2. Nem iremos tecer muitos comentários sobre a natureza e as virtualidades da Universidade de Verão da JSD – os socialistas não conseguem perceber o que é uma iniciativa política que, pese embora, organizada por uma estrutura político-partidária, se pauta pelo pluralismo, pela qualidade dos intervenientes e dos conteúdos aí debatidos. E com provas e tarefas de elevada exigência intelectual. No lado socialista, prefere-se uma imitação de baixa qualidade, num parque de campismo, em que a cartilha de António Costa seja repetida, repetida e mais uma vez repetida. A Universidade de Verão da JSD é uma verdadeira e profícua iniciativa de formação política; o acampamento do PS é pura propaganda. Está ao nível da “Festa da Democracia” – uma festa do socialismo pride à António Costa – que este PS realizou em Abril ou Maio. Não há ninguém que diga o contrário: nem mesmo os mais responsáveis e sensatos militantes do Partido Socialista conseguem refutar esta realidade evidente. E nós, portugueses, sabemos muito bem como o Partido Socialista consegue refutar, com larga criatividade, realidades evidentes. Inventar é uma especialidade de António Costa.
3. Ora, apenas numa visita ao Facebook de vários dirigentes socialistas, ficámos perplexos: o nível do discurso atingiu mínimos históricos de decência política. Renato Sampaio, essa figura de proa do socratismo e coleccionador nato de exemplares da tese de mestrado de Sócrates sobre a tortura, aproveitou para apelidar Paulo Rangel de proto-fascista e falta de vergonha. João Galamba, essa figura do socratismo agora convertido à ortodoxia costista, mantendo a sua tradição de franco atirador do PS para todas as ocasiões, lá veio dizer que Paulo Rangel deu razão à defesa de José Sócrates, dizendo sentir-se indignado. O PS até exige um pedido de desculpas a Paulo Rangel. Já nem nos referimos a Francisco de Assis: este e Paulo Rangel têm uma querela pessoal, fazendo Assis uma marcação cerrada permanente ao seu contendor nas últimas europeias. Aliás, Francisco de Assis só revela prontidão e sentido de oportunidade política quando se trata de atacar Paulo Rangel. Enfim, o que dizer sobre isto tudo?
4. Em primeiro lugar, refira-se que Paulo Rangel não tem nada que pedir desculpas. Pelo contrário: quem diz a verdade, e tem coragem para o fazer, merece é um largo elogio. Paulo Rangel, com o seu discurso de coerência e argúcia intelectual sobre o poder judicial, tem contribuído para o aprofundamento da nossa reflexão colectiva (como Nação) sobre o poder judicial e o seu enquadramento jurídico-político na sociedade. Em Portugal, vigora um pensamento dominante entre a elite política, segundo o qual os tribunais estão fora do sistema político, sendo uma realidade à parte, desligado do funcionamento dos órgãos políticos. É um entendimento absolutamente erróneo: os tribunais integram o sistema de governo. Fazem parte do dinamismo relacional entre os órgãos de soberania, participando activamente na execução e modelação do direito democraticamente legitimado (quer na law adjudication, quer na law enforcement).
5. A função constitucional dos tribunais não consiste apenas, nem principalmente, na mera aplicação mecânica das leis – ao invés, os tribunais concretizam valorações que o legislador não densificou; tribunais dão vida às opções democráticas do legislador, deles dependendo, em última ratio, o sucesso das políticas públicas; forçam a mudanças sociais e influenciam originariamente o legislador a introduzir alterações na legislação vigente. Há muito que se abandonou a tese dos juízes como meras “bocas que pronunciam as palavras da lei” repetida à exaustão no discurso político e, mesmo, nos estudos sobre Teoria do Estado e Direito Constitucional. Paulo Rangel tem, pois, toda a razão quando traz para o discurso político a actuação e o “estado” de um dos intervenientes do sistema de governo: os tribunais. Claro que os critérios de actuação dos tribunais são diversos dos do Governo ou da Assembleia da República. Estes últimos movem-se pela parcialidade, pela defesa de um programa político excludente de outros, por valores que a maioria do eleitorado sufragou; já os tribunais pautam-se pela independência e pela imparcialidade na aplicação da lei e na criação do Direito.
