não sou caso único, tenho colegas que investiram dezenas de milhar de euros, um deles chegou aos 100 mil», frisa António, acrescentando que, além do dinheiro, o BES roubou-lhe a confiança.
Segundo relatam os funcionários – que aceitaram falar com o SOL sob a condição de manterem o anonimato -, quando os gestores de conta incentivaram os clientes, estavam confiantes de que ainda havia uma solução para o grupo. «O grande erro foram as mensagens do Banco de Portugal (BdP) e do Presidente da República, pouco tempo antes de o banco falir, que tranquilizaram todos e acabaram por incentivar grandes investimentos. Tanto o BdP como o Presidente da República afirmaram que o BES era uma coisa e o GES outra, completamente diferente», recorda João.
Casos de depressão
Gerir os problemas que agora surgem aos balcões do Novo Banco tem levado a que alguns funcionários tenham entrado em depressão. A instituição bancária disponibilizou, desde que foi criada, apoio psicológico e jurídico e o Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas também. No que diz respeito ao Novo Banco, um membro da comissão de trabalhadores esclarece que «não têm sido muitos os que recorrem a estes serviços». Por outro lado, fonte do sindicato esclareceu ao SOL haver um aumento dos pedidos de ajuda por parte dos funcionários e até dos seus familiares.
«Acredito que só mesmo no topo se soubesse da verdadeira situação. Mas na administração de certeza que havia uns quantos a saber, não podia ser só Ricardo Salgado. Ou muito me engano ou ainda há podres da instituição que o BdP não descobriu», atira António.
Quando há um ano o regulador tentou separar o trigo do joio e nasceu o Novo Banco, houve quem tivesse de continuar a trabalhar na parte ‘tóxica’ da instituição, o BES. Aqui, em instalações mais discretas, ninguém é interrompido por manifestações ou protestos. «As pessoas deviam manifestar-se lá! Já foram emitidos vários comunicados a chamar a atenção para isso, para que vão para a porta do ‘banco mau’, em Lisboa, e não para os balcões do Novo Banco. Lá ou à porta do Ricardo Salgado».
Contactado pelo SOL, o Novo Banco remeteu todos os esclarecimentos para o comunicado de 18 de Junho. No documento pode ler-se que o banco repudia as acções «fora da lei» levadas a cabo pelos lesados, como os insultos e as agressões físicas. Reiteram que os colaboradores «contam com o apoio do Conselho de Administração, que os defenderá sempre que necessário».
Fazer o melhor que se pode
Os funcionários que ficaram nas instalações do actual BES não são vistos como traidores, mas que «há um banco bom e um mau e que eles estão no mau disso não tenho dúvidas», defende Luísa, acrescentando: «Se se acabasse com o ‘banco mau’ o que seria dos clientes? Quem ficava com a responsabilidade legal de restituir o dinheiro aos lesados do papel comercial do GES? O Novo Banco não pode ser».
Até agora, porém, só existe solução para o caso dos emigrantes e veio do ‘banco bom’. Segundo o Banco de Portugal, o Novo Banco pôde propor uma solução dado os não residentes terem investido em dívida sénior do BES, que transitou para o Novo Banco. Uma situação diferente da de quem investiu em papel comercial da Rio Forte ou da Espírito Santo International (neste caso, a responsabilidade é do banco mau).
O Novo Banco apresentou aos emigrantes a hipótese de reaverem parte do dinheiro perdido. Em causa está a recuperação de 60% dos montantes investidos, numa fase inicial, e outros 30% nos seis anos seguintes. «A solução não é óptima, mas é a melhor que temos», desabafa um dos funcionários. Até dia 31 de Agosto, segundo fonte oficial da instituição, já 3.500 emigrantes lesados – num total de sete mil – tinham aceitado a proposta.
‘Vamos continuar sob a lupa de toda a gente’
É dos escombros que o Novo Banco está a tentar reerguer-se. Na banca, a desconfiança é geral e existe agora uma maior preocupação por parte da população em ler os documentos e em controlar todas as entrelinhas. «Nós estamos e vamos continuar sob a lupa de toda a gente», defendem.
Num processo tão complexo e com tantas versões, há uma coisa em que todos estão de acordo: a dissolução do BES é um caso de estudo único, sobretudo na Europa. E os holofotes continuarão todos voltados para o banco. Por quanto tempo é que ninguém arrisca fazer uma previsão.
*com I.M.