José Manuel Barata-Feyo: ‘Nasci com política no biberon’

Esteve exilado em Paris, onde ganhava dinheiro a mergulhar para o Sena, cobriu guerras em África e na Ásia, de Angola ao Paquistão. Mas foi a de Timor que não conseguiu esquecer. José Manuel Barata-Feyo, o jornalista que todos recordam da Grande Reportagem, acaba de lançar A Última Missão, o seu primeiro romance, sobre a…

Acaba de lançar A Última Missão. Porque se quis estrear agora no romance? 

Nos anos 80 publicámos uma série de livros na Grande Reportagem da RTP. E eu e o Miguel Sousa Tavares dissemos: o jornalismo é uma chatice, estamos encurralados nos acontecimentos, um dia havemos de escrever um romance. Foi uma espécie de jura. Ele já me leva uns romances de avanço e dois milhões de exemplares. Tinha esse peso na consciência.

O livro decorre em Timor de 1999. Porquê?

Enquanto português tive uma vez e meia vergonha na vida. A meia foi quando, ironia da história, na cimeira da CPLP de Timor, a Guiné Equatorial, essa ditadura abominável, entrou para a CPLP no meio da vergonha que foi a atitude do Governo português. A vergonha mesmo a sério foi quando fiz uma reportagem sobre as circunstâncias que rodearam a descolonização de Timor, reportagem que me valeu  dissabores e perseguições políticas durante anos. Aquele massacre – segundo Noam Chomsky, o segundo maior do séc. XX a seguir ao Holocausto – foi da responsabilidade do governo de Lisboa e, sobretudo, do Presidente da República, o General Costa Gomes e, no terreno, dos Comandos das Forças Armadas Portuguesas que, por inércia, e com o pretexto de não receberem instruções de Lisboa, deixaram que a guerra civil se desencadeasse. Devia aos timorenses este livro. Quando vejo um timorense, baixo os olhos de vergonha. 

Até que ponto tudo isto lhe é familiar?

Nunca fiz o serviço militar mas fiz, na minha vida profissional,  guerras em África e na Ásia. Não a guerra que se vê dos hotéis mas a guerra que se vê no terreno, com pessoas que morrem ao nosso lado em circunstâncias em que também nós podemos morrer. Não há razão para a bala evitar o jornalista.

Escreve sobre um serviço secreto que enviaria comandos clandestinamente para a guerra, neste caso a de Timor. O que é aqui real e o que é ficcionado?

Em 1999 alguém me telefonou: pretendia ter estado em Timor, num Comando das Forças Armadas portuguesas, enviado para lá clandestinamente com o objetivo de travar os massacres de que os timorenses estavam a ser vítimas. Assim que se decidiu depois da democratização de Jacarta fazer o referendo no âmbito da ONU, o exército indonésio começou a contra-atacar, obrigando à deslocação das populações. Portugal tinha recebido um apelo do Konis Santana, o comandante das FRETILIN, a pedir ajuda. Ajuda que negou (oficialmente, pelo menos). Se há uma relação entre isso e o envio desse Comando, não sei. Como jornalista não posso certificar o envio desses comandos  ou a existência desse serviço militar secreto em Portugal na altura e hoje. Mas é a minha íntima convicção. Como jornalista, posso certificar que esse serviço existia antes do 25 de Abril porque em vários conflitos africanos, como a guerra do Biafra e no ex-congo Belga, no Zaire, os comandos portugueses atuaram clandestinamente.

Contou em romance o que não pôde contar como jornalista?

De certo modo. Não apaga a história mas traz-me algum consolo. Se esta ação existiu foi uma espécie de redenção de Portugal. Como jornalista também podia, se calhar, ter feito mais. É uma forma de me redimir.