6. Também, por isso, Paulo Rangel acertou no tom: um dos critérios de avaliação dos tribunais como órgãos de soberania integrantes do sistema de governo é a sua imunidade às tentações controladoras do Governo e da maioria política. E, resulta como um facto público e notório, que hoje a Justiça Portuguesa é bem mais independente e imune a pressões político-partidárias que no passado. Mais concretamente, hoje, os portugueses podem confiar muito mais na Justiça do que no tempo de José Sócrates, no que respeita ao escrutínio judicial da legalidade dos actos dos cidadãos que estão ou já estiveram num estatuto de poder. Formal (Governo ou Assembleia da República) ou informal (bancos, círculos próximos do poder…).
7. Quem não se lembra do que foram as decisões mais do que discutíveis, do ponto de vista jurídico, do então procurador-Geral da República, Pinto Monteiro? Decisões que, até hoje, não foram explicadas ou foram somente justificadas em termos atabalhoados. E deve um Procurador-Geral falar regularmente com o Primeiro-Ministro? Devem almoçar regularmente? Claro que não. A Justiça não deve comprometer a sua imagem de transparência e independência.
8. Com José Sócrates, Portugal e os portugueses viveram um período muito complexo e duro do ponto de vista democrático. Sócrates tentou construir uma máquina de poder, colocando em pontos estratégicos, pessoas da sua confiança. Do seu círculo de amigos. Desde os bancos até à comunicação social, passando pela Justiça, José Sócrates tentou converter Portugal na Venezuela da Europa. Foi um período de claustrofobia democrática – como precisamente Paulo Rangel qualificou em 2007.
9. Claro que pessoas como Renato Sampaio, Galamba ou António Costa têm saudades desse período de claustrofobia democrática: desde que o PS ponha e disponha da máquina de poder – do Estado e da sociedade – não colocam nenhuma objecção. A democracia, para a troika Sampaio/Galamba/Costa, deve ser uma democracia socialista. Ponto final. Perguntamos: se se indignam por Paulo Rangel afirmar que hoje a Justiça é mais independente, qualificando tal afirmação como uma afronta ao sistema judicial, por que razão Renato Sampaio andou a insultar o juiz Carlos Alexandre? Por que razão João Galamba se indignou tanto com Carlos Alexandre? A Justiça é boa, desde que não toque no PS. É o Estado Socialista no seu melhor. Felizmente que o Estado Socialista, dominado pelo PS, está a transformar-se (embora mais lentamente do que seria desejável).
10. Serão as declarações de Paulo Rangel a confirmação de que a prisão de Sócrates é política? Claro que não: este é um argumento absurdo. Primeiro, dizer-se que prisão de José Sócrates, por mais fortes que fossem as provas da prática de ilícitos criminais, seria impossível se o Governo fosse do PS, é uma realidade evidente para os portugueses. É ouvir as palavras de Mário Soares que tentaria, por todos os meios, condicionar António Costa. E António Costa tem a escola política de José Sócrates. Segundo, que poder tem ou teve Paulo Rangel para ordenar a prisão de alguém? Que poder? Então, nós, juristas, comentadores, políticos ou qualquer cidadão, não poderemos apreciar o Estado da Justiça livremente, sem ter o complexo José Sócrates? Era só o que faltava!
11. José Sócrates já fez muito mal a Portugal. Muitíssimo mal. Não deixemos que o síndrome anti-democrático de José Sócrates continue a afectar a nossa disponibilidade e vontade de discutir os assuntos que mais interessam para o nosso futuro colectivo. E a política pública de Justiça é um deles.
12. Curioso é notar a total divergência de perspectivas sobre a Justiça entre Paulo Rangel e Rui Rio. Rio é defensor da limitação máxima dos juízes, portanto, mais próximo do pensamento de Sócrates; Rangel é totalmente contrário. Estará Paulo Rangel a desligar-se de Rui Rio?