Nesta sessão fotográfica fez questão de ser fotografada na ‘porta’ de Cabo Verde, junto ao Forte Real de São Filipe, na Cidade Velha, onde os navegadores portugueses chegaram a Cabo Verde. Nasceu em Lisboa, mas agora vive aqui. Já se sente 100% cabo-verdiana?
É um sentimento ambíguo. Nós, filhos de emigrantes, temos muito aquela sensação de não sermos de parte nenhuma. Nasci em Lisboa, mas não sou de origem portuguesa. Toda a minha família é de Cabo Verde, então cresci a sentir-me estrangeira em Portugal. Cá, toda a minha origem é daqui, mas eu não nasci em Cabo Verde. De alguma forma sempre me senti uma estrangeira. Mas em Cabo Verde nem posso dizer uma coisa dessas porque corrigem-me logo: ‘Não, não. És daqui!’. Isso reconforta-me. ‘Ok, tenho uma terra, sou aceite’.
No caminho da Praia para a Cidade Velha, comentou que já teve uma ideia mais romantizada de Cabo Verde. O que mudou?
Uma coisa é o imaginário de uma criança que nasceu em Portugal, que ouviu toda a vida os pais dizerem maravilhas sobre um país – que existem, sem dúvida -, outra é viver nesse país. De repente, ganha-se um senso de realidade que é sempre diferente do que se idealiza. Por isso prefiro concentrar-me no que encontrei que corresponde ao sonho: a morabeza, o calor das pessoas, a simpatia, a vontade de receber quem vem de fora. Isso cativou-me logo.
Visitou pela primeira vez Cabo Verde aos 21 anos. Em que circunstâncias?
Vim em trabalho. Em casa sempre se falou em virmos de férias, mas nunca houve oportunidade financeira. Então vim já para cantar. A primeira ilha queconheci foi o Sal e ali só vemos céu e terra. Não há mais nada. Mas senti-me tocada pela força da natureza, uma ligação grande com a terra. E logo a seguir com as pessoas. O facto de vir de fora, de ser filha de cabo-verdianos e estar a conhecer o país pela primeira vez, fez com que me acolhessem muito bem. Até porque antes de mim chegou a minha música.
Foi estranho chegar com esse estatuto, que ainda não tinha em Portugal?
Gostaria de ter vindo como uma anónima completa para poder estar mais à vontade. Cheguei e era abordada por estranhos que sabiam o meu nome… Tive de aprender a gerir essa parte. Mas chegar a um país em que toda a gente fala crioulo, só se ouve praticamente música cabo-verdiana, comem-se os pratos que só comia em casa, cria uma identificação grande. De repente, somos um.
Atualmente, as cantoras mais consagradas da música cabo-verdiana – além de si, a Mayra Andrade e a Carmen Souza – vêm da diáspora. Há alguma razão?
A distância aproxima-nos muito. Só posso falar por mim e, no meu caso, o facto de ter nascido longe de Cabo Verde fez com que criasse todo um imaginário em torno desta terra. Uma vontade enorme de voltar às origens, de saber que belezas e que coisas fantásticas são estas que os meus pais falaram a vida toda.
Ter nascido em Portugal influenciou-a, uma vez que a sua música é uma procura das raízes, mas estando sempre consciente do seu tempo?
Sim, sim. Faço uma música inspirada na tradição, mas quero ser o mais autêntica e fiel a mim própria. As batucadeiras, por exemplo, inspiram-me imenso, mas eu não danço da mesma forma. Poderia até fazer, mas não seria verdade. O facto de ter nascido na Europa influencia-me muito, mas bandas como os Bulimundo também são referências. Vivi sempre com esses dois lados: na escola tinha todas as referências europeias e em casa as cabo-verdianas. O meu pai só ouvia Bulimundo [funaná], a minha mãe ouvia Bana [mornas e coladeiras]. Quando se pôs a possibilidade de gravar um disco, sabia que queria fazer música de Cabo Verde, mas não queria fazer morna da maneira como era tocada antigamente. Então gravei o ‘Nha Vida’, que é um slow, não é uma morna, mas a receção foi boa. Fui aceite tal como sou.
Mesmo em Cabo Verde?
Sim. ‘A Lura é nossa, a Lura é daqui’, é isso que me dizem. Não interessa onde nasci.
Mas aquela sensação de que falava, de não ser de parte nenhuma, é útil para escrever música?
