Passou mais de um ano desde a queda do Grupo Espírito Santo (GES). Qual foi, afinal, o seu envolvimento nos acontecimentos que culminaram nesse colapso?
A partir do momento em que passei a ter acesso ao órgão superior do GES, apercebi-me da excessiva centralização das decisões no Dr. Salgado e da falta de escrutínio. Muitas vezes, as decisões eram comunicadas depois de já executadas, não havia colegialidade. O Dr. Salgado chegava aos conselhos e dizia o que tinha decidido fazer. Era uma governance que não podia aceitar.
Sempre foi assim?
Eu só entrei para o Conselho Superior do grupo no final de 2011, início de 2012. Havia já características de que não gostava muito, mas eu não estava no Conselho. Depois, fui percebendo gradualmente que a governance era inaceitável.
Em que momento decidiu tomar uma atitude de confronto?
O desagrado reforçou-se muito ao tomar-se conhecimento público da liberalidade recebida pelo Dr. Salgado de um cliente [14 milhões de euros, do construtor José Guilherme]. Considerei impróprio e passível de censura e reprovação interna. A partir desse momento promovi um conjunto de diligências para alterar a governance, o que só era possível com o afastamento do Dr. Salgado.
É nessa altura que o seu nome aparece na calha para a sucessão.
Isso não é verdade. Não estava ninguém na calha para suceder ao Dr. Salgado porque ele gostaria de ficar no lugar até morrer. Nunca há sucessores na calha de pessoas com o perfil do Dr. Salgado. Na altura, tentou-se confundir as duas coisas. Disse-se que eu estava numa mera luta de poder e que a única coisa que pretendia era substituir e ter o poder de outra pessoa. É absolutamente falso.
Teve apoio de outros membros da família para mudar a governação do GES?
Zero. Nada. Comecei em 2012 e 2013 a tentar convencê-los a alterar a governance. Não fui acompanhado no quadro institucional por qualquer membro dos órgãos sociais, nem no âmbito familiar por um único membro da família. Fiquei isolado, até hoje.
Porque não o apoiaram?
As pessoas da minha família decidiram pôr os interesses à frente dos valores. O afastamento do Dr. Salgado poderia pôr em causa todo o status quo. Tudo poderia desmoronar-se. A família Espírito Santo estava habituada a viver numa zona de conforto e infelizmente ainda hoje não compreendeu que, para além das mordomias facultadas pelo Dr. Salgado, deveriam prevalecer os valores da seriedade, da retidão e da integridade.
Houve alguma altura em que acreditou que seria possível mudar?
Tive a ingenuidade de pensar que a minha família seguiria o outro caminho, de colocar os valores à frente dos interesses. Ainda assinaram um documento que fiz a pedir a saída dele – mas depois colocaram-no num cofre, foram avisar o Dr. Salgado e deram-lhe um voto de confiança.
O que aconteceu então?
A primeira coisa foi uma tentativa de me porem na rua. Foi convocado um conselho de administração para me demitir. Só não foi levado às últimas consequências porque eu disse que iria tomar atitudes mais drásticas sobre um conjunto de informações. As pessoas tiveram receio e recuaram, com a condição de abrir um processo de sucessão e mudarem a governance. Mas não cumpriram.
Alguma vez pensou em demitir-se?
Eu demiti-me de todos os cargos no grupo, muito antes dos outros, e depois no BES.
Mas e no final de 2013, quando diz que se apercebeu da situação?
Nessa altura, demitir-me já não alterava absolutamente nada. Tinha a consciência limpa. Pensei sair do grupo uns anos antes, apesar de não imaginar que isto pudesse ter chegado onde chegou. Pensei várias vezes em ir embora.
Por que não o fez?
Muitas pessoas disseram, na altura, que não podia virar as costas ao grupo e que devia continuar. Acabei por ficar. Mas não precisava do grupo para absolutamente nada.
Qual é o seu relacionamento hoje com os outros membros da família?
Quase inexistente, para não dizer zero, para minha grande mágoa. Digo-o com amargura, mas a reação familiar neste desenlace é uma desilusão e uma grande lição de vida.
A sua família culpa-o?
