Comigo trago o peso da esperança

O amor suporta todas as esperas. A adversidade que faça fila. Aya e Wassim desafiam os rostos cerrados. Têm mais tempo que os outros – todo o que o mundo tiver para lhes dar. Conheceram-se num campo de refugiados na Turquia, depois da despedida da massacrada Homs, a 160 quilómetros a oeste de Damasco. Casaram-se…

Tantas vezes, o sorriso é conquista recém-nascida. O humor, um aliado de peso da sobrevivência, ainda que seja tão inesperado como um lugar desafogado numa carruagem lotada. “A situação na Hungria está caótica, com milhares de pessoas em marcha, exaustas pelas viagens traumáticas e preocupadas com o facto de o governo húngaro poder subitamente alterar o sistema. Impressionou-me o apoio de voluntários locais, que distribuem comida, roupa e medicamentos o melhor que podem”, explica Jenny por email, depois de mais de 30 anos a tomar o pulso aos palcos mais instáveis do mundo, do Uganda ao Curdistão.

As prioridades redefiniram-se com os anos, e o recheio da mochila conforma-se com as condições do momento. Em 2013, ao serviço da organização humanitária CARE, a fotógrafa britânica mapeou os pertences de refugiados sírios num campo de Amman, na Jordânia, numa série de retratos. Malek agarrou-se ao Corão, Hala não perdeu  de vista o medicamento para a epilepsia do filho de três anos; Halima não seria a mesma sem a aliança de casamento; a viúva Muna sabe que não volta a casa, mas as chaves que abriam a porta desse passado seguiram com ela no bolso para que a  esperança nunca se feche. Nadia estende os braços e mostra as palmas das mãos. Guardam tudo o que trouxe consigo. Nada.

Foi em 2003 que Matthews publicou o livro Women and War, e desde então tem tentado dar continuidade ao projeto – o número de páginas negras da história garante a sua longevidade. “Infelizmente, tem havido um excesso de conflitos desde o bombardeamento do Iraque”.

Os deslocados que povoam as notícias, descreve, são na sua maioria jovens, revelam um invejável desembaraço a usar a tecnologia, e o domínio da língua inglesa, um cenário distante dos seus primeiros ensaios, nos anos 80, com a América Central em pano de fundo. “Quando comecei a fotografar a comunicação era muito difícil e lenta. Agora as pessoas dão o seu Facebook para nos podermos manter em contacto, e graças às câmaras digitais as imagens correm mundo em segundos. Nunca mais tive que revelar rolos em casas de banho de hotéis e andar à procura de linhas de telefone. A internet também permite hoje um maior envolvimento de todos. No Reino Unido, o governo foi pressionado para acolher mais refugiados, em resposta à foto do bebé morto, Aylan Kurdi”.

Demasiado cansados, assediados, desconfiados, nem todos se prontificam para as investidas da máquina. Mas na estação, conta Jenny, muitos partilham a euforia por verem uma luz ao fundo do túnel, que se acende em comboios rumo a Viena e Munique  “Tinham tempo e boa disposição para conversarem um pouco”. E muitos deles, uma carga mais leve. “Desde que deixaram a Turquia, os refugiados passaram a maior parte do tempo no mar ou na estrada, fazendo longas distâncias, pelo que transportam pequenas mochilas. Muitos tiveram que se desfazer de bens durante as travessias, para evitar que o barco se afundasse. Faz três anos que os fotografei na Jordânia, e neste tempo os smartphones proliferaram. Cada família tem pelo menos um, para poderem contactar. É um dos pertences mais preciosos. Muitos estão a documentar a sua viagem”. E se o bem mais precioso é quem  carrega o fardo, há acessórios que são mais essenciais do que se imagina. “Claro que um bom par de sapatos vai dar uma ajuda, assim como um pouco de maquilhagem para te sentires melhor”.

Da Grécia para o mundo

São poucos os que alcançam solo europeu com muito mais do que os recursos básicos. A cada refugiado, um álbum de memórias transportado pela mão ou ao ombro. O The International Rescue Commitee (IRC) vasculhou a bagagem de uma mãe, de uma criança, de um adolescente, de um farmacêutico, de um artista, de uma família de 31 elementos, e partilhou os respetivos conteúdos. O norte-americano Tyler Jump fotografou-os. “Queríamos fazer algo que produzisse eco a um nível pessoal. Mostrar que trabalhamos com pessoas e não apenas com números”, explica a partir da Grécia, entre atualizações permanentes do seu liveblog.