Dá uma certa liberdade. Sou uma pessoa muito livre, nisso saí ao meu pai. A minha tendência é fugir sempre de qualquer coisa que me prenda.
Menos no que toca ao amor, uma vez que se mudou para Cabo Verde por causa do seu marido.
Sim, vim viver para Cabo Verde porque conheci o Abraão. Apesar de ter vários motivos para vir, este foi o decisivo. Manter uma relação à distância é impossível e agora tenho uma excelente oportunidade para aprofundar as minhas raízes. Já era tempo de parar de ser aquela menina que fantasiava toda uma história e viver a realidade.
Sei que hesitou um pouco até tomar essa decisão. Porquê?
A minha vida aqui já não é tão privada como em Lisboa. Quando saio à rua tenho de ir preparada para a ideia de que vou trabalhar.
Mesmo quando vai só tomar um café ou fazer compras ao mercado?
Ao mercado já nem vou porque cobram-me sempre o dobro ou o triplo do valor das coisas. Mas sim, sinto que estou a trabalhar porque nunca posso estar à vontade. Toda a gente me conhece e estou sempre a ser observada. Tenho de manter alguma postura e tentar estar ao nível das expetativas das pessoas.
Com o desaparecimento de Cesária Évora, é uma das artistas mais emblemáticas de Cabo Verde. É uma herança pesada?
Não penso muito nisso. Fico é feliz por esse reconhecimento. Quero estar à altura das expetativas e representar o melhor que sei Cabo Verde.
Mas não é uma responsabilidade a ideia de ser vista como ‘a nova’ Cesária?
Mas nem eu nem ninguém é a nova Cesária. Não vai haver outra Cesária, da mesma maneira que, no fado, não vai haver outra Amália Rodrigues. Os cabo-verdianos já perceberam isso, as pessoas de fora é que ainda não.
Como conheceu a Cesária?
A primeira vez que ouvi a música dela tinha 14 anos. Lembro-me perfeitamente desse dia. Estava numa festa e deu o ‘Bia de Lulucha’ [canta]. Pela primeira vez ouvi uma voz maravilhosa, linda, e perguntei à minha mãe que cantora era. Já devia ter ouvido em casa, mas não tinha prestado atenção. Mais tarde, quando lancei o ‘Nha Vida’, que passava imenso na rádio de cá, vim a Cabo Verde e a Cesária convidou-me para jantar em casa dela. Fui com a minha mãe e foi aí que a conheci pessoalmente. Lembro-me que ela cozinhou uns percebes e outros petiscos. Mais tarde assinei contrato com o José da Silva, o manager da Cesária, e as coisas começaram a acontecer.
Li numa entrevista antiga que se sente melhor no papel de intérprete. Ainda assim vem compondo timidamente.
Já me assumo como compositora, apesar de nos discos só gravar dois ou três temas. Isso também tem a ver com o facto de não ter vivido cá e, como estou a cantar a história de Cabo Verde, faz mais sentido ter músicas escritas por compositores locais, com vivências reais. O facto de agora viver cá pode desencadear aqui um novo processo. Neste novo disco tenho três composições minhas, uma em parceria com o Abraão Vicente [o companheiro].
O álbum chama-se Herança. É mais um reforço desse objetivo de cantar a história de Cabo Verde?
Escolho o título sempre no final e a palavra ‘herança’ englobava todo o espírito do disco, um trabalho feito de histórias que os meus antepassados deixaram, desde os tempos da escravatura, o período da independência e, também, assuntos atuais, de consciência social, como o tema ‘Barco di Papel’, com o Richard Bona, onde uso uma expressão que se usa muito em cabo-verdiano que diz ‘mundo não acabes assim’, deixa que as coisas melhorem.
No tema que dá nome ao disco, com o brasileiro Naná Vasconcelos, não são identificáveis as sonoridades cabo-verdianas. É assim?
A nível sonoro é o ambiente da reza dos rabelados [comunidade que vive isolada na ilha de Santiago]. Quis ter um lado espiritual forte no disco porque, mais uma vez, é algo muito característico dos cabo-verdianos. Percebi logo que era um tema que o Naná ia adorar porque podia ‘viajar’ e quando o convidei e mostrei o tema ele aceitou logo.
É comum cantar temas de compositores locais. Neste tem um de Elida Almeida, que no último ano afirmou-se bastante. Já se sente nesse papel de consagrada que apadrinha novos artistas?