Sim. Ainda hoje predomina o entendimento familiar de que a minha oposição ao Dr. Salgado foi a alavanca do desmoronamento do grupo – o que não é verdade. Estando ou não lá, desmoronar-se-ia exatamente da mesma maneira. A minha família acha que, se eu não tivesse feito o que fiz, passávamos entre os pingos da chuva, a assobiar para o lado. Continuávamos numa zona de conforto, usufruindo de um conjunto de privilégios que não merecíamos, prejudicando terceiros. Mas quanto mais tempo passasse, maior seria o número de investidores e clientes lesados. Isso é um grande choque para mim.
Acha que a família o vê como um traidor?
Acho que sim, que sou visto como um traidor.
Uma persona non grata?
Com certeza, sobretudo para a família que estava nos lugares de cúpula. Há muitos membros que não têm qualquer responsabilidade, mesmo nas novas gerações, que sofreram imenso com isto e é gente boa como qualquer outra.
Não haveria qualquer hipótese de salvar o grupo?
Poderia salvar-se o Banco Espírito Santo, mas seria praticamente impossível ter salvo o GES. Para isso teria sido necessário haver a alteração da governance em tempo útil, que não houve. E não era preciso ser comigo, poderia ter sido com qualquer outra pessoa. Se o grupo enfrentava uma série de problemas não podia ser a própria pessoa que os criou a resolvê-los.
Salgado manipulava a família?
Com certeza. Não nego que era uma pessoa extremamente poderosa. Sabia usar muito bem os meios que tinha ao seu dispor na classe empresarial, política e na comunicação social. Esse poder que exerceu durante décadas permitiu-lhe reforçar sem reservas a influência na família. Teve apoio incondicional, sem uma única exceção, e esse apoio manteve-se nos meses que antecederam o colapso do grupo.
Ainda hoje há esse apoio ao Dr. Salgado?
Ainda se faz sentir, de uma forma escondida e velada. Infelizmente, os membros da família não mostram capacidade cultural para assimilar a gravidade dos atos praticados por quem os representava. Ainda hoje não me apoiam. Não sei se me acham traidor – há pouco disse que sim, mas talvez seja excessivo. Quando o Dr. Salgado teve o desplante de dizer que iria defender a honra e o bom nome da família, depois de ter destruído um património de mais de 100 anos de reputação, credibilidade e honestidade, tentei junto de muitos elementos dizer que ele não tinha qualquer autoridade para fazê-lo. Continuei sem qualquer apoio.
Está de relações cortadas com a família?
Não é de relações cortadas, mas não falam comigo.
Qual foi a última vez que esteve com o seu primo?
Cruzei-me com ele num restaurante, no ano passado.
Falaram-se?
Não.
Admite voltar a ter uma relação familiar com ele?
Sabem que a resposta é óbvia: não.
Foi acusado pelo Banco de Portugal de negligência, enquanto administrador do BES, por falhas no sistema de gestão e análise de risco. Na sua defesa, salienta a atitude colaborante e de prestação de informações. Quando percebeu que a família não o apoiava, no final de 2013, qual foi a relação que estabeleceu com o BdP?
Sobre isso, a única coisa que posso dizer é que o que eu fiz mais ninguém fez. Informei o BdP, entreguei mais de 30 documentos, e com isso pus a minha carreira em risco pois foram convocados conselhos de administração no BES para me porem na rua. Houve uma segunda tentativa para me demitirem, já mais em 2014 e – justiça lhe seja feita – foi o BdP que o impediu. Mas a ideia de que eu ajudei o BdP e que por isso o supervisor tem uma atitude diferente comigo é de gargalhada. Qualquer administrador de uma sociedade, nomeadamente de um banco, está obrigado ao dever de diligência. Mesmo que não pratique nenhum ilícito, se não se opõe, se não denuncia, passa a cúmplice. Foi exatamente isso que eu fiz.
Que informações foram essas?
Não me posso referir a elas porque estão em segredo de justiça, mas algumas delas são absolutamente decisivas para a compreensão que o BdP teve depois dos efetivos responsáveis por um conjunto de atos. Portanto, tenho a consciência totalmente tranquila. E mais: fui o único. Mais ninguém no BES fez o que eu fiz, que fique bem claro.
Qual foi a reação do BdP?
Tentou resolver o problema da forma mais ordeira e civilizada possível. Acontece que nessa altura – a legislação já mudou – a retirada de idoneidade era um processo moroso.
