Tiago Rodrigues: “Continuaria feliz mesmo que dissessem que sou péssimo”

O fascínio pelo teatro começou ainda em criança, ao ver revista à portuguesa no Parque Mayer com a ama. A tradição manteve-se até à adolescência, altura em que entrou para o grupo de teatro do liceu da Amadora, onde cresceu. Mais tarde ponderou ser jornalista como o pai, mas percebeu que mais do que relatar…

Depois da surpresa de ter sido convidado por um governo de direita, sendo assumidamente militante de esquerda e tendo criticado várias vezes este Executivo, ouviu-se muita gente das artes comentar que a sua nomeação foi a única decisão acertada que Barreto Xavier fez enquanto SEC…

Em primeiro lugar acho um comentário errado porque é impossível, e em segundo acho precipitado porque a temporada ainda não começou. É preciso ver o que vamos fazer. O Céline dizia: "Em vida os substantivos, depois da morte os adjetivos". Eu estou mais interessado nos substantivos e, sobretudo, nos verbos: ensaiar, apresentar, estrear, abrir…

 

O verbo criticar (o governo) caiu, uma vez que agora está numa posição que o condiciona a esse nível?

Uma das particularidades de ser diretor artístico do D. Maria é que quando falo, mesmo que haja momentos em que falo publicamente a título pessoal, está sempre implicada a minha função. Portanto, fala-se em nome de uma equipa de 86 pessoas, com diferentes convicções religiosas, políticas, sociais. Fazer comentários a título pessoal à vida política portuguesa e à atuação do governo, sejam eles elogiosos ou críticos, é qualquer coisa que neste momento tenho de encarar de uma forma diferente. Isso não significa que seja uma mordaça, ou que recue um milímetro que seja naquilo que são as minhas convicções, trata-se é de um megafone. Depois, parece-me um sintoma de saúde democrática um governo convidar um artista para dirigir um teatro nacional que não é da sua cor política. Aceitei com muito mais tranquilidade do que se fosse por parte de um governo ou político que tivesse publicamente apoiado. Aqui não há qualquer questão de favorecimento.

 

Além de diretor, é encenador, ator, dramaturgo… Mas olhando para a programação, percebe-se que nos próximos tempos não vai representar.

Vou continuar a trabalhar como ator nas peças que estão a circular e, no futuro, espero poder trabalhar como ator pela primeira vez no palco principal do Nacional porque nunca o fiz. Mas para já quis poupar-me. O trabalho de ator é, talvez, o mais exigente. A encenação e a escrita são sofrimentos diferentes. Na escrita sofro bastante, é duro, mas é um trabalho que vai sendo maturado. Escrevo quando é inevitável escrever, quando tenho de entregar textos, mas também escrevo muito durante os ensaios, de forma coletiva com os atores. O trabalho de ator já tem uma gestação que ocupa mais tempo para eu conseguir fazer com a qualidade que persigo. Precisa de uma concentração e de uma entrega que num momento como este seria impossível. Já é completamente louco o trabalho de diretor artístico com a encenação de três tragédias. É uma gestão de relojoaria, em que se decidem as coisas ao minuto.

 

O trabalho burocrático nunca se sobrepõe ao artístico?

Somos uma casa do teatro e da criação, logo ninguém vai interromper um ensaio para eu responder a um email ou assinar um contrato. O que acontece é que quando as coisas começam a ficar muito tensas do lado da direção artística, consigo descansar ao ir para o ensaio e vice-versa.

 

Só trouxe um objeto pessoal para colocar no seu gabinete: um mapa mundo antigo. Porquê?

Gosto muito de mapas, coleciono-os, sobretudo os antigos. O que gosto nos mapas é desse potencial da viagem. Têm o efeito da capa do livro, dá vontade de ver lá dentro. Em escritórios, sítios onde nos encerramos para trabalhar, é bom ter um mapa que nos diz ‘o mundo é uma coisa muito maior do que esta sala. Tudo isto é relativo, também podia estar a acontecer noutro sítio, há outras pessoas como tu que têm as mesmas questões, os mesmos problemas’.

 

E basta olhar para o mapa para se recordar disso tudo?