Refere muito a nossa baixa autoestima…

Temos variadíssimos problemas estruturais na área da cultura, tendo o maior e pior que ver com o grande drama de Portugal no momento: a falta de autoestima. Orwell dizia que sem passado não há presente, sem presente não há futuro, logo sem passado não há futuro. Ao negarmos a história como temos vindo a fazer, sobretudo desde o 25 de Abril, quando uns salteadores de extrema-esquerda ocuparam as cátedras de História nas universidades portuguesas, reduzimos quase 900 anos de história aos 48 de ditadura. Não faz sentido. A história estava lá muito antes e continua muito depois, estamos a fazê-la aqui neste momento. Ao fim de 14 anos de guerra fizemos uma cimeira com os chefes de Estado do que se chama agora os PALOP passado um ano das independências. A França e a Argélia demoraram 20 até o fazerem. Na primeira cimeira em Cabo Verde, chegaram uns pedidos a Belém, era na altura presidente o Ramalho Eanes, para que não se esquecessem de levar bacalhau. Quando se anda a comer bacalhau juntos durante meio milénio as coisas ficam. Temos um relacionamento com África que mais nenhuma ex-potência colonial tem. Devo muito ao 25 de Abril, não é por acaso que os meus filhos se chamam Maria, Francisco e Ana [MFA]. Mas não foi uma revolução perfeita.

Mas existem revoluções perfeitas?

Não. E não temos que fazer de conta que a nossa o foi. A revolução francesa teve as luzes, a Declaração dos Direitos do Homem, mas teve o terror como contraponto. Tal como não se pode defender o terror na revolução francesa, não se pode, no  25 de Abril, defender coisas como o modo como descolonizámos. O Savimbi, numa entrevista que me deu no meio do mato, disse-me ter ido para os Acordos de Alvor com uma grande preocupação, por saber como os franceses tinham negociado os Acordos de Evian a seguir à independência da Argélia, para defender os interesses dos pied-noir [franceses originários da Argélia], e estava convencido de que Portugal ia para lá na mesma posição. Mas não reivindicámos nada para o milhão de desgraçados que veio de África com uma mão à frente e outra atrás. A descolonização foi o calcanhar de Aquiles da nossa revolução e encontra o seu expoente máximo no holocausto que foi Timor.

Nasceu em 1947, na Soalheira. Aos 17 anos exilou-se em Paris. Como foi? 

Sozinho, contra a vontade da minha família, a salto. Comecei a ter chatices com a PIDE muito novo. Fui detido por meter cartas abertas do General Humberto Delgado por baixo das portas, em Castelo Branco. Meti uma por baixo da porta do chefe da Polícia quando ele ia sair para tomar café depois do jantar. Dois dias depois a PIDE foi buscar-me. Mais tarde, aos 17 anos, acharam que estava ligado à LUAR. Mas nunca estive, como nunca estive em nenhum partido, sempre fui muito anarquista. Quando a LUAR tentou ocupar a Covilhã  detiveram-me pela segunda vez. Fui para Paris por razões políticas, não pela tropa. Tinha uma família extremamente politizada, uma parte próxima do antigo regime outra da oposição. Nasci com política no biberon.

Em que espetro estavam os seus pais?

Oposição. Eram contra o regime mas também eram contra eu me ir embora. Não foi fácil. Nem a viagem nem os primeiros tempos. Foi um militante do Partido Comunista que me levou à fronteira e me ensinou por onde a passar clandestinamente, em Vilar Formoso. Depois, com um passaporte falso, a grande angústia foi na fila para entregar o passaporte. Tinha a sensação de que os polícias sabiam que o passaporte era falso, mas lá ia avançando. Dos momentos mais terríveis que pode haver. Até que os polícias, quer do lado espanhol, quer do lado francês, olharam para o passaporte,  puseram um carimbo e eu entrei. 

Como arranjou dinheiro para ir?

Quase não tinha dinheiro. Em contrapartida, o que me faltava de dinheiro sobrava-me de dor de dentes. Fiz sete quilómetros a pé, de madrugada, com uma dor de dentes abominável. Um dentista, amigo do meu pai, disse-me: esse dente tem de ser arrancado. E arrancou. Mas quando me passou a anestesia percebi que não era aquele dente que me doía mas o do lado. Só horrores. Quando cheguei a Paris, gastei o pouco dinheiro que tinha, uns cem francos – três contos, quinze euros – num táxi para a única morada que tinha, de um colega de Castelo Branco, que vivia em Villejuif, nos arredores de Paris. Quando cheguei a porteira disse: ele já não mora aqui há muito tempo, foi-se embora. Fiquei ali, a 20 km de Paris, sem dinheiro e sem conhecer ninguém.

Como se desenrascou?