Mas o problema era também de falsificação das contas. O que toda a gente se pergunta é: depois do BPN, como foi possível o BdP não se ter apercebido mais cedo?
Não concordo com essa visão. Está nos tratados de auditoria internacionais: quando nas instituições financeiras o dolo é praticado ao mais alto nível, em conjunto, é muito difícil detetar essas situações. Não é para eximir o BdP de responsabilidades, mas foi o que se passou.
‘Quero recuperar o nome da família’
Num Conselho Superior de Janeiro de 2014, em que já se sabia das contas da ESI, Ricardo Salgado alegou que o grupo tinha criado ‘um monstro’ – a dívida -, que estava a dar cabo do grupo porque já não era possível emitir mais dívida. Como encarou essa explicação?
Vejam o que o commissaire aux comptes disse que andava a fazer desde 2008, a falsificação das contas, e comparem. Acredito profundamente que Machado da Cruz está a dizer verdade. É curioso que só começou a haver gravações das reuniões do Conselho nessa altura e ainda por cima foram dadas à opinião pública. Só se ouve dizer: ‘foi uma grande surpresa, estava tudo desorganizado e apareceu um monstro que não conhecíamos, como é que o commissaire aux comptes fez uma coisa destas?’.
Perante essas falhas contabilísticas e omissões, havia ou não alternativa à resolução do BES?
Se a minha família tivesse tomado a decisão correta na altura em que a propus, o BES ainda hoje existia. E não se tinha prejudicado da maneira que se prejudicou os acionistas do BES, os obrigacionistas e por aí fora. Mas na altura em que se deu a resolução, já não havia outra solução, era a única possível.
Ricardo Salgado acusou-o de ser cúmplice do Governo e do BdP na solução que foi encontrada.
Isso é um argumento um pouco de gargalhada, tentar-se arranjar culpados políticos. Nem o primeiro-ministro nem o governador têm culpa da situação que se criou no grupo, como é óbvio.
A certa altura no Conselho Superior, decidiram fazer todo o tipo de diligências possível, junto do Governo, do Presidente da República e de Durão Barroso para pressionar a obtenção de um financiamento.
O Governo – este e espero que todos – tem o entendimento de que o dinheiro dos contribuintes não serve para andar a acudir aos desmandos das gestões privadas.
Esse pedido teria viabilidade?
Não. A que título é que se iria fazer isso? Tínhamos a ESI, a Rioforte, a ESFG e o BES. Imaginem que há um prédio de quatro andares e alguém pegou um fogo ao andar de cima, que era a ESI. Tinha de se mandar retirar a pessoa que pegou fogo e mandar para lá bombeiros. E se os bombeiros apagassem esse fogo, o andar de cima ficava bastante chamuscado, mas era capaz de se ter salvado o terceiro, o segundo e o primeiro andares. Como quem podia decidir não quis, essa mesma pessoa ficou lá e portanto pegou fogo ao terceiro andar, ao segundo e ao primeiro. Arderam todos os pisos, tudo culminou na resolução.
Foi afetado com a medida de resolução?
Não. Mas eu não tenho muito património. Não se constitui grande património mesmo quando se tem ordenados mais elevados. E não estou a fazer demagogia.
Tem contas congeladas no BES e sofreu algum arresto?
Como qualquer administrador do BES, o saldo que tinha na conta ficou lá. De resto, não tenho mais nada, porque também não tinha muito mais por onde ter. Não se fica rico mesmo a ganhar bem. Prefiro olhar para o espelho e sentir-me uma pessoa normal e séria do que ter acumulado dinheiro de forma ilícita.
Sente-se com mágoa ou vergonha por ter o apelido Espírito Santo?
Não. Acho até que posso ser das poucas pessoas a recuperar o nome Espírito Santo no futuro, através do meu trabalho e da minha profissão. É o que tentarei fazer. E há muitas pessoas na minha família que não têm qualquer responsabilidade pelo que se passou. Não é um problema sanguíneo: houve outras pessoas que se comportaram tão mal ou pior e que não são da minha família. E o nome Espírito Santo foi honrado, com grande credibilidade e reputação, ao longo de muitas gerações de gente séria e trabalhadora. O GES, antes da liderança de Ricardo Salgado, teve sempre uma cultura colegial. O meu avô e os meus tios-avós funcionavam em conjunto com outras pessoas. O senhor Rogério Silva, que foi o braço direito do meu avô, entrou como paquete no banco. Trabalhava durante o dia e estudava à noite, e chegou a vice-presidente do conselho de administração. Havia colegialidade. Tudo isso foi destruído nos últimos dez anos.
