Somos irremediavelmente novos em qualquer situação; no dia em que acordamos velhos, somos estreantes na velhice: cada fase da existência é única e incorrigível.
Consola-nos pensar que somos animais racionais, mas já Miguel de Unamuno anotava que é mais frequente observarmos um gato a pensar do que a rir ou chorar. O irracional aparece onde menos se espera e sem que nos demos conta disso.
Uma cidadã de 79 anos, formada em Matemática e que preza a lógica, a coerência e a razão acima de todas as coisas, explicava-me há dias a sua escolha eleitoral: «Cheguei à cabine de voto com a ideia de votar PS, mas não cheguei a perceber se o Costa iria repor o que o Governo cortara na minha pensão de reforma. Só o ouvi falar disso uma vez, mas com pouca segurança. Pus-me a ler o boletim com atenção, e, lá no fim, descobri que havia um Partido dos Reformados e Pensionistas. Pensei: é este o meu partido. E votei nesse». Uma opção tomada no último minuto e por impulso.
Conheço algumas pessoas que votaram no Pessoas, Animais e Natureza só porque adoram animais e estão fartas de ‘políticos’ e ‘gente insensível aos direitos dos animais’ – e a verdade é que o PAN entrou agora para a Assembleia da República.
Conheço também votantes do CDS que, filosoficamente incapazes de votarem no PSD de Passos Coelho e desgostosos com a política seguida pela coligação, votaram agora no Bloco de Esquerda «porque a Catarina Martins tem mérito e merece ter mais força».
O PS não contou com o poder do irracional e da ficção. A coligação PàF foi muito hábil na manipulação destes dispositivos fantasmáticos: desde que formou Governo, há 4 anos, criou uma história simples e credível (sem pacto de credibilidade não há ficção que resista): o PS deixou o país na bancarrota, o PSD e o CDS tiveram de, embora contrariados, instaurar uma política de sacrifícios ferozes para salvar a população e o país.
A parte do ‘embora contrariados’ é importante, porque justifica as promessas eleitorais desprezadas (como o não aumento de impostos) e a retirada retroativa de direitos adquiridos (como o corte nas pensões de reforma).
Nunca, ao longo destes anos, o PS contrariou esta narrativa; com Seguro ou com Costa, a estratégia foi esquecer o passado e falar apenas do futuro – assumindo, assim, a verdade da narrativa da coligação.
Para vencer, o PS deveria ter defendido a sua herança: o trabalho feito na saúde, na educação, na investigação científica; o corte nas pensões e benefícios dos políticos; os direitos humanos (a IVG, o casamento homossexual). E deveria ter recordado que o PEC4 era uma tentativa de evitar a troika e tinha sido aprovado pelos credores internacionais.
Infelizmente, os ódiozinhos pessoais, primeiro, e o pavor da sombra de Sócrates, depois, impediram esse exercício de serenidade e convicção.
É difícil convencer os eleitores a votar num partido que se envergonha do seu próprio trajeto e o esconde.
Houve outras coisas que correram mal ao PS: a discrepância entre o programa e o discurso eleitorais, o tom mais auto-justificativo do que atacante, o imbróglio dos cartazes, a ausência de vozes gerando coro com o líder. Mas o que decide uma eleição é a consistência de uma história – e o PS não conseguiu contá-la.