Sim, é uma janela. Neste gabinete não tenho uma janela para o Rossio, mas tenho esta para o mundo. Isso é uma das coisas que também é sempre uma preocupação nos meus espetáculos. Têm de ter sempre uma janela para o mundo. Dito assim pode parecer uma coisa muito pomposa, mas é muito concreto: quando faço um espetáculo não tenciono dizer que o mundo todo é aquele espetáculo, mas sim que está dentro do nosso mundo. É real, está a acontecer na vida daqueles espetadores. A Ifigénia não está a acontecer na Grécia antiga, está a acontecer hoje e aqui para se falar, com palavras antigas e actuais, do mundo em que vivemos.

 

Falar com o espetador é uma necessidade constante?

O que nunca arrisco é a necessidade de comunicar, é uma coisa que está no coração do teatro que faço. Às vezes pode sair uma coisa imperfeita, mas um espetáculo meu tem de ter desesperadamente vontade de falar com as pessoas. Acho que essa urgência tem a ver com o facto de ter crescido na Amadora, um sítio onde era preciso comunicar. Reconheço que muita da vontade de me apresentar ao outro vem dos tempos da adolescência, onde era preciso saber estar na rua, andar, olhar para os outros.

 

Que memórias guarda desses tempos?

Crescer na Amadora foi crescer numa cidade com uma grande mistura cultural: na língua, na música, na comida. Esse multiculturalismo natural cria uma capacidade enorme de ver a sociedade como um sítio de encontro e mistura. Inscreve a tolerância logo no código genético. Também me lembro de, em miúdo, achar muita piada ao facto de dizer ‘sou da Reboleira’ e isso dar-me logo uma certa reputação. Cresci a brincar na rua, a jogar à bola na Cova da Moura, a atravessar bairros como o Estrela d’África, o 6 de maio, exposto a vidas complicados, sim, mas aprendendo também a respeitar o esforço de trabalhadores que batalham por vidas melhores. Vivi essa Amadora que, mais tarde, deu origem à explosão que são os Buraka Som Sistema.

 

Uma vez que tem 38 anos, imagino que tenha sido colega do Branko e do Riot, dos Buraka…

Sim, o Rui Pité, que é o DJ Riot, é um amigo de adolescência. Estávamos os dois juntos no grupo de teatro da escola, que era dirigido pelo pai do Rui.

Que idade tinha quando entrou para o grupo de teatro?

Uns 13, 14 anos. Entrei, não propriamente porque tivesse vontade de ser ator, mas porque estavam ali as pessoas mais extravagantes da escola, que não se encaixavam completamente.

 

Mesmo sem vontade de fazer teatro, acabou por ir para a ESTC depois do secundário.

Não fui logo. Estive um ano a trabalhar em muitas coisas diferentes, algumas delas muito mal sucedidas como uma fábrica. Mas foi um ano que aproveitei para ler, escrever para jornais, procurar saber o que fazer a seguir.

 

Começou a escrever influenciado pelo seu pai, o jornalista Rogério Rodrigues?

Comecei a escrever por vontade própria, por querer fazer um caminho meu, mas o fascínio pelo jornalismo deu-se pelo meu pai. Passei muito tempo nas redações, rodeado de gente que além de escrever, falava de uma forma interessante. Lembro-me da voz muito aguda do Fernando Assis Pacheco, um dos mais brilhantes conversadores que já tive oportunidade de ver em prática. Portanto, a minha relação com os jornais foi sempre forte. Corri o grave risco de me tornar jornalista. O teatro e o jornalismo têm essa coisa em comum: aceitam todo o tipo de gente. Há profissões cuja característica principal é a diversidade e isso sempre me interessou. Mas a minha história com a escrita de jornais passa, sobretudo, por ter começado a escrever para o DN Jovem, depois fiz umas coisas para televisão desafiado pela Diana Andringa, que me tinha lido no DN.

 

Então o jornalismo foi uma opção real?

Estava na mesa. Nunca me preocupei muito com ‘o que vou ser quando for grande’. Ainda hoje me preocupa muito pouco. Até quando me perguntam ‘é encenador, dramaturgo ou ator?’, a minha reação é pensar ‘por que é que isso é importante?’. Lembro-me de estar sempre mais preocupado com ‘o que me fará feliz?’ do que ‘qual a profissão que me define?’.

