A esquerda defende uma subversão constitucional: vale tudo pelo poder?

1. Uma mentira dita muitas vezes converte-se em verdade. Assim se passa com as asneiras e os erros: ditos muitas vezes, repetidos até à exaustão tornam-se em frases certeiras ou em verdades incontestáveis. Foi o que aconteceu na análise dos resultados eleitorais do passado domingo feita pelos dirigentes do PS – devidamente coadjuvados por alguns…

2. A resposta é simples: claro que não. Caso António Costa tivesse ganho por maioria relativa, mesmo que muito próximo do empate técnico, os mesmos comentadores estariam a qualificar tal resultado como uma vitória estrondosa do PS ou então uma vitória sofrida, mas mais do que suficiente para Governar. Foi sempre assim na História – e parece que, quanto à influência do PS na sociedade, nada muda. Mais: mesmo verificando-se o resultado obtido pela coligação PSD/CDS, se à frente do PS estivesse outro militante que não se chamasse António Costa, o tratamento dado por certos comentadores (a maioria) será visceralmente diferente. A esta hora, o líder do PS derrotado, que não se chamasse António Costa, estaria a ser altamente pressionado para se demitir. Bastaria ligar a televisão e encontrar mais um comentador, mais um militante do PS, mais um líder de uma estrutura local do PS – a exigir a demissão imediata do líder. Porém, como o líder do PS se chama António Costa, tudo é permitido. Até perder um ato eleitoral que os socialistas davam por garantido. Tudo pelo António Costa, nada contra o António Costa – parece o lema que vigora, por estes dias, no Partido Socialista. Há muito descaramento – e poucochinha lucidez.

3. Posto isto, vamos então ao problema dos cenários de governabilidade. Confessamos que nos sentimos algo perdidos nesta temática por uma razão: é que as análises feitas aos resultados eleitorais há muito que desertaram da sensatez e do realismo – em direção ao mundo da fantasia e da pura ficção. Dizer-se que o PS, após perder as eleições, pode formar Governo com uma frente de esquerda constituída por bloquistas e comunistas ou é uma piada de mau gosto, ou é o gosto pela fantasia e pela ficção nacional. Talvez seja um enredo para substituir uma das telenovelas de prime-time da TVI ou da SIC: fica mais barato e é igualmente excitante ver como António Costa, o outrora cavaleiro andante da esquerda portuguesa, se rende a um amor impossível com o PCP e com o BE. Ainda para mais, este seria um amor trágico – não para os seus protagonistas, mas sim para todos os portugueses.

3. Sem efabulações ou fantasias, vamos ao que interessa. Primeiro, a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 187.º, sobre a competência do Presidente da República na formação do Governo, estatui o seguinte: “ O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais”. A escolha do Governo é, neste sentido, uma faculdade constitucional exclusiva do Presidente da República, o qual goza de uma margem de discricionariedade para o fazer. Até ao momento, Cavaco Silva apenas excluiu um cenário: o de um convidar uma personalidade não eleita para a Assembleia da República, ou seja à margem do Parlamento e contra as direções partidárias, para formar Governo, o qual poderia ou não ser reconhecido pela maioria parlamentar – os chamados governos de iniciativa presidencial. Esse é o único cenário já excluído por Cavaco Silva.

4. Será então que o Presidente Cavaco Silva poderá indigitar António Costa como Primeiro-Ministro de um Governo com BE e PCP? Não. Este cenário seria uma afronta à Constituição da República Portuguesa – que Cavaco Silva jurou cumprir e fazer cumprir – e politicamente insustentável. Vejamos porquê.

6. Primeiro: um Governo liderado por António Costa, com BE e PCP, é manifestamente inconstitucional. Porquê? Escrevemos nas linhas anteriores que a formação do Governo é uma competência própria do PR, no exercício da qual o PR goza de uma margem de discricionariedade. Discricionariedade não se confunde com arbítrio. Há limites à possibilidade de escolha do Governo por parte do Presidente; designadamente, os limites da chamada Constituição Material.

7. A nossa Constituição não se esgota no conjunto de regras constantes do “livrinho” da Constituição e que qualquer um pode ler. Essa é a Constituição em sentido formal, a qual é aprovada por uma maioria especialmente qualificada e é bastante rígida, ou seja, avessa à mudança. Para além destas regras, há outras que, embora não escritas, detêm tanta relevância como as regras escritas – são precisamente as regras da Constituição Material ou, noutra formulação complementar, da Constituição Não-oficial (como crisma, em termos felizes, o Professor Paulo Otero).
Pois bem, para interpretarmos o artigo 187.º da Constituição, temos de apurar se não há uma regra que limita a discricionariedade do Presidente, na interpretação do que seja “resultados eleitorais”, com vista à nomeação do próximo Governo. E a resposta é positiva: as regras da Constituição não-oficial complementam a regra da Constituição oficial.