 Acabei por ir a um café, no Quartier Latin, o Notre Dame, onde iam muitos portugueses. E depois foi como as cerejas. Naquele tempo a solidariedade era uma coisa que não só se professava, como se praticava. Dormi no chão de quartos de alguns portugueses, debaixo das pontes do Sena e ganhei dinheiro saltando para o Sena, da Pont Neuf. Se alguém quiser candidatar-se, que nunca salte contra a corrente que é como saltar para uma chapa de cimento. Tinha um cartão que dizia: cada mergulho cinco francos. Os turistas achavam graça, davam-me e eu saltava. Não é uma água muito limpa. Nunca vi lá ninguém a mergulhar. Foi uma ideia minha. Não sabia fazer nada. Não tinha jeito para desenho, não sabia cantar. Isto, depois de uma experiência numa fábrica de ladrilhos, de cimento, com dois centímetros. Saíam de umas maquinetas diabólicas que os despejavam nuns tabuleiros e tínhamos que os virar para ficarem todos do mesmo lado. Depois levavam com um rolo que tinha cola por cima e ficavam colados no papel. Éramos pagos à peça. Eu não tinha calos nos dedos, comecei logo a deitar sangue, a experiência foi muito má. Entre isso e dar mergulhos para o Sena… Dava mergulhos para o Sena. A fome aguça o engenho. A fome e o sono. Desmaiei uma vez no metropolitano em Paris, de fome e de sono.

Tinha estatuto de refugiado?

Não. O meu irmão, na Bélgica, tinha. Eram uns lordes, essa malta de Bruxelas. Podiam andar por onde queriam. E eu com um passaporte falso. Ainda hoje, quando passo uma fronteira, há qualquer coisa no coração que diz: uma fronteira, atenção! 

E como chega ao jornalismo?

Foram várias etapas, uma delas a vender jornais ingleses em Paris. Fiz várias coisas… Fui empregado de mesa, numa pizzaria. Puseram-me uma camisola às riscas e era suposto levar a pizza na mão com o braço levantado cantando ‘O Sole Mio’. Assim que levei a primeira pizza o gerente disse-me: estás dispensado de cantar. Não podia ganhar a vida assim. Não dando para mais nada, dei para jornalismo. 

Lembra-se do seu primeiro texto?

Foi na Lire, uma crítica a um livro do Camilo José Cela, San Camilo, 1936. A partir daí houve muitos textos e tive a sorte de alguns serem publicados em vários jornais europeus ao mesmo tempo. E depois, pronto, foi a minha vida profissional.

Como salta da crítica para o jornalismo?

Pediram-me. Não tinham nenhum espanhol debaixo do braço, escreve o português que o nome também dá para espanhol. Depois até para jornais japoneses escrevi, em língua inglesa. E começou a ser a minha vida profissional, que sofreu uma grande evolução quando deixei o New York Times News Service para ir para África de jipe em 1977 como jornalista freelancer.

Já tinha pensado ser jornalista?

Desde miúdo. O meu tio-avô Francisco Rolão Preto era jornalista, foi diretor do Revolução, proibido pelo Salazar. O meu grande sucesso jornalístico foi uma entrevista que fiz, por sugestão desse tio, a um miúdo da aldeia, o Alfredo, que tinha a minha idade, 12 anos. Fiz-lhe perguntas básicas. Qual foi o grande acontecimento em Portugal nos últimos tempos? Disse-me: a vitória do Benfica. E o homem que mais admiras? O Eusébio. O Diário de Lisboa, ou a República, já não sei, achou que era uma entrevista emblemática, de combate à ditadura, dava a ideia da ignorância em que vivíamos. E publicaram-na. 

Como passa para a televisão?

Ainda estive na rádio, na Radio France Internacional, nas emissões em língua portuguesa. Acho que gostavam de mim, saltei para assistente de diretor das emissões em língua estrangeira. Mais tarde, quando o Mitterrand ganhou as eleições – eu era muito amigo do seu filho – convidou-me para assumir a direção dessas emissões. Não aceitei. Talvez tenha sido uma burrice. Mas já tinha voltado para Portugal em 1980 – o que se calhar também não devia ter feito. Tinha ido para África com uma equipa  de televisão francesa, numa coprodução com a RTP, para fazer uma série de reportagens. E para as montar acabei por ficar e deixei tudo para trás: namorada, casa, viola, livros. Ficou tudo em Paris. Já não fazia sentido voltar. Quando se é novo a vida empurra-nos. E nós vamos contentes por aí fora, deixamo-nos arrastar pelas circunstâncias, só resistimos à corrente nalgumas coisas. À ditadura resisti, fui-me embora. 

