A frase reza assim: «Depois de 20 anos de trabalho com material documental e tendo escrito 5 livros nessa base, declaro que há muitas coisas acerca das pessoas que a arte não conseguiu compreender».
Svetlana Alexievich acrescenta ainda que o documentário «nos aproxima da realidade», dado que «preserva os originais».
Desfilaram de imediato diante dos meus olhos as poderosas imagens ‘originais’ e ‘documentais’ da realizadora nazi Leni Riefensthal. Poderiam ter desfilado também inúmeras reportagens sobre o conflito israelo-palestiniano, com versões distintíssimas de uma mesma ‘realidade’, consoante o repórter, o país ou o meio de comunicação.
‘Realidades’ e ‘testemunhos’ há-os para todos os gostos e serviços. É por isso que a literatura é tão importante: porque não está ao serviço de ‘realidade’ alguma, a não ser a da variedade das perspetivas, em cada situação e cada época. E a da reflexão sobre essa multiplicidade de pontos de vista, que nos conduz – como diz em A Arte do Romance – a uma nova forma de conhecimento.
Aposto que o senhor nunca começaria uma frase por «Declaro que»: nunca incorreria na estupidez de proclamar qualquer verdade absoluta sobre o mundo ou a arte.
Mas os tempos são dos que afirmam para se afirmarem, e se erguem não tanto ‘contra’ qualquer coisa (seja ela ‘o homem soviético’ ou a fervura dos caracóis) mas a favor de si mesmos.
E lembrei-me de si porque foi através dos seus romances que entendi a que ponto os totalitarismos devastam e diminuem a humanidade – e como os instintos de domínio e exclusão minam as relações humanas, mesmo nas sociedades ditas democráticas.
O riso, que as ditaduras proíbem, tornou-se, nas democracias contemporâneas, obrigatório; tudo hoje tem de ter graça e provocar gargalhadas. O riso deixou de pontuar a liberdade para se tornar prova de inteligência mínima comum. A sua ‘leveza do ser’ foi caçada e domesticada. E os romances, com a tal ‘sabedoria da incerteza’ que, desde Cervantes, nos esclarecia sobre a variedade do mundo, estão agora a ser empurrados para as caves da História. Mostraram-se «impotentes», escreve a nova Nobel – o que é natural, porque os romances nunca ambicionaram nenhuma espécie de poder, a não ser o de dar a ver o que a ‘realidade’ esconde.
A Academia Nobel sublinha a «polifonia» dos livros da premiada, entendendo a palavra como sinónimo de «grande quantidade de vozes». Ora a polifonia, como o senhor explicou, é uma técnica de composição musical que consiste no desenvolvimento contrapontístico de várias vozes sobre um mesmo tema. Não é uma questão de número; mas agora passou a ser, como tudo o resto, nesta sociedade em que os ‘amigos’ se contam aos milhares, como as opiniões, na hiper-realidade fervilhante das ‘redes sociais’.
Claro que o Nobel não lhe faz falta, caro Kundera; também não fez falta a Tolstói, que o perdeu para um Sully Prudhomme que já ninguém recorda. Nem a Virginia Woolf, Nabokov, Mishima, Yourcenar, Duras, e muitos outros que continuam a iluminar-nos a existência.
Eu até preferia que ele tivesse ido para Agustina Bessa-Luís, porque era como se fosse para mim, e porque, literariamente, ela merecia-o tanto como o senhor. Dizem que o prémio é ‘político’; mas se o fosse, no sentido nobre da palavra, o senhor já o teria recebido. O problema é que até a política acabou.