2. Mas o que é, dogmaticamente, ser Presidente de Câmara? Cada autarquia é uma autarquia, pelo que construirmos uma teoria geral sobre o exercício do poder autárquico se afigura como uma tarefa dificílima e, seguramente, inútil. A Câmara Municipal de Lisboa é diferente da Câmara Municipal de Guimarães; a Câmara Municipal de Guimarães é diferente da Câmara Municipal de Abrantes. Logo, esforcemo-nos por limitarmos o nosso escopo doutrinário à Câmara Municipal de Lisboa. Sabemos que a afirmação do poder local face ao poder central nunca foi fácil em Portugal: embora as comunidades locais sempre arrogassem para si direitos e privilégios (claro que com os correspondentes deveres), o reconhecimento da autonomia local por parte da autoridade central (do Reino ou da República) foi um processo lento, sucessivo e gradual. Feito de recuos e avanços. De conflitos e tensão. Quem ganhou? Ganhámos todos, enquanto Nação. Porque a afirmação de uma autoridade política próxima das comunidades locais beneficia os locais, os membros dessa comunidade e, por esta via, pela soma dos ganhos das várias componentes territoriais, o todo nacional torna-se mais forte. Ganha também o poder central, porquanto a sua legitimação material se reforça. O pode local não divide: pelo contrário, torna a Nação mais coesa. Todos os autarcas que exercem e exerceram com brilho as suas funções estão, pois, de parabéns pelo trabalho que efetuaram em prol da Nação portuguesa.
3. Foquemos, então, a nossa atenção no município de Lisboa. Para ser um Presidente de Câmara do município de Lisboa com mérito é absolutamente necessário, em primeiro lugar, conhecer a importância histórica e o lugar estratégico que Lisboa (juntamente com outras cidades) na afirmação de Portugal no mundo. Em segundo lugar, é absolutamente crucial que o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa – se o quiser ser com mérito e recordado pela História – conheça melhor do que ninguém a cidade de Lisboa, as suas ruas, os seus bairros, os seus monumentos, os seus sítios de lazer, os seus parques, as suas zonas verdes, as suas escolas, enfim, os sítios da cidade que sirvam os lisboetas. As zonas que permitam às famílias viver – e conviver. Em terceiro lugar, um Presidente da Câmara Municipal de Lisboa que o seja com mérito tem de sentir o apelo para a ação – ação para resolver os problemas da vida dos lisboetas; ação para ir ao encontro, falar, ouvir os lisboetas, desde a senhora de 80 anos que vive sozinha em bairro antigo até ao jovem que vai todos os dias para as suas aulas no ensino Secundário e tem dificuldades na sua deslocação e/ou no acesso a espaços para estudar fora do tempo letivo e – porque também é essencial para o crescimento e para o desenvolvimento da personalidade, quer individual, quer cívica – de espaços para conviver com os amigos. Um Presidente com vontade de construir, de agir, de dinamizar a cidade, de cativar os lisboetas. Um Presidente da Câmara Municipal de Lisboa não tem de perfilhar uma doutrina, um visão teoricamente sustentada sobre o futuro da cidade – é mais importante sentir Lisboa, sentir e intuir os problemas dos lisboetas, projetar a cidade, suas ruas e bairros e espaços para o futuro do que ser socialista, liberal, de direita, de esquerda, de centro, cima ou de baixo.
4. No fim do dia, o Presidente de Câmara de Lisboa tem de conseguir que a cidade seja culturalmente mais animada, mais amiga dos seus habitantes, turisticamente competitiva, que conjugue investimento privado com investimento público – ou seja, não pode massacrar apenas os contribuintes portugueses e, sobretudo, os lisboetas com uma dívida elevadíssima, nem poderá ficar totalmente dependente do investimento privado. Há pessoas – de esquerda e da direita política – que afirmam que Pedro Santana Lopes foi o último Presidente da Câmara Municipal de Lisboa à altura das suas funções. Concordamos? Bom, não é este o local adequado para expressarmos a nossa opinião em termos de avaliação de pessoas – este texto visa ser uma análise e construção dogmática do que deve ser o exercício das funções de Presidente de Câmara do município de Lisboa.