Que viagem fez por África em 1977? 

Estive na África Ocidental e Central, todo o ano, como jornalista freelancer. Nunca lá tinha ido. Com um falso passaporte não podia viajar. E antes da revolução, mesmo com um passaporte português legítimo, não se ia a lado nenhum em África. Mesmo depois. Às vezes nos postos fronteiriços afastados não sabiam que tinha havido uma revolução e achavam que o português era um terrorista, imperialista, fascista, que comia criancinhas ao pequeno-almoço.

O que lhe fica desse ano?

As pequenas histórias. Fiquei na fronteira do Togo com o Benim, onde tínhamos  – ainda lá está, é um monumento classificado pela UNESCO – o forte São João Batista de Ajudá. Quando o abandonámos, em 1960, o embaixador deitou fogo ao forte e a um Citroën boca-de-sapo que lá estava. Reconstruíram tudo mas guardaram o Citroën queimado. As relações com Portugal eram más. Fiquei cinco semanas na fronteira. Cada vez que ia mandavam-me descarregar o jipe, e depois de tirar tudo mandavam-me carregar e escreviam no passaporte: proibido de entrar pela razão de estar proibido de entrar e punham-lhe um carimbo vermelho em cima. Só entrei ao fim de cinco semanas. Houve muitas chatices nas fronteiras. Voltei pelo Mali, cheguei à Argélia, estava perto de Marrocos, era um pulo até Ceuta, queria passar o Natal em Paris. Como não tinha visto para Marrocos fui até Argel, 900 quilómetros, para o pedir. Mas na Embaixada de Marrocos disseram-me que ali não davam vistos, havia um clima de guerra latente entre Argélia e Marrocos devido à questão do Saara Ocidental. 900 quilómetros até à fronteira, saí da Argélia, cheguei à fronteira marroquina e não me deixaram entrar. E não me deixaram voltar a entrar na Argélia. Fiquei sete noites na terra de ninguém, entre Marrocos e a Argélia, até que os argelinos me deixaram entrar. Cheguei a Paris na véspera de Natal de 1977.

E quando vem para Portugal?

Regressei de vez em 1980, depois das reportagens que fizemos na África ocidental, para a televisão, de jipe, pelas aldeias. Fui o primeiro branco a ser visto por alguns africanos, os miúdos fugiam e gritavam, como se estivessem a ver o demónio. Quando cheguei, estava a montar as reportagens, convidaram-me para diretor de informação da 2. Eu já era correspondente em Paris desde 1978, quando abriu o canal. E aceitei. Ao fim de dois meses e meio demiti-me. Puseram-me na prateleira, nos projetos especiais.

Porque se demitiu?

Não me conseguia entender com a forma como se fazia jornalismo, as redações estavam partidarizadas. E não estava de acordo com o entendimento que a administração tinha do serviço público de televisão. A RTP era o prolongamento do aparelho ideológico do Estado, a AD tinha ganho as eleições, havia um clima que não tinha que ver com o jornalismo mas com a militância política. E eu nunca fui militante político.

Como nasce a Grande Reportagem?

Eu dizia que se era para estar ali sem fazer nada, ia para Paris. E o diretor de informação, o Duarte Figueiredo, disse-me: gosta de reportagens, veio de África, faça aí um programa sobre coisas internacionais. Eram os cinco anos da Independência de Moçambique, fui para lá e fiz lá uma primeira reportagem. Nesse tempo, a Grande Reportagem era eu, a Fernanda Garcia, que era a estagiária, e metade do Artur Albarran, que estava na informação da 2 e a ajudar-me. A reportagem foi um sucesso tal que acharam que se podia fazer mais. E fez-se. Mas só durou três anos. Mataram-na no 25 de Abril de 1984. Ironia da democracia. 

Que reportagens o marcaram mais?

