Turquia desavinda

O mais mortífero ataque terrorista de sempre na Turquia, ocorrido no sábado, expôs uma sociedade dividida e polarizada – um país numa encruzilhada entre conservadores, nacionalistas e progressistas, entre turcos e curdos, ao fim de 13 anos de Recep Tayyip Erdogan no poder.

Um país em que no jogo de futebol entre as seleções da Turquia e da Islândia o minuto de silêncio em memória às vítimas não foi respeitado pelo público presente no estádio, em Konya (também conhecida como Icónio, cidade da região da Anatólia central). Ali houve assobios e cânticos de “Deus é grande” e “A nossa terra é indivisível” – sinal de quem trocou a ordem entre carrascos e vítimas. No canal TRT, um apresentador afirmou que não se pode misturar todas as vítimas, uma vez que pelo meio havia “inocentes”, como “polícias, pessoal de limpezas, transeuntes ou pessoas que se deslocavam para o trabalho”.

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Um país que até em aspetos básicos diverge. Por exemplo, o número de mortos causado pelo duplo atentado suicida junto à estação central de comboios de Ancara, por onde passava a manifestação pela paz. Segundo o Ministério da Saúde, morreram 99 pessoas e foram feridas 506, dos quais 136 a receber tratamento hospitalar; para a Ordem dos Médicos turca, bem como para a Ordem dos Advogados de Ancara, a cifra de mortos situa-se nos 106 e 440 hospitalizados.

O líder do pró-curdo Partido Democrático do Povo (HDP) Selahattin Demirtas não contribuiu para a acalmia ao falar em 128 mortos (mais tarde o HDP retificaria o número).

Mas mais grave do que a guerra dos números, o discurso de Demirtas responsabilizou o Governo do partido islamista conservador AKP, que o acusou de “cumplicidade” com o ataque. “Fecharam os olhos à existência e ao crescimento do Estado Islâmico na Síria. A sua presença é conhecida dentro da Turquia e ainda não houve detenções”, afirmou à CNN. O líder do HDP já havia criticado o Governo aquando de outros dois atentados em localidades curdas (Diyarbakir, em Junho, e Suruç, em Julho), dos quais resultaram 37 mortos.

Ainda no próprio dia do atentado a tensão foi acirrada pelo comportamento das autoridades. “Não sei quem o fez (atentado), mas sei que não houve proteção e que a polícia lançou gases lacrimogéneos sobre os feridos”, afirmou ao El País Dilan Yakut, uma participante na manifestação. A sindicalista criticou ainda a demora das equipas de socorro.

Declarado luto de três dias, as autoridades proibiram manifestações de solidariedade para com as vítimas, mas dezenas de milhares de turcos saíram às ruas e desafiaram, com greves e manifestações, o Governo. Houve confrontos com a polícia.

Nem os funerais das vítimas foram momentos de pacificação. “Erdogan assassino” ou “Vingança” foram palavras de ordem nas cerimónias fúnebres. O presidente do Parlamento Ismet Yilmaz (do AKP) foi recebido num funeral com “Assassino, fora”.

“Eu passei por todos os períodos vis e sangrentos da nossa História. Mas nunca vi tanto ódio entre o comum dos cidadãos”, disse ao New York Times Nadiye Surel, uma dentista reformada de Istambul.

Com a oposição a questionar as falhas na segurança e na recolha de informações, e o líder dos secularistas (CHP) a pedir a demissão do ministro do Interior Selami Altinok, este acabou por suspender os chefes da Polícia e da espionagem da capital.

Perante este clima, e apesar do Presidente Erdogan ter afirmado na terça-feira que a Turquia “é um país onde as liberdades não têm limites”, um tribunal proibiu os meios de comunicação turcos de emitirem notícias, entrevistas e críticas relacionadas com a investigação ao atentado.

Estado Islâmico e PKK na mira

Segundo alguns jornais turcos, um dos suspeitos do ataque suicida é Yunus Emre Alagöz, irmão do autor do atentado de Suruç. Esteve com o irmão na Síria, nas fileiras do EI, e estava referenciado pelas autoridades.

O primeiro-ministro Ahmet Davutoglu apontou o dedo ao EI como principal grupo suspeito do atentado. No entanto, na quarta-feira, foram detidos dois elementos ligados ao ilegalizado Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e passou a lançar também suspeitas a esse grupo. “Ao aprofundarmos a investigação, concluímos que existe uma possibilidade elevada de o EI e de o PKK terem um papel no ataque”, afirmou.

A jogada não é nova: foi exatamente após o atentado em Suruç, localidade fronteiriça com a Síria, que o exército turco começou as operações de ataque ao PKK – e não ao Estado Islâmico, que seria o natural suspeito do ataque. Os 33 mortos do atentado eram jovens ativistas curdos que se tinham juntado para anunciar uma viagem a Kobane com o intuito de ajudar à reconstrução daquela cidade fustigada pelo EI. Foi a resposta militar contra o PKK que desencadeou um conflito que causou desde julho dezenas de civis mortos e um número indeterminado de baixas entre guerrilheiros curdos e militares – e o motivo pelo qual se reuniram milhares de pessoas em Ancara no sábado passado.

A duas semanas das eleições legislativas antecipadas – que se preveem especialmente tensas –, os partidos CHP e HDP apresentaram moções no Parlamento para que se instaure uma comissão de inquérito.

cesar.avo@sol.pt