Não é forçado, se for um artista que não me tocou, não o faço. Mas quando é alguém em quem acredito, por que não? Quando comecei também contei com o apoio de pessoas que acreditaram em mim e isso deu-me força para continuar. Foi como uma confirmação de que estava apta para este mundo da música.
A música cabo-verdiana tem muitos estilos: morna, funaná, batuque, coladeira… Identifica-se com um em especial?
Com o batuque e o funaná. O funaná pelo ritmo castiço e rude, pelas histórias de engate, traição, emigração, um tema recorrente na nossa música. O batuque por ser a música das mulheres. É um ritmo fortíssimo, que surgiu no tempo da escravatura. Começou por ser uma música muito interventiva, em que as batucadeiras falavam sobre questões sociais, políticas, religiosas. Por isso foi proibido. Os colonizadores achavam que músicas com tambores, mais tribais, eram posturas menos corretas. E quando metiam a componente da dança, pior. No batuque, a dança tornou-se o auge da expressão feminina cabo-verdiana.
Completou 40 anos em julho, uma idade temida para muitas mulheres…
Não para mim. Sinto-me tão bem, tão leve, tão gira [risos]. Não faz sentido ter uma preocupação extrema com a idade.
Não tem filhos. Apesar de se sentir bem, a mulher tem esta limitação genética no que toca à maternidade…
Mas ainda bem. Não faz sentido ir ter filhos aos 60. Quero ser mãe, acho que é o papel máximo de uma mulher.
Esse desejo deve-se ao facto de ter crescido numa família grande, de cinco filhos?
Numa família cabo-verdiana não é assim tão linear. Na minha casa, éramos quatro. Entretanto os meus pais separaram-se e o meu pai teve mais dois, depois mais três e agora já somos uns nove. Eu sou a mais velha de todos.
Então o papel de mãe não é novo?
De certa maneira. Por ser a mais velha, tinha essa responsabilidade de cuidar dos meus irmãos. E quando os meus pais se separaram a minha mãe passou a precisar ainda mais. Hoje reconheço que há coisas que não vivi, mas aprendi cedo a ser mais responsável. Uma das minhas irmãs mais novas andava sempre atrás de mim, mas eu só queria ver-me livre dela. Quando ia de férias para casa da minha madrinha tinha de a levar. As minhas férias eram assim, não ia para o Algarve. Ficava em Lisboa e o mais longe que ia era para o outro lado do rio. Uma vez, na escola, quando a professora pediu aos alunos para fazerem uma redação sobre as férias, fantasiei. Escrevi que tinha ido para o Algarve com os meus tios e a minha irmã e ninguém duvidou.
Tinha um complexo de inferioridade?
Não. Percebi cedo a que classe social pertencia. Mas como qualquer criança tinha sonhos. E, na minha cabeça, passar férias no Algarve era o auge do verão.
Tinha amigos portugueses ou eram todos cabo-verdianos?
Os dois. Mas foi no liceu que comecei a descobrir os amigos crioulos. A forma de eles estarem no recreio era completamente diferente. Levavam o ‘tijolo’, aquele rádio de cassetes gigante, para a escola, faziam concursos de dança e falavam crioulo. A minha mãe sempre me proibiu de falar crioulo porque tinha medo que tivesse dificuldades no português e, de repente, aqueles miúdos da minha idade sabiam e eu não.
Foi com eles que aprendeu?
Fui obrigada a aprender. O que mais queria era dançar e, como eles faziam concursos, eu estava sempre a mostrar que também me mexia. Até que um dia uma malcriada veio ter comigo e disse-me que para entrar no grupo tinha que falar crioulo. Comecei logo, mas como falava mal gozavam comigo. Foi uma fase engraçada, em que comecei a aproximar-me da cultura cabo-verdiana.
Queria ser bailarina?
Era o que mais queria. Era fã do Michael Jackson e imitava-o, mas como nunca tive formação clássica, não podia entrar no Conservatório. Nessa altura comecei a dançar com um grupo de bailarinos e o cantor do grupo convidou-me, pela primeira vez, para cantar no disco dele. Fiquei espantada, mas ele achou que tinha uma grande voz e disse-me para cantar um bocadinho. Cantei ‘Linda, Só Você me Fascina’ e ele disse logo que tínhamos de fazer um dueto. Começou tudo a partir daí.
É assim que descobre a voz?