A reportagem sobre Timor é uma delas. Tal como a sobre Camarate. Não há uma prova de que tenha sido sabotagem. Convidámos dois peritos internacionais, exumaram-se os cadáveres, fizeram-se novas análises, peritagens aos destroços do avião.  Mas em vez de ser a história do homem que mordeu o cão foi só a história do cão que mordeu o homem. Em condições normais essa reportagem nem sequer teria ido para o  ar. Fizemos uma reportagem para provar que os relatórios oficiais estavam certos. Mas tinha-se criado um ambiente terrível no país à volta  disso, de pressão, ameaças…  Como os relatórios técnicos são aborrecidos e enfadonhos, com milhares de páginas, ninguém os lê. E nós, jornalistas, estendemos o microfone e transmitimos o que uma das partes diz, sem qualquer fundamento. Foi o que aconteceu com Camarate. Mas há outras reportagens que me marcaram. A das pinturas rupestres no Tassili foi a mais bonita que fiz. A sobre a guerra civil em Angola, que esteve na origem do fim da Grande Reportagem. Ou a guerra no Afeganistão. A RTP foi a única televisão a chegar a Cabul com os mujahidin. Era muito duro, largavam bombas butterfly  à noite, minas antipessoais, pequeninas, verdes, que caíam a borboletear, a neve cobria-as e, no dia seguinte, era preciso andar em cima dessa neve. Nunca fiz reportagem de guerra a partir dos hotéis. A não ser quando não se podia fazer de outro modo, como foi a chamada Guerra do Golfo. Segundo o New York Times foi: Militares 100 – Jornalistas 0. Não conseguimos saber nada daquela guerra. Onde estão as armas químicas? Onde está a célebre Guarda Republicana, de dez mil homens com blindados? Não nos deixaram ver nada. E nós, em vez de termos a honestidade de dizer ‘Não informamos porque não nos deixaram informar, não mostramos porque não nos deixaram ver’ andámos todos a inventar coisas.

A Grande Reportagem acabou em 84…

Por causa da reportagem sobre a guerra civil em Angola que fiz com a UNITA. Foi dura. Caímos em emboscada, os gajos dispararam muito perto, podíamos ter morrido todos, éramos cinco jornalistas, um do Observer, um do Figaro e três da televisão portuguesa, eu e a minha equipa francesa – nestas reportagens muito duras preferia ter uma equipa de pessoas que conhecia há muitos anos e sabia como reagiam em circunstâncias difíceis. Só por nabice é que não nos mataram.  Mas depois houve grandes pressões de Angola sobre os exportadores de coisas portuguesas para lá, para além de uma empresa do Rosa Coutinho e do Corvacho, que arranjava armas e mercenários para Angola. Eles pressionaram imenso o Governo do Bloco Central e o Mário Soares, que mo confessou pessoalmente, que estava rodeado de bestas, dixit ele. E foram dadas instruções à administração da RTP para proibir a reportagem. Esbracejei, reagi, escrevi um artigo violentíssimo no Expresso, e contrataram o [Manuel João] Palma Carlos para me por um processo disciplinar.  Veio-se a saber que teria um bónus de mil contos se me conseguisse despedir.

Mas a reportagem foi emitida meses depois.

Foi uma chinfrineira, apresentámos queixa no Conselho de Comunicação Social da Assembleia da República, os partidos tinham-se distraído, o conselho tinha poderes vinculativos e gente independente, como a Natália Correia, que disseram que a reportagem tinha de passar. Passou, mas com o jingle dos institucionais com uma voz que dizia: ‘O tempo de antena que vão ver é da exclusiva responsabilidade do Conselho de Comunicação Social da Assembleia da República’. Fizeram-se mais lutas pela liberdade de imprensa depois do 25 de Abril do que antes. Antes estava tudo travado. Depois não havia censura e do lado do poder político tinham a chamada legitimidade democrática. E o Bloco Central achava que com 70 e tal por centro dos votos tinha toda a legitimidade para fazer as coisas e o seu contrário. Na RTP tínhamos que ser os escravos do Governo. Era o que faltava. Suspenderam-me o programa, espalharam a redação e proibiram-me de entrar nas instalações durante 18 meses. Fiquei em casa sem poder fazer jornalismo e com o ordenado mínimo, com vista a ser despedido. A malta revoltou-se e fizemos a revista Grande Reportagem.

E ao fim de 18 meses voltou à RTP.