Acredita na recuperação do nome Espírito Santo?
Como membro da família, nos anos que tenho pela frente, se tiver saúde, tentarei tudo o que puder para relançar a recuperação do nome, da família e do grupo empresarial. Se conseguir fazê-lo, irá para além da minha morte, com outras gerações.
O que está a planear?
Neste momento, é prematuro concretizar. Se tiver possibilidade e condições, e acredito que sim, quero ajudar ao recomeço da reconstrução dessa credibilidade. Claro que isso só se repõe conseguindo soluções que possam ressarcir os muitos que confiaram no nosso nome e na nossa credibilidade, que estão agora numa situação de enormes dificuldades.
‘Ficarei pelo menos três ou quatro anos no Haitong’
Como avalia a venda do BESI ao Haitong Bank?
A operação foi um grande sucesso. O BESI foi comprado acima do seu valor contabilístico. Haverá um impacto muito positivo nos rácios de capital do Novo Banco, mais a liquidez. Além dos 379 milhões de euros [valor que o Haitong despendeu pelo BESI], há o pagamento, a curto prazo, das linhas bancárias que o Novo Banco tem aqui. Estamos a falar de mais 750 milhões de euros. Portanto, foi uma operação muito boa para o Novo Banco e extraordinária para o BESI.
Qual é a grande meta?
O Haitong comprou o BESI para o transformar num banco de investimento de primeira classe a nível mundial no espaço de dez anos. O futuro será extraordinário. E vamos ter condições de desenvolvimento que nem nos melhores tempos do nosso anterior acionista tínhamos.
Já está a desenhar o plano de negócios?
Sim e é extremamente ambicioso. A primeira parte do plano tem metas até 2018, como o banco atingir capital, no mínimo, de cerca de 1,5 mil milhões de euros. Neste momento, temos cerca de 400 milhões. Queremos ter um total de ativos na ordem dos 14 a 15 mil milhões de euros, quando nesta altura temos cerca de 3,5 mil milhões. E prevemos um resultado entre os 200 e os 250 milhões de euros, um montante que nunca tivemos e só com outra dimensão e atividade conseguiremos. Isso passa por algumas aquisições.
Qual vai ser o foco estratégico?
Além da forte presença na Ásia, o banco vai ter a capacidade de expandir as operações para o EMEA [Europa, Médio Oriente e África], Índia e Américas. A nossa imagem corporativa será uma ponte: a ligação entre a Ásia e o mundo ocidental. Uma das apostas passa por desenvolver a área de asset management, de private banking, que é extremamente importante porque tem receitas menos voláteis e é sinergética com outras áreas.
Ficará no banco até ser atingido esse plano?
Não consigo dizer quantos anos, mas ficarei pelo menos três ou quatro, sim.
A sede do banco ficará em Lisboa?
Não posso garantir que ficará sempre, mas para já ficará. É evidente que as praças financeiras de Londres e Nova Iorque tenderão a ter uma importância maior, e é onde estamos a fazer maior investimento.
Como é a sua relação com o futuro acionista?
É emotiva. Já nos abraçamos. Conhecemo-nos há um ano. Eles ficaram absolutamente impressionados com a equipa, que ombreia em termos de qualidade com qualquer banco global.
Recebeu um voto de confiança?
Sim, desde muito cedo. Primeiro eu e depois os meus colegas.
Pediram-lhe explicações sobre o passado?
Nunca. Tiveram sempre o respeito e a delicadeza de não fazer perguntas sobre assuntos do foro familiar. Só falamos sobre a resolução e as consequências.
A venda do BESI vem concluir a sua atuação como representante da família Espírito Santo?
É verdade que esta transação iniciou um novo ciclo na minha vida. Mas no meu horizonte permanece a vontade e a intenção de, através do meu desempenho profissional, vir a repor no seu devido lugar o nome da família Espírito Santo.