 

Como se decide então pela ESTC?

Candidatei-me porque não precisava de média para entrar e as minhas notas não eram nada brilhantes no secundário. Só precisava de fazer audições e ter positiva. Acabei por ter negativa, 9.9, mas como ainda havia uma vaga repescaram-me.

 

Foi uma entrada sofrível.

Sim, e o primeiro ano também. Foi mais ao menos ao nível da nota da audição, a ser confrontado várias vezes com a dúvida ‘será que tens mesmo capacidade para continuar?’. Ter ouvido vários professores sugerirem que, eventualmente, não tinha, fez-me passar o verão a fazer muitas oficinas de teatro, uma delas com uma companhia belga, os STAN, que mudou para sempre a minha forma de ver o teatro. De repente, encontrei ali um teatro que fazia sentido para mim, dedicado à criação coletiva e apostado em fazer este trabalho de, através de textos clássicos, falar dos dias de hoje. No ano seguinte convidaram-me para fazer um espetáculo com eles, o que me levou a sair logo da escola de teatro e começar a trabalhar. Ao fim de dois ou três anos percebi que era mesmo profissional de teatro.

 

O que não funcionava no lado académico?

Na altura, a ESTC era mais conservadora do que é hoje. Mas eu também era mesmo fraco. Não acredito nada que tenha um talento natural para o teatro, que seja inato, algo que sempre tive em mim. Eu é que sou feliz a fazer teatro, não sei se o teatro é muito feliz comigo. Mas isso também nunca me interessou. Decidi fazer teatro consciente de que não era o melhor. No grupo de teatro do liceu via pessoas que achava melhores do que eu e, à minha volta, continuo a ver pessoas que são melhores.

 

O que vinga então, a persistência?

Faço teatro e sou feliz, então é isso que vou fazer. Tento fazê-lo o melhor que posso e que sei, e tento tornar-me melhor para ser ainda mais feliz. Mas também não deixaria de ser feliz se fosse unânime que todos os meus espetáculos são péssimos. Uma crítica negativa é sempre qualquer coisa que oiço, que me pode deixar mais ou menos triste, mas é uma coisa que não retira a felicidade que tenho no que estou a fazer.

 

Sente-se com frequência a pessoa com menos talento em palco?

Essas medidas não me interessam nada. Tenho a sorte de, ao longo destes anos, ter acumulado colaborações com atores e outros artistas que admiro imenso. Interessa-me criar relações e colaborações que me permitem saber que criei uma teia, uma família de pessoas que arriscam sempre que sobem ao palco. Porque fazer teatro é correr riscos. As pessoas do teatro são aquelas que gostam mais de saltar de paraquedas do que de andar de bicicleta.

 

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Que paraquedas nunca vestirá?

Fazer uma revista e encenar Shakespeare. São duas coisas que não saberia fazer bem, não tenho as ferramentas para isso. Sobre a revista, além de ter demasiado respeito pelo género, é um espetáculo com regras muito rígidas e complexas, com uma estrutura difícil, que é preciso conhecer muito bem e ter imenso talento para reproduzir. Sobre Shakespeare, já adaptei – António e Cleópatra -, mas não saberia pegar de raiz numa peça. Shakespeare é o mundo todo nas peças, é uma biblioteca inteira, tanto em termos de direção de atores, dramaturgia sobre o texto e encenação. Não teria a capacidade de o fazer de uma forma que me satisfizesse, que achasse que estava a descobrir qualquer coisa de singular, que fosse a minha expressão única daquele texto. Mas tenho uma paixão tão grande por Shakespeare que vamos ter o Ricardo III, Romeu e Julieta e o festival Glorioso Verão, em colaboração com o São Luiz, só de Shakespeare.

 

Revista não?

Vamos ter, sim. Aliás, é uma conversa que já está a acontecer. Mas não é nada de inédito. Recentemente houve uma revista, a Tropa-Fandanga, do Teatro Praga, e o maior sucesso da história do D. Maria é o Passa por Mim no Rossio.