Mudou o Governo. E o Palma Carlos vai para presidente do conselho de administração da RTP e, acho que na véspera de Natal, fez um despacho: ‘arquive-se’. Com esse despacho se arrumou a vida de um jornalista e se justificaram 18 meses de suspensão e proibição de entrar nas instalações. É bonita a nossa democracia, não é?

E continua na RTP. Não quis sair?

Quando se começa um combate daqueles não é para largar a meio. Podia ter ficado calado, ter feito um protestozinho gentil, uma queixinha para o conselho de redação, mas escrevi e assinei com o meu nome. E arquei com as consequências.

E fundou a revista Grande Reportagem.

Com todos os jornalistas da Grande Reportagem na televisão e mais alguns notáveis: o Adelino Gomes, o Fernando Gaspar, o Zé Freitas e Silva e o Zé Júdice. Todas as semanas havia uma grande reportagem. E, já com complexo de culpa em relação a Timor, fazia com que o Ramos Horta tivesse uma coluna. Começámos em finais de 84, início de 85, e durámos seis meses. Éramos uma cooperativa de jornalistas, não tínhamos dinheiro, era a crise. Havia uns financiadores –  éramos independentes do ponto de vista editorial, que estava blindado – que acharam que já tinham perdido dinheiro que chegasse e acabou.

Mas recomeçaram. 

Para pagar uma dívida à PT. Quando foram instalar os telefones e os faxes da revista não estava lá ninguém da administração para assinar. Assinei eu. E não pagaram. Aquilo foi para tribunal, as intimações iam para a revista que já estava fechada, ninguém me preveniu, fui condenado à revelia. Tiravam-me um terço do ordenado da RTP. Toda a malta andava a descontar o que podia para me ajudar. Então um jornalista, o José Freitas e Silva, disse: vamos acabar com isto, fazemos um número da revista para pagar a dívida.  A Dom Quixote publicou e vendeu imenso, fez-se uma segunda edição, como se fosse um livro. Surgiu como um número único, um balanço dos anos 80. O nome pesava muito e as circunstâncias já não eram as mesmas: o país tinha saído da crise, as pessoas  podiam comprar. Vendeu-se tudo, penso que uma primeira edição de 30 mil exemplares e uma segunda de 40 mil. E o Nélson de Matos, da Dom Quixote, propôs-nos que continuássemos a fazer a revista, de três em três meses.

E porque deixou a direção da revista?

Estive 11 anos na prateleira da RTP. Mas apesar de estar na prateleira, a RTP achou que eu não podia ser diretor da revista e estar na RTP ao mesmo tempo. Pedi ao Miguel Sousa Tavares para ficar diretor e ele ficou. E a revista continuou com o Miguel,  depois esteve o Francisco José Viegas e depois o Joaquim Vieira.

Ficou emprateleirado durante 11 anos?

Sim, mas não foram de seguida, foram aos bocados. A RTP não queria que eu voltasse a fazer programas de atualidade, então propus o Portugal sem Fim, que tinha que ver com a história de Portugal. Foi um sucesso mas acabou com uma pega minha com o Cavaco. O Fernando Nogueira, que era ministro do Estado e da Defesa, foi para o Parlamento no âmbito dos debates sobre defesa nacional citar o Portugal sem Fim como exemplo, como quem diz que era feito a mando do Cavaco ou dele. Apanhei uma fúria, escrevi-lhe uma carta violenta, ele não respondeu para mim, respondeu para a administração da RTP, que me chamou para puxar as orelhas. A honra de um jornalista era deitada fora assim: porque dá jeito num debate no Parlamento.

Foi emprateleirado novamente?

Fui. Estava sempre a ser emprateleirado porque não me calava. Uma coisa horrorosa. Um gajo chega de manhã, está a malta toda a bulir, e vai para o seu gabinete, uma cela, e fica ali a fazer nada. Mas cada vez que faziam alguma coisa que não me agradava, pimba. E eles pimba, pimba. Era a panela de ferro contra a panela de barro. Acabava sempre por levar e saía de lá cheio de nódoas negras. Algumas bem violentas, as que estão na alma e não se veem. Eles ganharam, como sempre. Foi um longo e perdido combate contra a estupidez.

rita.s.freire@sol.pt