O real em volta

Não terá sido uma surpresa mas nem por isso deixou de ser surpreendente. Quando, na semana passada, a jornalista bielorrussa Svetlana Alexievich ganhou o Nobel da Literatura confirmou o que meio mundo tinha apostado. Mas não faltaram vozes a questionar a atribuição do prémio que, pela primeira vez, distinguiu uma obra que não é ficcional,…

Antecipando o debate, a secretária permanente da Academia Sueca, Sara Danius, disse, imediatamente após o anúncio, que a autora escreve não uma história de factos mas uma “história de emoções”. E no rescaldo do prémio, num texto publicado no El País, o escritor Alberto Manguel chamava a atenção para o facto de o Nobel ser atribuído a um autor que tenha produzido “no campo literário a mais destacada obra em prol de um ideal”. E que é preciso decidir se esse ideal é social ou artístico. “O prémio atribuído este ano a Svetlana Alexievich é, por certo, muito merecido se aceitarmos o primeiro sentido. Todo o ditador precisa de uma voz que o denuncie e, perante Vladimir Putin (…) a de Alexievich é uma das mais pertinentes, agudas e audazes”.

E se é a primeira vez que o jornalismo é distinguido com um Nobel, não é, certamente, a primeira vez que o jornalismo é visto como literatura. De Truman Capote a Norman Mailer, de Ernest Hemingway a Gabriel García Márquez, de Joan Didion a Tom Wolfe, não faltam exemplos de autores ilustres que dividiram a sua obra ficcional com o jornalismo (Alexievich, porém, nunca se dedicou à ficção).

E se Gabriel García Márquez ou Hemingway têm na ficção o que é considerado o melhor da sua obra, A Sangue Frio é, talvez, o mais citado dos livros de Capote. Publicado em 1966, narra o homicídio, a tiros de caçadeira, numa pequena cidade pacata do Kansas, de quatro membros da família Clutter. Muitos dirão que o relato terá sido embelezado em prol da arte. Não será caso único.

A Bielorrússia parece ser terreno fértil para jornalismo literário. Foi lá que nasceu Ryszard Kapuscinski, em Pinsk, em 1932 (a cidade, que hoje faz parte da Bielorrússia era, à época, polaca). Autor de uma obra extensa, o jornalista, que será sempre recordado por O Imperador, sobre Hailé Selassié (a que se juntam obras sobre Angola em 1975, como Mais um Dia de Vida, ou O Xá dos Xás, sobre o último xá do Irão) viu várias vezes o seu nome indicado ao Nobel. Nunca o ganhou. O que ganhou, porém, foi o epíteto de burlão, quando se soube que muitos dos episódios que narrava nos seus livros eram, afinal, ‘meras’ ficções: ‘Não estragues uma boa história com a verdade’, devia o jornalista polaco escutar na sua mente. Certo é que terá dito que não era a veracidade dos pequenos detalhes que lhe interessava mas sim captar, e narrar, a essência do tema. E isso Kapuscinski conseguiu como poucos.

Do Repórter X a Saviano

Portugal também não escapou incólume ao jornalismo literário com liberdades. Reinaldo Ferreira, conhecido como Repórter X, é o melhor exemplo disso. Realidade e ficção misturavam-se nos seus relatos, que incluíram entrevistas a Mata-Hari, declarações segundos antes da morte de Sidónio Pais e reportagens enviadas de Moscovo depois da morte de Lenine (que foram, provavelmente, escritas em Paris onde o jornalista vivia).

Hoje, porém, assegura Svetlana, tudo mudou. Desde Chernobyl que a realidade ultrapassa a ficção, desde que os aviões foram de encontro às Torres Gémeas que dificilmente se pode ficcionar algo mais terrível. Talvez por isso o jornalismo, literário ou não, esteja a ganhar, progressivamente, lugar de destaque nas estantes, seja Gomorra, de Roberto Saviano – embora o autor italiano, acusado de plágio, defendeu-se no La Repubblica tendo alegado que os seus livros são “romances de não-ficção” -, seja relatos e crónicas fieis, como A Grande Guerra pela Civilização, de Robert Fisk.

Há muito que jornalismo e literatura têm objetivos comuns: captar o espírito do tempo através da arte de narrar uma história. Alguns, os excecionais, terão alcançado esses objetivos, de um e outro lado da barricada. A Academia Sueca limitou-se a reconhecê-lo. 

rita.s.freire@sol.pt