Morrer na praia

Entre 1820 e 1920 cerca de 25 milhões de europeus emigraram para os Estados Unidos: 7,5 milhões das Ilhas Britânicas, Irlanda, Inglaterra e Escócia; 5,5 milhões da Alemanha; 4 milhões de Itália; 3,7 milhões do Império Austro-Húngaro; 2 milhões de escandinavos, outros 2 milhões de judeus russos. De Portugal saíram 210.000.

Saíam empurrados pelas causas que sempre determinaram o êxodo individual e coletivo: dissidência e perseguição político-religiosa; fome, desemprego, dificuldades económicas; problemas com a lei ou as instituições; desejo de aventura.

Os europeus que iam para as Américas – do Norte e também do Sul, onde muitos milhões se fixaram, sobretudo vindos dos países católicos – queriam ou tinham que mudar de vida ou mudar a vida, e melhor ou pior, as Américas receberam-nos: tinham espaço, tinham riqueza e precisavam de gente.

A maioria dos migrantes que hoje arriscam a vida através das areias do mar deserto do Saara ou dos ventos do Mediterrâneo, depois de terem pago com as poupanças de muitos anos uma passagem aleatória e perigosa, são empurrados pelas mesmas razões – mudar de vida, fugir à morte, à violência, à humilhação, à fome. Quem quer viver na Somália, ou no Norte da Nigéria? Ou na Síria, ou na Líbia? E quem quer, mesmo que sobreviva, que os filhos ali continuem?

A partir daqui, deve perguntar-se de quem é a culpa da desordem e da violência nestes países. Parte dessa culpa pertence, sem dúvida, aos dirigentes e autocratas locais, à sua lógica predatória, à sua soberba e indiferença pela sorte dos outros. Mas no caso do Iraque, da Síria e da Líbia pertence também aos ocidentais, sobretudo aos norte-americanos, que com as suas intervenções inconsequentes, mal começadas e pior acabadas, contribuíram largamente para o caos, a violência, a desordem, a guerra de todos contra todos.

As intenções podiam ser boas – o fim de ditaduras familiares, no Iraque e na Síria, a defesa de populações em risco, em Bengazi – mas o Médio Oriente e o Magrebe estão caóticos, os cristãos do Oriente são massacrados pelos jihadistas, as pessoas normais têm cada vez mais dificuldades em viver e sobreviver ali. Por isso, para escaparem a um mal maior, saem, fogem, entregam-se nas mãos de traficantes e criminosos; por isso morrem crianças, como o menino sírio da praia turca.

Fomos nós, ocidentais (ou eles, os ocidentais que por lá andaram), que entre o famigerado Sykes-Picot e os planos dos neoconservadores da ‘Libertação Democrática’ inventámos e tornámos invivível este Médio Oriente. Somos nós que, passando do extremo otimismo da Europa e do mundo sem fronteiras para a política do medo e do egoísmo cegos, deixamos morrer as crianças iguais aos nossos filhos e aos nossos netos no caminho para as nossas praias.

Talvez alguma da tão apregoada humanidade e generosidade faça falta e seja urgente. Para nos livrar da culpa, do remorso e sobretudo da vergonha.