Mal concluiu a faculdade, associou-se ao Corpo da Paz. Partiu para a Tanzânia, onde durante dois anos ensinou informática e novas tecnologias de media a estudantes do secundário. Foi aí que se juntou ao IRC, ingressando na equipa de emergência. Coube a uma colega, Juliette Delay, avançar com a ideia para o projeto ‘What’s in my bag’, em vésperas da primeira deslocação à ilha de Lesbos, atual escala à beira da rutura, foco de tensão entre migrantes e polícia, e cenário de encontros comoventes. “A minha história preferida é a do artista. Não tinha nada, teve que comprar uma t-shirt quando chegou à ilha, porque tinha apenas a que trazia vestida. Mas mesmo  tendo deixado tudo para trás, guardava consigo pequenas coisas com valor sentimental; prendas de amigos e recordações da vida que deixou em suspenso, até encontrar a segurança de um novo lar”.

Certos items explicam a relação com o que fica pelo caminho, outros testemunham a confiança necessária de quem se faz à estrada. “É curioso o caso do estudante que trouxe consigo gel para o cabelo, mas há uma razão para isso, que diz muito dos refugiados que aqui chegam. Ele não quer que as pessoas saibam que é um refugiado. Estas pessoas não queriam abandonar as suas casas, mas uma vez obrigadas a fazê-lo, querem ajustar-se às suas novas casas. Estão empenhadas em aprender uma nova língua e em contribuir para as suas novas comunidades”.

Jump vai manter-se ao serviço da IRC, uma das muitas em modo de emergência na zona do Mediterrâneo, onde muito haveria por dizer, e ainda mais para não ser esquecido. “As pessoas são extraordinariamente generosas e estão ansiosas por contar as suas histórias. Tenho conseguido manter contacto com algumas, e as suas trajetórias são incríveis. Quero garantir que são partilhadas.”

Damasco, o fruto proibido

Os escassos objetos pessoais tornaram-se símbolo de fé e vínculo a um teto que desabou. Quando fugiu de Daara, Sajida trocou colares com as amigas. Não sabia se algum dia se voltariam a reencontrar mas o pescoço tentará lembrá-la até que possa que um dia se conheceram. Muhanad aconchega na mão o pequeno robô que o avô lhe deu. Muhammad precaveu-se com o kit de barbeiro. Halaa perdeu o pai; conserva apenas o livro de apontamentos com as suas notas sobre carpintaria, tudo o que sobrou do negócio de família. Basma exibe com orgulho o relógio que a tia lhe ofereceu num aniversário.

Com todos eles, Sumayha Agha partilha raízes. Viveu apenas dois anos em Damasco, a terra do pai, onde permanecem inúmeros tios, tias e primos. Acaba de regressar à Califórnia, depois de dois anos e meio na Jordânia. “A minha formação é em media e fotografia. Decidi aplicá-la no trabalho humanitário. Mudei-me para acompanhar a crise dos refugiados sírios, na esperança de poder fazer alguma coisa”.

Estreou-se no trabalho de campo em 2012, na Libéria. No ano seguinte, juntava-se à associação Mercy Corps. “Voluntariei-me, e uns meses depois a base da associação, nos EUA, contratou-me como fotógrafa” Atualmente, está a finalizar três projetos sobre a crise dos refugiados, dois para a Mercy Corps, e um outro para a Zoa, organização holandesa. Pelo caminho, mantém contacto com com alguns dos fotografados. “Há uma família numerosa no campo de Zaatari que tenho visitado ao longo dos últimos anos. Acabei por documentar o crescimento das crianças”.

O desafio prossegue no campo de Azraq, morada provisória do craque Faysal. É aqui que ensina rapazes a jogar à bola. E que o lenço que pertencia a um amigo que morreu na Síria se confunde com o equipamento de treino. Sempre na cabeça.

maria.r.silva@sol.pt