5. E o que não é um Presidente? Pois bem, um Presidente da Câmara Municipal de Lisboa não deve ser alguém que assuma o compromisso de exercício de tão nobre função apenas para agradecer, agraciar ou retribuir favores aos políticos dos aparelhos partidários. Um Presidente da Câmara Municipal de Lisboa não deve ser alguém que ciranda entre o exercício de funções do poder central (por exemplo, Ministro em certo Governo) e o exercício de funções no poder local – a interpenetração de cargos apenas serve para prejudicar a autonomia do poder local, agravando o problema do “centralismo democrático” territorial e organizativo de Portugal; e serve para enfraquecer a autoridade e a imparcialidade do poder central. Um Presidente da Câmara Municipal de Lisboa não pode ser alguém que exerce as suas funções de titular de um cargo de uma pessoa coletiva de base populacional e territorial, dotada de proteção constitucional, em part-time – ou seja, que é Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, mas que às quintas ou sextas-feiras é comentador em programa de televisão. Muito menos poderá um Presidente da Câmara Municipal de Lisboa ser protagonista cimeiro de uma permanente conspiração contra a liderança do seu partido (ou contra figuras políticas de outros partidos), apenas e só para defender os seus interesses políticos pessoais. Se alguma dia, alguém, algum Presidente da Câmara Municipal de Lisboa vier a adotar este comportamento, parece-nos que, à luz do princípio da lealdade institucional e da boa fé no exercício dos cargos democráticos, essa pessoa não será digna do seu cargo, nem de outro que queira vir a ocupar a nível nacional. Na nossa opinião, são estes os pressupostos dogmáticos excludentes de uma candidatura à Câmara Municipal de Lisboa e, por maioria de razão, o seu substrato filosófico deverá estar presente na avaliação de candidaturas a cargos nacionais.
6. Última questão: poderá um ex-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa ambicionar ser Primeiro-Ministro? Trata-se de uma questão que só se coloca por mera hipótese académica. Honestamente, julgamos que é muito difícil alguém que já exerceu as funções de Presidente da Câmara Municipal de Lisboa se revelar um Primeiro-Ministro à altura dos desafios e das dificuldades próprias da governação de Portugal. A História prova-o: nunca um ex-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa chegou à liderança do Governo de Portugal. Pense-se no exemplo de Jorge Sampaio: este revelou-se um líder débil do PS, foi um bom Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, foi derrotado estrondosamente nas legislativas – e acabou na Presidência da República, em que não se exige uma doutrina de ação política, mas sim qualidades de moderação e de estabelecimento de pontes entre as várias forças políticas. Jorge Sampaio deu um bom Presidente de Câmara, deu um relativamente bom Presidente da República – mas os portugueses rejeitaram-no liminarmente para Primeiro-Ministro. Ou então pense-se em Pedro Santana Lopes: foi um muito bom Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, mas não se conseguiu impor como Primeiro-Ministro.
7. Logo, julgamos que quem já foi Presidente da Câmara Municipal de Lisboa terá muitas dificuldades e obstáculos para se tornar Primeiro-Ministro de Portugal. É a História que o confirma – e a análise das realidades políticas nacionais e autárquicas.
8. E a doutrina mais consagrada: o que diz? Ora, neste ponto, tem ganho terreno a tese de José Sócrates, expressa no livro “Quem disse que era Fácil?” escrito por Bernardo Ferrão e Cristina Figueiredo, José Sócrates, segundo a qual António Costa é um bom político, mas nunca passará de Presidente de Câmara. Ou seja, José Sócrates acolhe a tese da impossibilidade originária e endémica de alguém mais propenso para presidente de executivo camarário desempenhar as funções de Primeiro-Ministro de Portugal. José Sócrates é uma voz autorizada neste domínio, na medida em que alia ao conhecimento teórico da política (é Mestre em Ciência Política), o conhecimento da realidade política no terreno. Nós, pelo contrário, temos um conhecimento limitado pela realidade abstracta-conceptual – e não temos interesse nenhum em fazer campanha política por esta ou por aquela força política. Limitamo-nos a analisar a política nacional – sempre, no entanto, interpretando o superior interesse de Portugal. Defender Portugal não é uma missão só dos políticos ou só dos jornalistas, ou só dos comentadores – defender o interesse de Portugal é uma tarefa e uma missão de todos os portugueses. Os nossos pressupostos dogmáticos para o exercício de Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e de Primeiro-Ministro aplicam-se a todos os casos e todas as situações.
9. Com o nosso rigor analítico, temos, no entanto, de reconhecer que a tese de José Sócrates sobre a eventual incapacidade de António Costa em ser mais do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa ainda não foi refutada, nem tão pouco sujeita à crítica dialética. Aguardemos, pois, os avanços argumentativos ulteriores sobre esta matéria, candente e relevante para compreender a natureza dos cargos públicos e seu exercício em Portugal.