Quase em simultâneo, dois homens com percursos brilhantes e prestigiados, que deram imenso de si à causa pública, anunciaram a decisão de mudar de vida e iniciar um novo ciclo, propondo-se enfrentar desafios para os quais estão, indiscutivelmente, bem preparados.
Ficam a perder a Academia e as audiências da TVI, no primeiro caso, e o Tribunal de Contas, no segundo.
Coincidência ou não, a novidade foi dada de supetão. E ao fazerem-no, confirmando rumores antigos, o país ganhou em Marcelo um candidato com um lastro de popularidade singular e transversal na sociedade portuguesa, e a Gulbenkian ganhou em Oliveira Martins um protagonista da cultura, de invejáveis pergaminhos, somados a uma experiência multifacetada na política, na educação, na ciência.
Em ambos há o traço inconfundível da seriedade, a par da polivalência dos saberes, o que vai sendo um bem raro num país onde tem feito caminho o pior arrivismo, o compadrio e a venalidade corrupta.
Não decerto por acaso, ouviram-se duas declarações incomuns, pelo meio das frases conspícuas do costume.
A de Francisco Louçã, para quem (disse-o no seu espaço televisivo), a intervenção de Marcelo, na forma como apresentou a candidatura, foi «magistral». E a de Marçal Grilo, ao reconhecer a «qualidade ímpar» do sucessor na cadeira que deixa vaga na Fundação, por limite de idade.
Os elogios não são gratuitos. Marcelo e Oliveira Martins combinam não poucas afinidades intelectuais, culturais e cívicas, pertencendo ao melhor que saiu das suas gerações.
Marcelo partiu para disputar Belém no timing que escolheu, sem negociar apoios prévios, à esquerda ou à direita (nem sequer no seu partido), prometendo uma campanha de ‘afetos’ e uma presidência com um estilo muito diferente do atual inquilino.
Sabe, de antemão, que não tem adversários à altura, desde os que concorrem por obrigação de militância, por desforra ou para dar nas vistas, até Sampaio da Nóvoa, que veio a terreiro, de peito inchado, com a ilusão de apoios partidários que não tem, e um discurso entremeado de esquerdismo Syriza e lirismo avulso.
A única esperança de Nóvoa (outro erro de casting de António Costa) é que haja uma segunda volta nas presidenciais, e aí fazer o pleno do ‘povo de esquerda’ contra Marcelo. Talvez se engane.
As presidenciais, como era de esperar, aterraram no meio da algazarra provocada pelos resultados eleitorais de 4 de Outubro. Num ápice, passou a chamar-se «charneira» à metamorfose de António Costa.
Inventada a personagem de ‘candidato a primeiro-ministro’ encarnou-a sem rebuço e passou a comportar-se na vida real como o fizera na representação encenada para o palco do PS.
Avistou-se com partidos do arco da governação e da esquerda anti-sistema, com se fossem farinha do mesmo saco. Marcou encontros com jornalistas estrangeiros e embaixadores da UE, como se tivesse mandato régio para formar Governo.
Consoante os interlocutores, assim mudou de falas e de inflexões de voz. Eufórico, quando contracenava com Catarina ou Jerónimo. Inconclusivo, se tinha pela frente Passos Coelho e Paulo Portas.
Sem exceção, todos fingiram que a personagem existia e que não tinha desaparecido numa noite de domingo chuvoso.
Com este guião, esperam ainda alguns lunáticos transformar a derrota factual numa vitória surreal. «Usurpador», chama-lhe, descaridosamente, Maria João Avilez no Observador.
E o pior é que já apareceram invertebrados a aplaudi-lo no papel, sem perceberem o naufrágio do PS, que fez história contra a histeria revolucionária do PCP e aliados, na mítica jornada da Fonte Luminosa.
Nesta peça de opereta, o astuto Jerónimo, inquieto com o Bloco, tem afagado Costa com propostas de ‘casamento de conveniência’, enquanto Catarina, em estado de euforia virginal, pisca o olho a Costa, para ‘socializar’ o namoro.
Perante estes delíquios de alma, suspeita-se que, do outro lado do Atlântico, Kissinger sorria ao recordar o seu longínquo argumento da ‘vacina’ para a Europa, enquanto Carlucci pensará se valeu a pena perder tempo com Mário Soares, ajudando-o a impedir o PCP de tomar conta do poder em 75.
Costa não aprendeu a lição, confundindo o país com o seu umbigo.
A gestão desta barafunda teatral depende, em última instância, de Cavaco Silva. Conjetura-se sobre a forma como vai sair dela. Fazem-se apostas. No meio das muitas dúvidas que existem, apenas uma certeza: o país não merece novo PREC.