Benjamim, o retornado consciente

O dedilhar da guitarra que marca o ritmo do belíssimo ‘Sangue’ ouve-se há quase um minuto quando Benjamim canta ‘filho bom à casa torna, mais vale ser retornado’. Poucos segundos depois, novo manifesto: ‘É no sangue, é no sangue, que te prendem, que te prendem’. O tema – que serve quase como uma espécie de…

Por mais universal que cantar em inglês seja, o músico começou a sentir a necessidade intrínseca de fazer canções em português, de escrever “sobre coisas que não existem em mais lugar nenhum”. Enquanto decidia se fazia ou não as malas, ouviu vezes sem conta para se deixar estar, viu amigos licenciados começarem a conduzir tuk tuks para suportar as despesas. Nada disso o desmotivou.

A convicção de que preferia falhar a viver uma vida em que já não acreditava, bem como a vontade crescente de estar perto dos do seu sangue – mesmo que isso signifique ‘ser retornado’ (indireta para o pai, nascido em Angola) – e o desejo de “fazer canções” para a sua geração acabaram por descomplicar-lhe o destino. E ganhámos todos.

Auto Rádio não é só mais um registo efémero fruto da tendência atual de se fazer música pop em português. É um disco onde se reflete, de forma sublime, sobre o que é isto de se ser português, quando o autoritarismo de uma Europa se impõe, mas as marcas de uma história cheia de feridas ainda nos atam ao passado.

Os assombrosos ‘O Quinito foi para a Guiné’ e ‘Sangue’ e o bamboleante ‘Tarrafal’ recordam memórias coloniais – assunto fértil durante o crescimento de Luís por causa do pai. Já ‘Exílio’, que fecha o álbum, reporta o tal dilema entre partir ou ficar.

O fim da História

“Sou de uma geração que acreditou que vivia o fim da História. Agora somos União Europeia, agora não há guerra, o 25 de Abril já só existe nos manuais escolares, a democracia tornou-se um dado adquirido. De repente colapsa tudo e percebe-se que a História afinal não acabou, não há líderes, os governos não têm poder nenhum, ninguém manda no seu país… Às tantas, dei por mim a pensar que tinha de fazer qualquer coisa”.

O aperto emocional ditou que se instalasse a tempo inteiro numa casa no Alvito, e ali montou o seu estúdio. Num caderno virgem, começou a forçar o compositor que escreve em português, mas a tarefa revelou-se bastante complicada. “Em inglês tens montes de referências. Há um imaginário que pode pertencer a qualquer lugar”, diz, comentando que teve de reaprender a compor do zero. “Vivi dias de angústia em frente ao papel”, continua, “sem saber como resolver determinadas frases”.

Às tantas, impôs-se o exercício diário de ouvir muita música nacional, tentando decifrar os protocolos cruciais para escrever bem na nossa língua. “Sempre ouvi música portuguesa e até participei em discos que considero de exceção, do B Fachada, da Márcia e do João Coração. Mas comecei a ouvir mais Fausto, Godinho, Palma e a perceber que, na realidade, até se tem mais liberdade a escrever em português. Podes dizer o que quiseres porque ainda há tanta coisa só nossa que ninguém canta”.

A persistência rendeu, mesmo que tenham sido precisos dois anos para apurar o disco, de modo a equilibrar ambientes, tal qual uma emissão de rádio que viaja entre muitas sonoridades. Assim, ao lado do aparente negrume dos temas “mais conscientes” (adjetivo usado pelo próprio Luís para fugir ao ‘politizados’), Auto Rádio também emana a jovialidade dos 29 anos do seu autor, com os dinâmicos ‘Os Teus Passos’ e ‘Volkswagen’ cheios de metáforas deliciosas como ‘eu ponho a mudança e tu quebras o gelo’ ou ‘na tua boca vive o meu pão’.

Aprender a cantar

Encontrados os temas, foi preciso aprender a cantá-los, já que “cantar em inglês também é completamente diferente”. Nada melhor, então, do que andar um mês na estrada, durante o verão, antes de o disco sair, com concertos todos os dias. Algo inédito em Portugal. “Tive essa ideia numa noite de copos e quando falei, no dia seguinte, com o meu agente, achei que ele ia dizer que era absurdo. Em vez disso, começou a ligar para bares e a arranjar datas”. No final, passaram por 33 lugares, de norte a sul do país.

Além de ganhar treino para dizer as notas como as imaginou, o músico viveu coisas incríveis como ter estrangeiros a aparecer nos concertos porque ouviram na rádio o single ‘Os Teus Passos’ e receber comentários como o de uma senhora, nas festas de Vizela, que lhe disse nunca pensar gostar “deste tipo de música”. “Podia ficar horas a falar de peripécias que me aconteceram nesta tour, mas a melhor lição foi perceber que as pessoas, mesmo quando não gostam, estão disponíveis para te ouvir se fores honesto no que fazes”. A experiência na estrada prossegue já hoje, com o primeiro concerto de Luís Nunes em Lisboa como Benjamim, na Galeria Zé dos Bois. Já a composição em português está para durar, ou não fosse a língua nativa o elo transversal à identidade lusa que quer enaltecer.

alexandra.ho@sol.pt