8. Pois bem, há uma regra não-escrita no Direito Constitucional Português, segundo a qual o partido ou a coligação de partidos que obtenham maior número de votos e maior número de mandatos é sempre parte da solução governativa. Sempre: é inadmissível, à luz da Constituição Material, que o partido com um mais amplo apoio popular, expresso nas urnas, seja excluído do Governo. Podemos, destarte, afiançar que o empossamento de um Governo liderado pelo partido derrotado (o PS), mais a esquerda radical, seria uma subversão da normatividade constitucional. Seria um ato político do Presidente da República contra constitutionem, isto é, contra a Constituição. Mesmo que a extrema-esquerda e o PS tenham maior número de mandatos, a solução governativa não pode excluir a força política que reuniu o mais amplo apoio do eleitorado – no caso concreto, a coligação “Portugal à Frente”.

9. Poderão existir arranjos institucionais que redundem em coligações pós-eleitorais que não sejam contrários à Constituição? Poderão: pense-se, por exemplo, no caso de uma coligação dos partidos do arco da governação, abrangendo PSD, CDS e PS, ou no caso de uma coligação surreal entre PSD, CDS e PCP ou BE. É sempre necessário que a força política que obteve a maioria dos votos expressos pelo eleitorado seja parte da solução governativa. É a única forma de assegurar a legitimidade efetiva ou material do Governo.

10. Analisados os pressupostos constitucionais, passemos a analisar os pressupostos políticos. Estes são ainda mais clarividentes: o Presidente da República encontra-se politicamente vinculado a encontrar a solução que garante maior estabilidade política, parlamentar e extra-parlamentar. Ora, uma coligação formada por um PS fragilizado, com um líder que em breve verá a sua liderança desafiada, mais a extrema-esquerda seria a estabilidade instável. Do ponto teórico, asseguraria a estabilidade política, pois esta solução de Governo extremista reúne o apoio da maioria parlamentar.

11. Todavia, do ponto de vista prático, seria o caos total: alguém acredita que o PS, os votantes do PS, os dirigentes do PS, os membros do Governo do PS – conseguiriam debater, à mesa do Conselho de Ministros, a política externa portuguesa? O PS, europeísta e moderadamente atlantista – o PCP e o BE com posições anti-americanas, anti-Nato, anti-Alemanha, anti-tudo e com a singularidade do PCP defender a ditadura da Coreia do Norte? E como seria com a Segurança Social? António Costa a defender a redução da TSU para financiar o consumo dos portugueses – o PCP e o BE a assumirem-se contra a descapitalização da Segurança Social, logo, frontalmente contrários à proposta do PS! E como seria com o défice – o PS diz que cumpre o Tratado Orçamental; o PCP e o BE dizem que querem acabar com o euro, passar para o escudo novamente (não dizem é o sítio onde vão buscar dinheiro para evitar que os portugueses passem miséria no período de transição entre moedas) e rasgar todos com os compromissos assumidos com a União Europeia e com os credores?

12. Como podemos verificar, de facto, seriam Conselhos de Ministros muito animados, com muita diversão e discussão à mistura. Mas pode Portugal dar-se ao luxo, num momento histórico, que irá determinar quem somos e quem seremos, que irá determinar que Portugal entregaremos às gerações futuras – entregar-se à estabilidade instável? Seria uma irresponsabilidade do Presidente Cavaco Silva – que (temos a certeza) não a irá cometer. Por outro lado, os portugueses que votaram no PS porventura jamais votariam no PCP ou no BE – e até rejeitam qualquer Governo com comunistas ou com trotskistas. Quem votou PS, votou ao centro. Donde, inexistem quaisquer fundamentos de legitimidade eleitoral efetiva de um hipotético – e só hipotético! – Governo frentista de esquerda.

13. O que é inacreditável – diremos mesmo, lamentável – na democracia portuguesa, depois de os portugueses terem trabalhado e sofrido tanto para reerguer a nossa Pátria e podermos aspirarmos à felicidade individual e coletiva, é que a elite de esquerda que domina o espaço público anda horas, dias, talvez semanas, a discutir efabulações e fantasias para ver se se agarram ao poder. Não tenhamos dúvidas: discutir um Governo liderado por António Costa, com PCP e BE, é o mesmo que acreditar que a Gata Borralheira vai sair à meia-noite e transforma uma abóbora num Castelo com um príncipe encantado. E estamos certos que António Costa não é a Cinderela – nem o PCP e o BE são príncipes. Portanto, podemos acabar com a efabulação e regressar à realidade?

joaolemosesteves@gmail.com