Sim. No secundário tinha tirado um curso de Desporto e andava sempre rouca por causa das claques. Gritava imenso, tratava muito mal a voz. Mas depois fui ter aulas de canto, gravámos o tal dueto, o tema teve muito sucesso nos PALOP e fui a Angola. De repente, comecei a receber convites, uns atrás dos outros. Entrava em estúdio, cantava e as pessoas diziam ‘uau’. Ficava espantada, mas comecei a gostar dessa coisa que me transcendia. Tinha isto aqui dentro de mim há 18 anos e não fazia ideia.
Foi assim que acabou a fazer coros para o Bonga?
Antes disso, em 2000, ele convidou-me para fazer o dueto de ‘Mulemba Xangola’. Só pensei ‘o que está a acontecer?’. Já tinha gravado um disco, Nha Vida (1996), mas continuava a não encarar a coisa com seriedade. Quando o Bonga me convidou foi a primeira vez que pensei que, se calhar, tinha algum futuro.
Que idade tinha?
Uns 24, 25 anos. Ainda dei aulas de natação, na sequência do curso de Desporto, mas como comecei a viajar e a passar muito tempo fora tive de escolher. Foi uma opção muito difícil. Toda a gente me dizia que o mundo artístico era complicado, não havia salários certos e com a natação, ao menos, sabia com o que contar. Mas já estava tomada por uma vontade enorme de continuar a cantar e já ganhava dinheiro com a música.
Tendo em conta o seu passado humilde, quais as primeiras coisas que quis comprar com esse dinheiro?
Não comprei nada, dava tudo à minha mãe. Lembro-me de ter contado isso a uma amiga e ela ia-me batendo. Mas a minha mãe precisava. Trabalhava como doméstica, o meu pai na construção civil, e éramos quatro filhos. Era muito pesado. O cachet que ganhei em Angola, por exemplo, deu para mobilar a casa para onde nos tínhamos mudado.
Era ela que lhe pedia, que lhe dizia que tinha de trabalhar para ajudar em casa?
Partia sempre de mim, ela nunca me pediu nada. Claro que como filha mais velha fui bastante responsabilizada, mas nunca tive necessidade de me vitimizar.
Depois de Nha Vida, lançou In Love (2002), cantado em inglês. Ainda consegue ouvir esses discos?
Consigo. Quer dizer… com um bocado de esforço [risos]. Já não me revejo nos temas, mas não me envergonham. Às vezes é bom errar, errar a sério, para vermos que não é nada daquilo. O In Love serviu para isso. Percebi que tinha um instrumento, que podia cantar o que quisesse, só que isso é muita coisa. Não posso ter fado, soul, funaná e samba no mesmo disco. Não faz muito sentido. Aí percebi que tinha que escolher um caminho. No dia em que percebi que caminho era esse, fez-se sol na minha vida.
Com Di Korpu Ku Alma (2005) começa a aclamação internacional, tendo sido nomeada para um BBC World Music Award. Como foi essa experiência?
Foi um processo, e nisso o José da Silva foi muito inteligente porque proporcionou-me momentos em que pude atuar no estrangeiro, estar com outros artistas, ver como o mercado funciona. Fiz uma digressão com o grupo Cesária Évora & Friends que foi decisiva para perceber o que é isto de sair pelo mundo a divulgar a música de uma terra. Vim dessa tournée cheia de certezas.
Ainda assim, também tentou ser atriz ao participar em Morangos com Açúcar.
Eu? Não [risos]. Foi uma experiência gira e antes já tinha feito teatro e musicais infantis e gostei bastante. Se hoje surgisse um convite que me agradasse, especialmente em cinema, aceitava.
Ao vivo é notório o respeito que tem pelo palco. É um local sagrado para si?
Completamente. Não sou muito de dorzinhas, mas mesmo que haja alguma coisa, quando subo ao palco está tudo bem. A adrenalina e a responsabilidade de saber que vou atuar curam tudo. Lembro-me de um concerto que fiz na Tasmânia, depois de 30 horas de avião. Houve ligações que falharam, ficámos horas e horas em aeroportos e aviões, as pernas estavam inchadas, chegámos a um país com 12 horas de diferença e, como nos atrasámos muito, não tive tempo para descansar. Fui diretamente do avião para o palco. Estava embriagada de cansaço e houve uma altura em que me esqueci da letra do ‘Oh Naia’, um dos temas que já cantei mais vezes. No fim, as pessoas começaram a dar-me os parabéns e eu ria imenso para não chorar. Acontecem muitas loucuras destas em digressão, mas a paixão pela música é tão grande que supera todos os sacrifícios.